Marcas da Melodia escrita por Carpe Librum


Capítulo 3
O Que Restou Foi Solidão




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Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

(...)

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr.

(Epitáfio – Titãs)

 

Ao abrir os olhos com a luz do sol em seu rosto, Vicente, com fortes dores musculares, lentamente se levantou e, por alguns segundos, não compreendia exatamente o que fazia ali.

O jardim, pelo que o senhor se lembrava, oferecia uma aparência mais agradável do que a que ele via naquele momento. No lugar das belas flores que por ali ficavam, restaram apenas caules quebrados e pétalas manchadas de terra espalhadas pelo local, que se encontrava brutalmente destruído. Sem se mostrar surpreso, o homem ignorou o estado deprimente do jardim e se recolheu ao entrar em sua mansão.

Vicente, mesmo em uma grande e confortável banheira não demonstrava nenhum sinal de conforto. Seu olhar era o único a demostrar algum sentimento: uma imutável exaustão, não só do corpo, mas da alma, que parecia nem mesmo estar ali. A energia da vida já não se encontrava mais naquele senhor e a grande mansão não tinha mais nada além do vazio.

 Sua postura naquela banheira não era isolada, aquele olhar cansado já pedia socorro há certo tempo... Desde um acontecimento que o fez repensar a maneira de encarar a vida, porém quando isso aconteceu já era tarde para alguma mudança.

O homem que no presente vive na solidão, no passado era movido por paixões. A principal delas era a paixão por si mesmo. Seu ego e sua vaidade se sobressaíam em todas as situações. Seu desejo em ter tudo o que se poderia comprar se tornou um vício. Pouco a pouco, Vicente acabou priorizando pequenas coisas, e deixando de lado as mais simples e importantes. A felicidade daqueles que o amavam já não significava tanto quanto o dinheiro.

Vicente, por muito tempo, agiu sem escrúpulos, a fim de realizar suas aspirações ambiciosas. Sua astúcia fez com que o rapaz enganasse os próprios pais, conseguindo assim a posse de muitos bens do casal. Seu desejo em ter tudo e dificuldade em aceitar um “não“ só se amenizou quando conheceu Lilian.

Mesmo percebendo o jeito impulsivo do rapaz, a escritora que amava flores não hesitou em iniciar um romance. Os dois se apaixonaram fortemente, e em pouco tempo uma família se formou com a chegada da filha. Ana, uma adorável criança, só fez com que o amor aumentasse. Vicente se arrependeu de muitas coisas, porém pouco a pouco regredia aos seus antigos hábitos duvidosos.

Pela segunda vez, Vicente voltou a ser o homem capaz de sabotar os próprios pais e a vaidade adormecida acordou e cresceu, assim como Ana, que cresceu tão rápido quanto. A menina afastou-se do pai, assim como sua mãe, que vendo as atitudes gananciosas, egoístas e impulsivas do homem, tomou uma seria decisão... Arrumou as malas e partiu com a filha.

Pouco antes, foram se despedir de Vicente, que se descontrolou e, com um tapa no rosto de Lilian, mostrou explicitamente sua arrogância e insensibilidade, sem ao menos se importar com a presença da filha. Após o tapa, o silêncio predominou e os olhares amedrontados se cruzaram por alguns segundos... Naquele momento, ambos perceberam que acabou. A porta se fechou e Vicente permaneceu em silêncio, mas agora sozinho.

Algumas horas se passaram após o abandono da família e nada além da culpa dominava a mente do rapaz. O sentimento de solidão já o consumia, mas antes mesmo de pensar em tomar alguma atitude, seu telefone tocou... A notícia não poderia ser pior. A culpa e a solidão deram espaço ao desespero, que fez com que Vicente rapidamente saísse da casa às pressas. Esposa e filha sofreram um acidente naquela noite e um novo e inexplicável sentimento se apossou de sua consciência e permaneceu nos vinte anos seguintes.

A morte de seus dois amores o abalou fortemente, e a culpa o corroía cada vez mais. O tempo não foi capaz de absolver um terço daquela dor. Em um único momento, porém, a dor parecia se amenizar, quando o homem cuidava do belo jardim, o que o fazia se lembrar de Lilian. Lá, os dois passaram bons momentos juntos e o amor que a mulher depositava ao cuidar da natureza parecia ainda estar no local.

Todavia, o homem ainda era refém de seus impulsos, e muitas vezes, ali no jardim, era dominado por uma raiva incontrolável de si mesmo, que o fazia destruir tudo à sua volta, como se estivesse tentando se destruir. Após o ato súbito — porém recorrente — ele voltava a cuidar do jardim como quem cuida de um bebê, com muito amor.

O triste acontecimento na vida de Vicente o fez mudar. Sua vaidade já não existia. O que antes lhe parecia valioso, hoje não lhe tinha valor algum, e o sofrimento o fez perceber o que realmente importava. Vicente não era mais o mesmo, mas a mudança deixou sequelas. Ele aprendeu! Ainda que da pior maneira possível. Os bons momentos, contudo, não fazem mais parte de Vicente, o que restou foi solidão.

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Escrita por Elaine Souza, primeira colocada no concurso.

 


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