Marcas da Melodia escrita por Carpe Librum


Capítulo 2
Beijo do Crepúsculo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/745494/chapter/2

A paz deverá vir
Eu espero que não demore muito
Apenas uma fé que não consigo enxergar
Me leve para casa
Eu estou aqui dentro o tempo todo
Apenas eu e minha melodia

(Free Me – Sia)

 

Quando eu tinha nove anos de idade, eu era apaixonado pelo céu. Subia em cima do telhado sempre que estava triste e esticava minhas mãos ao alto, ansioso para tocar o mar flutuante e infinito; ansioso por um beijo do crepúsculo em meus lábios secos de dor. Ao longo dos anos, adquiri esse costume. Hoje, aos vinte anos de idade, sempre que tenho algum problema na minha vida, subo no telhado de minha pobre casa com um copo de chá de canela acompanhado de um cigarro preto matte.

Ainda está quente, mas não quente o suficiente para me fazer sentir incomodado. O sol lambe minha pele suavemente, como num beijo terno. Observo o céu. Há uma parte azul clara, mas, bem ali, num canto quase imperceptível, posso ver o degradê gradativo e crescente de cores: do azul claro e redondo para o azul escuro e misterioso. O crepúsculo se aproxima. Tomo um gole de chá.

Todos os momentos da minha vida me trouxeram até aqui, a dança entre o caos e a calma equilibrados que desencadeou uma série de consequências na minha vida: meus pais me odeiam, mas, às vezes, eu não ligo. Decidi que não preciso deles para filtrar o ar que meus pulmões respiram e nem para comprar o maço de cigarro que sustenta meu vício voraz.

Meus olhos estão cansados de mim; tudo o que eles veem é uma casa triste, com paredes tristes, que gritam por uma mudança repentina e urgente. Se eu estou de saco cheio dos eventos inconclusivos que me rodeiam, me pego imaginando como a estrutura de concreto bruto não deve se sentir. Meu namorado já não se encontra preocupado com o meu bem-estar; tudo o que ele sabe fazer é tocar lábios desconhecidos dia após dia e se desdobrar em uma noite de núpcias com garrafas de whisky importado da Rússia. Tanto sofrimento para uma pessoa... Tomo outro gole de chá.

O céu ganha um tom alaranjado e o azul escuro vai, aos poucos, contaminando todo o espaço; destruindo tudo o que vê pela frente: estrelas, nuvens e, até mesmo o próprio sol, dando espaço para uma lua vingativa e ácida.

Acendo meu cigarro com o isqueiro deixado pelo meu falecido avô, com uma frase atípica escrita em papel amarelado: "o homem se torna muitas vezes aquilo que ele acredita ser". Sempre me peguei pensando nessa frase, mas eram tentativas inúteis, pois minha cabeça sempre estava de luto por mim mesmo. Partes de mim morriam todos os dias.

Fumo o cigarro, deixando a fumaça entrar lentamente nos meus pulmões murchos. Sinto todo o nevoeiro tóxico abraçar o tecido do meu órgão respiratório e expiro para fora os pedaços de vida se esvaindo, da minha alma atrelada à névoa que reverbera. Talvez o meu avô tivesse razão. Talvez eu esteja me tornando aquilo que acredito ser. Ou talvez eu esteja desacreditando nas coisas boas que existem para me moldar em alguém melhor do que ontem, como, por exemplo, o amor.

Houve um tempo da minha vida em que eu estive em uma jornada incessante pela busca do amor perfeito. Inicialmente, eu tocava a pele de meus pais enquanto eles dormiam, solenes, nas noites frias de outono, após terem me torturado com palavras banhadas de sangue, procurando por um vislumbre, uma luz de amor dentro de suas pálpebras. Desisti logo após ver apenas uma força crescente de ódio se alimentando e ganhando espaço ali.

Após isso, comecei a procurar o amor nas pessoas ao meu redor; eu estava numa busca desesperada por um relacionamento estável e tranquilo, daqueles que só aparecem de vez em quando no cinema, mas a quem eu queria enganar? Eu era o fiapo mais remendado que o mundo já conhecera, como eu poderia deixar de ser cicatriz? Me tornar alguém que não estava preparado para ser. Eu nunca havia sido instruído.

E então, cansado e já desistindo de lutar contra o desejo de morte, deixei com que o amor ganhasse a brincadeira de esconde-esconde que estávamos a tanto tempo jogando; a brincadeira acabou. Era o fim. O amor era apenas um vislumbre que eu via nos filmes de romance e nos braços rígidos de meus pais quando olhavam um para o outro. Eles se amavam e amavam me torturar como um pedaço de carne jogada a cães famintos ao luar.

Finalmente o céu ganhou a tonalidade perfeita. Os tons alaranjados ficaram mais fortes e o buraco negro da escuridão cobriu toda a extremidade, fazendo com que as cores opacas se amontoassem no centro: rosa, azul escuro, laranja e amarelo crepúsculo. Era o mesmo céu que eu costumava ver aos nove anos de idade. Fico de pé no telhado, estendo os braços, sinto a brisa do vento chacoalhar os meus cabelos e grito para o bairro inteiro ouvir o meu pedido de socorro. Parece um grito de liberdade, mas é o contrário. Eu quero ser liberto de tudo isso; e mesmo que todo mundo aparente ter tudo para me salvar, nunca parece ser o suficiente para mim.

Fumo um pouco mais do cigarro e o jogo no telhado. Ele cai entre uma telha e outra e se junta aos outros trinta e dois cotocos queimados, esquecidos pelo tempo, pelo clima e por Deus.

Desço do telhado com o copo de chá nas mãos, vou até o meu quarto, pego minha mochila e saio de casa.

Pego um ônibus que está mais destruído do que os pilares que sustentam o meu coração e mais pichado do que minha pele tatuada e sigo rumo ao centro.

É incrível como a cidade parece se transformar em algo sobrenatural quando o céu está escorrendo em crepúsculo sobre nossas cabeças. É quase como se eu pudesse acreditar em magia, como se tudo não passasse de um engano comigo mesmo e eu fosse, sei lá, acordar desse pesadelo. Um pesadelo cujo único ponto de escape para mim é o céu do crepúsculo, o chá de canela e o cigarro preto matte.

Enquanto o ônibus anda em uma velocidade que eu acredito desrespeitar as leis de um trânsito já cansado, vejo tudo se tornar um borrão aos meus olhos. As árvores parecem fragmentos de matérias que decidiram permanecer no passado e não dar lugar para um futuro em que quisessem permanecer. Os carros parecem pontos de luz esticados como chiclete no meio do ar, transitando uns sobre os outros, confundindo meus olhos mortos. O chão, seco, parece uma estrada solitária e enegrecida, levemente carbonizada pelo atrito dos pneus e pelo calor do sol.

Chego no centro e observo o fluxo de pessoas. Algumas estão solitárias, outras estão apressadas, mas a maioria deve se sentir incompleta, assim como eu. Como se buscassem algo a mais para suas vidas. A mulher ruiva, por exemplo, parece crer que seus problemas vão acabar assim que terminar com seu namorado sanguessuga; a mulher de saia cinza parece trabalhar para juntar cada vez mais dinheiro e se sentir satisfeita em jogar na cara das pessoas a quantidade de zeros que sua conta bancária carrega; e o homem que está vindo na minha direção parece querer algo que eu não posso dar...

Ele se aproxima de mim, me pede algo para comer ou algum dinheiro. Suas mãos sujas de terra, fungos, bactérias e poeira carregam um saco de pirulitos coloridos. Olho bem nos seus olhos. Eu sempre costumo fazer isso com esse tipo de gente, pois a maioria se sente intimidada e vai embora sem mesmo dizer uma única palavra. Mas com ele foi diferente.

Eu senti uma sinceridade, uma ânsia por qualquer coisa, ou talvez por alguma companhia, que chegava a doer dentro dele mesmo e aquela dor estava começando a me atingir. Tudo o que eu possuo é um maço de cigarro nos bolsos da minha jaqueta verde musgo e tudo o que eu menos quero neste momento é cooperar com um vício que eu sei que é mortal.

Hoje o cigarro é meu refúgio, mas por muito tempo ele foi meu inimigo. Meus lábios lutavam contra ele, até que meu coração —  e meus pulmões —  cederam pelo tesão que sua neblina enevoada provocava dentro de mim.

Lamento por não ter nada a oferecer, ele abre um sorriso, tão sincero quanto sua fome, e me deseja um bom resto de tarde. Ele se vira de costas para mim, vejo-o andando para longe, cada passo um segundo a mais de distância. Eu nunca fui de fazer alguma coisa, já que eu sempre estive num melodrama interminável, mas neste momento, meu corpo involuntariamente se lança contra o dele e eu pego sua mão. Quando ele se vira, eu o puxo para um abraço.

Assim que abraço o seu corpo, não há nada no mundo, apenas eu, ele e o céu do crepúsculo. As cores parecem dançar e nós dois parecemos agradecidos. Eu não tinha ideia do quanto precisava de um abraço até dar um em alguém.

Senti seus olhos chorarem no meu ombro e senti os meus olhos chorarem pela minha alma, ou pelo menos pelo que restava dela. Ficamos um tempo abraçados, suficiente para dar mais um nó naquela linha de esperança que temos costurada em nós mesmos mas insuficiente para criar algum laço entre nós dois.

Ele se afasta.

Eu me afasto.

Ele me olha nos olhos.

E eu o olho nos olhos.

O céu, ah, o poderoso céu crepúsculo nos dá adeus. A escuridão engolindo toda a paleta de cores selecionadas para pintar o céu neste dia.

Ele me agradece com um sorriso. O mais sincero que eu havia presenciado em toda a minha vida. E vai embora. Vira as costas sujas e leva consigo o pacote de pirulitos coloridos e os trapos que veste.

Fico observando-o até perdê-lo de vista.

Coloco a mão no bolso da minha blusa para pegar um cigarro e sinto algo diferente. Agarro.

Olho para o que me foi dado. E uma lágrima escorre de meus olhos pesados.

Meu avô sempre me dizia que, cedo ou tarde, encontraríamos fé para lutar pela vida.

Eu só não imaginaria que encontraria essa fé em um pirulito colorido.

 

********

Escrito por Gabriel Luiddi, vencedor do concurso Por Um Dia, participante do Sempre Em Meu Coração e membro da Liga dos Betas do Carpe Librum - grupo de ex-alunos que ajudam os atuais na escrita de suas histórias.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Marcas da Melodia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.