Histórias Cruzadas escrita por calivillas


Capítulo 21
Escutando atrás da porta




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Regressamos para a casa, no exato momento em que o almoço iria ser servido, embora não estivesse com fome, depois daquele excepcionalmente vasto café da manhã.

— Aonde vocês estavam? – Harold perguntou em um tom áspero, assim que adentramos a sala de almoço.

Eu estranhei, pois ele não era dado a esse tipo de reação, nunca demonstrava emoções em público, muito menos adversas, sempre foi um homem reservado e educado, muitas vezes, julgava-o até um tanto frio. Será que estava com ciúmes de mim com Charles? Isso até me deixou um pouco mais feliz, pois, raramente, ele demonstrava um mínimo interesse para comigo.

Nos últimos tempos, quanto mais o meu casamento se aproxima, mais eu considerava se seria um erro da minha parte casar-me com Harold, um homem cujos sentimentos eram tão reservados e contidos, eu era uma garota romântica e sempre sonhei com um homem que demonstrasse seus sentimentos para mim. No fundo do meu coração, esperava que ele pudesse mudar após nossas núpcias, tornasse um pouco mais carinhoso comigo, contudo, era uma incerteza.

— Estávamos andando um pouco pelo jardim – explico, enquanto Charles não fala nada, apenas, enche um copo de uísque e começa a beber calmamente.

 - Mais tarde, poderíamos cavalgar um pouco, o que acha, Charles? – Harold muda de tom, está mais animado, quando tomamos nossos assentos à mesa.

— Eu não sei, não estou muito disposto. Você poderia conseguir outra companhia. Quem sabe a própria Mary? – Charles contesta e o sorriso desaba no rosto do meu noivo.

— Mary não gosta de cavalgar - Harold revela com voz áspera.

— Podemos fazer outra atividade. Afinal, já cavalgamos bastante hoje, durante a caçada – meu futuro sogro se contrapõe ao filho, assim foi combinado um jogo de cartas, após o descanso da tarde, antes do jantar.

Todas as tardes, minha mãe praticamente me trancava dentro do quarto, para que eu tivesse o meu sono de beleza, mas, na maioria das vezes, eu gastava aquele tempo com leituras, devo confessar que lia os livros que ela não julgava apropriado para uma moça de respeito, que eu subtraia furtivamente da biblioteca ou comprava às escondidas, e camuflava-os entre as minhas roupas para que ela não os encontrasse. Eu havia acabado de ler o “Sol é para todos” de Harper Lee, estava um tanto atordoada com aquela história cheia de preconceitos, quando resolvi dar uma volta pela casa silenciosa àquela hora da tarde, já que a maioria dos seus hospedes descansavam em seus aposentos, exaustos, após as atividades matutinas. Ao passar pela biblioteca, cuja porta estava entreaberta, ouvi vozes que quase sussurravam e que reconheci imediatamente. Não deveria, contudo, parei atrás da porta para escutar a conversa entre Harold e Charles.

— Por que você vai fazer isso, Harold? – Ouço Charles perguntar, com um tom de preocupação.

— Porque eu preciso, é natural para um homem na minha posição e para o futuro que planejo ter uma família, além disso, é isso que esperam de mim – Harold respondeu, firme.

— E serão infelizes pelo resto das suas vidas? – Charles retrucou.

— Somos criados para isso, para cumprir nossos deveres e obrigações e para não sermos feliz – Harold rebateu, fiquei imaginando se estavam falando de mim e do nosso casamento, sem entender porque eu seria infeliz.

Eu não sei se Charles percebeu minha presença espionando atrás da porta, talvez, tenha visto uma sombra, mas o tom da sua voz mudou repentinamente, ficou mais leve e alegre, ele começou a fazer perguntas sobre a caçada da manhã. No começo, Harold ficou confuso, contudo, rapidamente, entrou na conversa, enquanto eu me afastava o mais silenciosamente possível. No entanto, levei aquela conversa comigo, queria saber porque estava condenada a ser infeliz no casamento com Harold.

 Essa era o tipo de conversa que eu não poderia ter com a minha mãe, pois, ela falaria apenas para não me importa, que essa era a nossa vida, e precisava apenas sorrir, ser bonita e encantadora, como uma noiva na minha posição deveria parecer. Mas, eu me sentia como uma condenada que caminha para o cadafalso, sem saber o crime que cometeu, ou pior, sabendo que era inocente. Talvez, em toda aquela casa, haveria somente uma pessoa disposta a ser sincero comigo, teria que tentar tirar algo dele, entretanto, precisaria esperar o momento certo. Então, fiquei à espreita, tal qual uma leoa, aguardando o momento que se afastasse do bando para cercá-lo, sozinho.

Naquela noite, no jantar, o prato principal foi lombo de cervo, trazido inteiro a mesa, para que o orgulhoso Harold o fatiasse e fosse o primeiro a ser servido e experimentar a iguaria que ele abatera, enquanto os outros comensais olhavam, fascinados, ele dar sua aprovação. Em seguida, um brinde foi erguido em comemoração. E eu sentia meu estômago revirar, relembrando-me da cena do cervo morto e ensanguentado daquela manhã, mesmo assim, experimentei um pedaço da carne, para satisfazer o meu noivo, porém fiquei mastigando-o por um longo tempo, até consegui engolir, empurrado por um grande gole de vinho. Achei que ninguém havia percebido aquilo, mas quando levantei os olhos notei que Charles me olhava daquele jeito esquisito. Abaixei a cabeça para o meu prato e afastei a carne, disfarçadamente, comi somente os legumes.

Só mais tarde, consegui me aproximar de Charles, enquanto ocorria um torneio de Bridge. Eu, particularmente, não gostava daquele jogo, nem estava com disposição para me concentrar no jogo. Ele, também, não estava jogando, aí eu vi minha oportunidade, sentei-me em uma poltrona bem em frente dele.

— Não joga, senhor Wells?

— Na verdade, prefiro pôquer.

— Senhor Wells, você é um péssimo inglês, já que não gosta de caçadas, cavalgadas e bridge – provoquei-o em tom de brincadeira.

— Temo em dizer que a reciproca é verdadeira, milady. Pelo menos, tenho a desculpa de ser meio ianque, enquanto a senhorita... – ele rebateu no mesmo tom.

— Acho que está sendo sincero e o seu temor é real. Muitas vezes, não sei se me adaptarei a esse tipo de vida, apesar de ser criada para isso – de repente, vi-me abrindo o meu coração com um completo desconhecido, de uma forma que nunca fiz antes. Ele me fitou com condescendência.

— Você não precisa fazer isso. – Eu o interroguei com o olhar. – Viver algo que não deseja – completou.

— Eu não posso fugir dos meus compromissos.

— Claro que pode. Minha mãe fez isso, ela se casou com o meu pai e vive feliz, bem longe de tudo isso.

 - Sua mãe deve ser uma mulher muito corajosa.

— Eu sei que você também é.

— Desconfio que não seja – olhei através da fumaça dos charutos e cigarros, para as mesas onde o jogo ocorria, direto para Harold, imaginando como poderia voltar atrás na minha decisão de me casar com ele, se teria coragem para fazer isso.

— Gostaria de andar um pouco lá fora, Mary? Fugir de toda essa fumaça.

Titubeei por alguns segundos, para logo a seguir, concordar com a cabeça. Saímos da sala, achando que ninguém perceberia a nossa ausência, entreditos pelo jogo.

Do lado de fora da casa, estava fresco e o ar leve, enquanto andamos pelos caminhos floridos do jardim, Charles retirou um cigarreira de prata do bolso, ofereceu-me um cigarro, que não aceitei e, depois, tirou um para ele, que acendeu com um belo isqueiro de prata.

— Belas peças, algo raramente vistos nos dias de hoje – elogiei.

— Foram presentes de um amigo – diz, sucinto, sem me dar muitas explicações, guardando-as no bolso.

— Então, por que acha que serei infeliz no casamento? – Encho-me de coragem, viro-me para ele e pergunto diretamente, sem mais rodeios.


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