O Jardim dos Polvos escrita por Marylin C


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/743814/chapter/1

Nós, dragões, não costumamos contar histórias. Não entretemos nossas ninhadas com criações de nossas mentes, preferindo a sólida base do presente e o planejamento consciente do futuro. Não nos apegamos ao passado como os frágeis povos de duas pernas e suas vidas efêmeras; para nós, há apenas a caça, o oceano e o fogo. Todo o resto é apenas uma variação disso. Amizade? Tão estável quanto as águas do fundo do oceano e facilmente quebrada como as ondas. Amor? Pura chama que arde dentro.

Por isso, quando um dragão resolve contar uma história, você deve parar para ouvir.

Meu nome não pode ser traduzido perfeitamente em sua simplória língua humana, mas eu tentarei. Me chame de Kymat, o Lorde Branco. E a história que contarei é sobre aquele que me deu esse nome e como, além disso, me deu a verdadeira vida. Por isso, eu lhe serei eternamente grato.

Não estou contando isso a você, humano, por simples capricho de minha parte. Entenderás como me dói ter que encarar a sua face e explicar tudo sem antes estraçalhá-lo com minhas garras, mas a verdade é que estou velho. Refugiei-me nesta caverna para pensar, e você se enfiou aqui por pura estupidez ao obstruir a saída com um simples esbarrão. Eu realmente deveria afiar minhas garras em seu corpo delgado, mas ainda me lembro da promessa que fiz ao meu filhote, tanto tempo atrás. Ele tinha um coração mais mole que o meu para criaturas de duas pernas, mas não pude deixar de amá-lo até o último momento. Portanto, apenas em honra ao rugido dele, não matarei um humano deliberadamente, então sente e não me interrompa.

Meu espectro de vida começou logo quando saí do ovo. Eu tinha esperado ansioso para finalmente enxergar com meus próprios olhos o mundo ao redor e não apenas ouvir minha mãe sussurrar para mim, mas, ao invés da escuridão da caverna onde eu estivera quando dentro do ovo, acordei para a luz insuportável do sol de verão e para os toques das frágeis mãos humanas que tinham arriscado a própria vida para roubar um ovo de dragão. Eu não sabia o que estava acontecendo, apenas sentia que tinha algo errado e que lutaria para que ficasse certo. Me debati e mordi e arranhei o quanto pude, e então me trancaram em uma espécie de caixa de metal vazada. Mais tarde aprendi o nome para aquilo: jaula.

Meu primeiro cárcere durou apenas alguns minutos, onde eu desesperadamente tentava fazer com que meu começo fosse melhor do que estava sendo e acabei despedaçando um canto dela, mas tropecei e caí ao tentar utilizar minhas asas para fugir dali. Me pegaram novamente, me pondo em outra daquelas coisas, maior e mais grossa. Não consegui sair, mas tentei até exaurir minhas forças, meus captores rindo ao meu redor e trocando palavras que não conhecia.

Odeio todos eles.

Mas bem, meu inflamadofogo, ou minha raiva, não vem ao caso no momento. O que consta é que eu passei anos preso dentro daquele lugar, observando os céus e ouvindo o murmúrio do oceano a me chamar de volta. Mas cada vez que eu parecia prestes a conseguir sair daquela prisão, novas grades e amarras eram postas. Parecia que aqueles humanos se regozijavam de minha dor, às vezes cutucando-me enquanto dormia meus típicos sonos atribulados ou me provocando para que deixasse fluir meu fogo apenas para impressionar. Depois de um tempo, parei de tentar lutar. Meu fogo apagou-se, consumido pelo cárcere. Nada além de cinzas restaram sob o sol, o pequeno dragão do começo de minha vida agora um raquítico espectro sem alma.

Até o dia em que encontrei o polvo.                              

Fazia alguns anos que eu, como sombra do que já tinha sido, não tentara mais escapar de minha prisão. Desse modo, a jaula em que me colocaram pela última vez estava ali há muito tempo, aguentando a chuva e o vento. O polvo me disse isso em sua linguagem de estranhos borbulhares que de algum modo entendi, assim como apontou para uma parte enferrujada das grades que me prendiam. Ele se arrastara pela encosta da escarpa onde eu estava, bem no topo onde o vento batia mais e de onde eu podia passar os dias olhando para o horizonte azul e sentindo o mar a me chamar. O polvo me disse que eu podia sair. Só precisaria de um pouco de força para conseguir.

Mas minha mente cansada e sem fogo apenas via inutilidade em tudo aquilo. Eu não sentia mais a falta de todas as coisas que não tinha experimentado, meu estômago já se acostumara com a porção de peixes do dia anterior que me davam todos os dias. Eu era, verdadeiramente, prisioneiro de mim mesmo.

O polvo precisou voltar para a água para não morrer, mas prometeu voltar no outro dia até que me convencesse a sair dali. Bom polvo, aquele. Chamava-se Mr. Pouple, como um desses lordes, e foi meu companheiro de viagem por muito tempo, além do primeiro responsável por me devolver a vida. Começou por me convencer de que eu era realmente capaz de me libertar, todos os dias pendurando-se em minha jaula e me contando histórias de dragões e seus rugidos, como que me mostrando o que eu realmente era. Ou o que podia ser.

Não sei qual das diversas coisas que ele fez e disse foi a faísca que pôs fogo às minhas cinzas. Talvez o pequeno balde com água salgada que ele jogou em meu rosto, fazendo minhas escamas vibrarem e chorarem por mais, ou a força que fez para quebrar uma das grades que me prendiam, argumentando que se um pequeno polvo como ele podia, imagina um dragão como eu. Apenas sei que, de uma hora para outra, estava eu utilizando novamente minhas garras, depois de anos, para facilmente quebrar todas as barras enferrujadas de um dos lados da jaula. Esgueirei-me para fora, Mr. Pouple comemorando, sentindo os azulejos quebradiços do terraço onde eu estivera preso durante todo esse tempo em minhas patas. Sensíveis, sem uso.

Alonguei-me, coluna e cabeça e patas, esticando-me de um jeito que meu cárcere sempre me impedira. Não ousei abrir as asas, os fracassos anteriores ainda me impedindo. Mas então ouvi gritos. Os humanos tinham notado que estávamos indo embora. Mr. Pouple me mandou pular. Pular penhasco abaixo, para a água, como o meu povo faz. E, subitamente, tive medo.

Os humanos gritavam atrás de mim, eu encarando a altura e polvo e oceano falando em uníssono: pule. Pule. Pule. Pule. Pule. Pule. Pule. Pule.

Sem olhar para trás, pulei.

Imagino que este poderia ser um bom final para essa história, não é mesmo? Mas bem, eu ainda teria que responder algumas questões. E ainda não cheguei a falar sobre aquele que me deu o nome, então prossigamos.

Nunca me esquecerei da sensação de mergulhar pela primeira vez. A água salgada acariciava minhas escamas, abraçando-me suavemente. Seja bem vindo ao seu domínio, ela parecia me dizer.

Não levei muito tempo para aprender a nadar. É de minha natureza, então o polvo só precisou me ensinar a elegância do nado de um dragão e então pudemos ir embora daquele lugar. Eu seguia Mr. Pouple como filhote a sua mãe, deslumbrado como estava pela liberdade. Não sabia para onde íamos, mas não realmente me importava. Estava livre. Finalmente. Livre.

Nadamos pelo que pareceu ser apenas alguns segundos, mas que na realidade foram horas. Eu examinava tudo o que via, tão curioso quando maravilhado. Mr. Pouple capturou alguns peixes quando passamos por um cardume, e eu fiz meu melhor para também aprender como fazê-lo. Voltamos a nadar, depois de uma breve pausa para a refeição, e então percebi que não precisava subir à superfície para respirar. Bastante útil, já que eu queria passar todo o tempo que pudesse dentro d'água. A imensidão azul ao meu redor me fascinava, as criaturas marinhas fugindo ao me verem e grandes predadores parando para cumprimentar-me. Um enorme tubarão-tigre nos seguiu por algum tempo. Chamava-se Leo, e era um colega antigo de meu salvador. Ele se despediu ao encontrar o cardume de peixes que queria, mas me deu boas dicas de aerodinâmica para nadar mais depressa ao caçar.

O polvo parecia conhecer bem aquela área, e notei que estávamos indo mais fundo. A luz começou a diminuir e a água a esfriar, mais seres aquáticos aparecendo e sumindo. Então chegamos às rochas, verdadeiras cidades submersas. Cheias de vida e cores. Mr. Pouple me disse que aquele lugar se chamava recife de coral. Um belo recife de coral. Os peixes e crustáceos se assustavam comigo, mas bastava o polvo aparecer à minha frente para que todos se acalmassem.

Por algum tempo o terreno pareceu plano, irregulares apenas as reentrâncias nas rochas e as saliências que os conjuntos de corais formavam. Mas de súbito o recife acabou, em cima de um paredão que dava novamente para a imensidão azul. Sem hesitar, Mr. Pouple começou a descer, e eu o segui. Ele não me respondia coisa alguma quando eu perguntava para onde estávamos indo ou de onde ele vinha, mas ficava feliz em satisfazer minha curiosidade a respeito da vida marinha e das vidas dos seres aquáticos que ele conhecia e que encontrávamos pelo caminho.

Chegamos até o fundo, areia clara sem nenhum tipo de reentrância ou diferença. Mas o polvo ainda não estava satisfeito. Continuou a seguir o paredão, em paralelo e para a direita, e assim permanecemos a nadar por muito mais tempo. Alguns caranguejos o cumprimentavam, desejando-o as boas vindas e então desaparecendo na areia. Parecia que, acima d’água, estava escurecendo e a luz diminuía mais a cada momento, o que me deixava um pouco hesitante, mas pelo visto não era uma preocupação de meu guia.

Eu insisti por algum tempo em saber para onde íamos, mas como o octópode a minha frente parecia ficar mais e mais inflamado cada vez que eu perguntava sobre o assunto, resolvi parar. Não devia fazer meu primeiro amigo perder a paciência, é claro. E, assim que me exauri de perguntas, o polvo parou de nadar. Em frente a nós estava uma reentrância enorme e aberta no paredão, como uma caverna rasa. E, nela, a maior quantidade de polvos que eu já tinha visto em minha curta nova vida nadava. Eles se comunicavam com aqueles borbulhares estranhos, cuidando de corais alojados organizadamente nas paredes da caverna, anêmonas venenosas cujos braços denunciavam o rumo da corrente marítima e algas de folhas largas que davam um ar convidativo àquele lugar com seus tons exuberantes de verde. Também havia peixes e crustáceos lá, jogando algum tipo de pega-pega ou reclamando de dores para os polvos ou mesmo tentando encontrar algum alimento nos corais. Tudo era estranho demais, incrível demais.

— Mr. Pouple! Quanto tempo! — uma voz gritou, na mesma língua de borbulhares que o polvo fazia, mas de um jeito diferente. Como se aquela não fosse a linguagem original do dono da voz, mas ele tivesse extrema habilidade com ela. Olhei para os lados, procurando a quem pertencia o cumprimento, e então Mr. Pouple agarrou-se aos braços de um... Humano?

Bom, não era realmente um humano. Ele tinha rosto e tronco de um deles, mas não tinha as duas pernas que caracterizavam as pessoas, e sim oitos braços como um polvo. Sua pele alaranjada e orelhas como guelras me convenceram de que ele não era realmente um humano, mas ainda o encarei desconfiado enquanto ele sorria e perguntava para o polvo que me salvara sobre a vida e nomes que não significavam nada para mim. Então ele se virou em minha direção, ainda com um sorriso no rosto, e disse:

— Bem vindo ao Jardim dos Polvos! Meu nome é Keone, qual o seu? — só quando ele acabou a frase foi que percebi que ele tinha usado rosnados característicos do meu povo ao invés dos borbulhares ou da estranha língua humana. Fiquei estático. Nunca tinha ouvido nada daquele jeito antes.

— E-eu... Não sei. — respondi sinceramente, subitamente tropeçando em minha própria linguagem. Eu não tinha tido problemas em conversar com Mr. Pouple, mas estava sem palavras para aquele meio humano? Patético, realmente.

O polvo explicou de onde eu tinha vindo com seus borbulhares, e o tal Keone assentiu com a cabeça.

— Entendo que você não saiba seu nome. Ninguém se importou em lhe dar um, não é mesmo? — ele sorriu tristemente. — Mas bom, considere o jardim a sua casa por enquanto. Como eu disse, é muito bem vindo.

— O que é o... Jardim dos Polvos?

— É um lugar que eu organizei para que criaturas marinhas tenham um ponto fixo para descansar, recuperar as energias ou mesmo serem curados. Mr. Pouple é meu visitante de longa data. — ele apertou o polvo com seus braços finos afetuosamente. — Que bom que o trouxe aqui. Vamos cuidar bem dele, te prometo.

O polvo agradeceu e deixou os braços do meio humano, me desejando boa sorte e então mais que depressa nadando para longe. Keone voltou-se para mim, sorrindo e tirando parte de seus cabelos da frente de seus olhos. Os cabelos dele eram dignos de nota, aliás. Longos e negros, trançados com o que pareciam ser algas como as que eu via no jardim.

— Mr. Pouple... — comecei a perguntar, mas o meio humano me interrompeu.

— Ele sabia que você ficaria bem se o trouxesse para cá, então o fez.

— Mas como ele sabia que eu estava preso lá?

— Isso eu não sei te responder. — Keone deu de ombros, rindo levemente — Os polvos guardam muitos mistérios em seus três corações. Nem mesmo eu, que vivo entre eles há anos, posso alegar compreendê-los verdadeiramente.

— Polvos têm três corações?

— Sim. — ele riu novamente. Claramente, aquele meio humano ria bastante. — E, caso esteja se perguntando, eu sou um sireno e não um humano. Meu nome completo é Keone Mahesha e será um prazer ajudá-lo.

— Com o que você pode me ajudar? — indaguei.

— Bom, eu conheço o oceano. Posso levá-lo até onde está o seu povo. Também posso ensiná-lo os costumes de seu povo, embora faça anos desde que um dragão veio ao jardim. Não esqueço facilmente de coisas que aprendi.

Tentei parar para pensar naquela proposta, mas só então percebi como estava cansado. Minhas pálpebras começaram a se fechar involuntariamente, e Keone aproximou-se de mim com quatro de seus tentáculos e para gentilmente me conduzir a um canto da caverna. Tentei lutar, mas o balanço do oceano e a voz suave do sireno me dizendo que estava tudo bem me levaram a dormir um sono profundo. O primeiro que eu tive em toda a minha existência.

Veja você, aqueles primeiros dias no Jardim dos Polvos foram bastante tranquilos. Confiei naqueles seres marinhos e concentrei-me em melhorar minhas habilidades de caça e navegação, e um polvo me seguia o tempo todo para garantir que eu não me perdesse. Atualmente eu teria ficado bastante irritado com aquilo, mas eu era praticamente um filhote naquela época. A preocupação de Keone era justificável.

Fiz alguns amigos entre os polvos do jardim. Miss Grace era quem geralmente me acompanhava em minhas caçadas, rindo de meus insucessos e comemorando minhas conquistas. Ela tinha um humor ferino, mas eu aprendi a gostar dela. Me explicou muitas coisas sobre o mar e a maré e os polvos, contou-me de suas viagens pelo vasto oceano e comentou sobre os dragões que conhecera. Tudo o que ela dizia ajudava a inflamar minha vontade de encontrá-los, e foi com esse propósito que fui até Keone logo quando voltei da caçada daquele dia. Ele estava dentro de um largo túnel adjacente à reentrância onde ficava o jardim, cuidando dos tentáculos de um dos polvos residentes enquanto cantarolava:

Corações infelizes precisam de mim... Uma quer ser mais magrinha, outro quer a namorada... Eu resolvo? Claro que sim!

Canção um pouco assustadora, não? — comentei, ao que ele riu antes de olhar por cima do ombro para mim.

— Minha tia me ensinou quando eu era pequeno. Ela era má, mas você deve admitir que a música é boa. — ele terminou de curar o polvo, sorrindo para o animal que o abraçou antes de ir embora e voltando-se totalmente para mim. — O que deseja?

— Quero voltar para o meu povo.

— Entendo. — Keone assentiu, pensativo — Imagino que esteja confiante de suas habilidades de caça, então. Mas você não pode voltar para o seu povo com as asas desse jeito. — ele apontou para minhas asas, sempre encolhidas em minhas costas. Não me atrevi a tentar abri-las desde que cheguei, cada movimento que eu fazia com elas dolorido.  — Posso? — indagou, estendendo dois de seus tentáculos para uma delas. Fiz que sim; eu já estava ali há vários dias, confiava nele.

Keone nadou para cima de mim e me fez deitar com a barriga na areia, então usando seus tentáculos para delicadamente abrir minha asa direita. Ele soltou um xingamento baixo, indignado, quando eu gani com a dor.

— Humanos são as piores criaturas deste universo! — falou com raiva, fazendo alguns gestos com as mãos que não consegui identificar. Imagino que eram algum tipo de encantamento. Subitamente, a dor passou. — Está tudo bem com essa, meu caro. Passarei para a outra, sim?

Assenti com a cabeça e então o senti abrir a outra asa, a dor se repetindo para se extinguir novamente logo depois. Keone então me soltou, voltando ao meu campo de visão com um sorriso.

— Pronto. Agora podemos ir. — ele disse alegremente, prendendo os cabelos trançados no alto da cabeça e nadando para fora do túnel. O segui, começando a ficar anincendiado, e o vi delegar funções para os polvos antes de alcançar uma bolsa feita de algas e virar-se para sorrir para mim enquanto todas as criaturas marinhas do Jardim dos Polvos vinham na minha direção para se despedir. Muitos me desejaram boa sorte em minha jornada, mas tudo o que Miss Grace me disse foi ‘não pegue um resfriado, lagartixa do mar’ antes de me oitabraçar. Foi assim que aprendi como o abraço de oito braços de um polvo se chamava.

— Não fique triste, Miss Grace. Eu voltarei para visitá-la. — prometi com humor, fazendo-a revirar os olhos antes de me largar. Então eu e Keone deixamos o jardim, nadando para longe e para cima no mar azul. Eu nunca tornaria a ver o lugar onde nasci de novo, minha promessa para a octópode que me incentivara agora me atormenta. Ela deve estar morta há muito tempo, o que me entristece profundamente. Mas, justamente por isso, continuarei a história.

Nós chegamos até o nível da superfície da água e seguimos para o norte do Jardim dos Polvos, sendo muito mais fácil viajar logo abaixo na superfície-mar para não nos desviarmos com as elevações do fundo ou sermos parados por algum conhecido do meu amigo sireno. Eu me acostumei a dar pequenos saltos para fora d’água, o vento momentâneo em meu rosto para logo após a água salgada encobrir-me sendo um conjunto de sensações que eu prezo até mesmo agora, velho e enorme como estou. Keone sempre me seguia em meus saltos com uma risada, aliviado por me ver melhor do que como estava quando me conheceu.

Em um desses pulos, notei um grande grupo de pássaros voando em formação um pouco acima, no céu. Saltei várias vezes, acompanhando-os e, quando sumiram, meu amigo me olhou com as sobrancelhas franzidas.

— Por que não tenta voar? — perguntou, ao que eu sacudi a cabeça como que para dizer que não queria falar sobre aquilo. A verdade é que eu não tinha uma resposta. Só... Sentia que não iria conseguir. — Você está com...

Mas ele foi interrompido por um alto rugido vindo das nuvens, que reverberara na água mesmo que esta fosse isolante sonora. Ambos nos apressamos em por nossas cabeças para fora, esquadrinhando o céu para ver não uma, mas três enormes silhuetas aproximando-se. Suas sombras eram projetadas nas nuvens e no oceano, e eu quase podia ouvir o bater tão suave quanto poderoso de suas asas.

— Aqueles são... M-meu povo? — indaguei, ao que Keone assentiu com um sorriso.

— Percebe que vai ter que chegar até eles de algum jeito, não é?

— M-mas... Não há uma ilha ou algo assim? — eu estava subitamente aterrorizado. Não estava preparado para aquele encontro tão súbito.

— É, estávamos indo para lá. O Arquipélago de Toldot é onde dragões fazem seus ninhos. Mas estes estão bem aqui, quase acima de nós. Você pode se apresentar para eles e ir com eles até o lugar de onde você vem. — Keone me disse. — Eu sei que parece assustador desse modo, mas pense que falar com três é melhor que com quatro mil de uma vez.

— Acho que você tem razão. — eu concluí hesitante. — Terei que voar, não é?

— É.

— Muito bem então. — respirei profundamente, encarando fixamente as nuvens. — Obrigado por tudo, Keone.

— O prazer foi todo meu. — e ele acrescentou algo que não entendi de primeira.

— O que disse?

— Kymat Lorde Branco. Este é o seu nome. Você precisa de um para poder se apresentar ao seu povo, não é? — ele sorriu e eu assenti, abaixando a cabeça para olhá-lo.

— Obrigado. Nunca esquecerei o que vocês todos me fizeram.

— Também não esquecerei você, meu caro amigo. O Jardim dos Polvos sempre lhe dará as boas vindas, e eu também.

E, com isso, eu voltei a erguer os olhos para o céu. Percebi como um pássaro solitário fugia ao ter avistado as sombras dos dragões acima das nuvens, usando tanto o vento quanto a curvatura de suas asas e cauda para se manter. Eu conseguiria fazer aquilo também?

A resposta é sim. Eu tinha sido feito para voar tanto quanto para nadar. Estava dentro de mim.

Estiquei e encolhi minhas asas como teste, pensando em como conseguir impulso para alçar voo. Então notei: meus pulos eram exatamente pequenos voos.

Sob o olhar de maralegrez de Keone, voltei para dentro d’água e usei meus membros para nadar em alta velocidade para cima. Irrompi para fora em um salto, mas dessa vez abri as asas. O vento cuidou de me levar um pouco para cima, e tive que escalar o ar com todo o meu corpo para conseguir me manter. Olhei para baixo, a figura de meu amigo sireno me acenando ficando menor quanto mais eu me aproximava das nuvens. O ar me acolhia como um filho, assim como o mar me abraçou naquele pulo de penhasco. Ele me dava cócegas na barriga escamosa, fazia carinho em minhas asas e brincava com meu rosto. Já provou do sabor do vento, humano? É delicioso.

E, com esta sensação, minha história termina. Garanto que você não irá querer saber sobre minhas inseguras conversas com aqueles dragões que na época eram pelo menos cinco vezes maiores que meu eu recém-renascido, nem como eles me acolheram e me levaram até o lugar onde eu pertencia verdadeiramente. Não saberá como me apaixonei, ou como foi a sensação de observar meus filhotes saírem de seus ovos e dá-los o alento que eu não recebi em meus primeiros dias. Não será interessante contar como eu recuperei ovos de ladrões humanos e destruí os navios deles, além de tirar as asas de uma Filha de Eloa em troca da misericórdia por dois humanos desprezíveis como você.

Ou talvez você queira saber, pensando bem. Mas minha longa vida é assunto para outra história. Por que eu contei esta e não qualquer outra?

Descubra sozinho.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!