O Preço da Verdade escrita por George L L Gomes


Capítulo 8
Capítulo 08




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Josi estava tendo um sono agitado. A garota havia tido um dia cansativo e teve que praticamente se dividir em duas para dar conta de todas as obrigações que nos últimos dias haviam ficado acumuladas por conta do feriado prolongado. Contudo, ao contrário do que deveria ser a menina tinha sido a última pessoa a dormir em sua casa. Travou por algumas horas uma luta ferrenha contra o sono e contra o cansaço da sua mente, pois tinha medo do que acabaria vendo quando por fim fosse derrotada pela necessidade do seu corpo.

Em sua cama de solteira ela virava de um lado para o outro, o corpo inconscientemente procurando uma posição que a fizesse se sentir segura, sem ter qualquer sucesso. Mesmo não sendo uma das noites mais quentes na cidade, Josi estava coberta de suor, as gotas do líquido salgado escorrendo por sua testa toda vez que ela franzia o cenho. Quando acordasse depois de alguns longos minutos presa naquele pensamento ela não lembraria perfeitamente das imagens de morte que estava vendo, nem dos rostos dos corpos que a cada nova noite se acumulavam ao seu redor, sentiria apenas aquela sensação incômoda dentro de si, como se algo de ruim fosse acontecer ao dobrar a próxima esquina.

Ela, como uma amiga preocupada que sempre foi, não havia dividido essa angústia de todas as noites com os amigos, pois pensava que todos estavam tão traumatizados quanto ela. De certo eles estavam e de diferentes formas cada um enfrentavam suas novas dificuldades, mas nenhum deles estava tendo aquele tipo de sonho. Talvez se ela tivesse contado para alguém, um deles poderia ter se voluntariado a vigiar o seu sono e quem sabe escutasse o nome que ela repetia várias vezes, em sussurros amedrontados. -Sérgio! Sérgio! Sérgio…

♦ Cinco dias Antes ♦

Logo que chegaram à caverna da Cuca entregaram ao Saci o punhado de cabelo do Bradador que havia conseguido graças à ajuda de Letícia. O grupo havia percorrido o caminho de volta de forma rápida, correndo o mais rápido que conseguiam afinal a vida de Joyce estava dependendo deles e o prazo que tinham se aproximava do fim. Por sorte não encontraram outros imprevistos durante o retorno.

—Pensei que vocês tinham morrido! - o negro falou, respirando aliviado, pegando o último ingrediente que faltava para a poção que já borbulhava dentro de um pequeno caldeirão. Nenhum deles chegou a falar, mas agradeceram internamente o fato de que o antídoto não estava sendo preparado no mesmo caldeirão onde eles quase foram cozinhados pela Cuca. -E quem é essa? - ele perguntou, olhando Letícia de baixo para cima. - Ela cheira a frutos do mar. - por mais estranho que fosse a frase foi dita como um elogio. O olhar do Saci era de completa admiração e encanto para a garota que mesmo não estando na sua nova forma sobrenatural, ainda exalava uma áurea de sedução.

—Primeiro, preciso de alguma coisa para cobrir os meus peitos. Segundo, você não deveria se concentrar no que está fazendo? - Embora cada movimento da garota agora fosse repleto de delicadeza, sua personalidade continuava forte e irreverente.

—Acho que alguém ocupou o cargo de mula. - o rapaz resmungou, voltando a mexer no caldeirão, equilibrando-se sobre a sua única perna.

Josi encontrou uma manta a qual Letícia usou para se cobrir. Mesmo que a água do açude onde ela havia passado as últimas horas fosse muitas vezes mais gelada do que o ar na caverna, ela sentia mais frio naquele espaço do que quando submersa. -Quanto tempo demora? - perguntou, olhando para dentro do pequeno objeto de ferro, vendo que agora o líquido adquiria o tom dourado.

—Nadinha. Já está pronto! - respondeu o Saci pegando uma concha, enchendo uma cuia de tamanho médio que era grafada com diversas runas. -Fiquem aqui, eu vou dar a poção para a amiga de vocês e se tivermos sucesso, dentro de algumas horas saberemos. Deixei um pote com unguento naquela estante, passem nos seus ferimentos.

Depois que o novo amigo sobrenatural do grupo se afastou, os quatro restantes da sala se acomodaram, sentando-se escorados na parede. Letícia ficou entre Josi e George, que a abraçavam mais uma vez e Sérgio que por sua vez abraçava o namorado. Aquele simples gesto trouxe conforto e alívio para eles que estavam tão exaustos quanto era possível sem perder os sentidos.

—Vocês precisam cuidar desses ferimentos. - Josi lembrou, levantando-se e pegando o pote onde havia a mistura feita pelo Saci e que logo passou a ser aplicada nos machucados dos dois garotos, pelas duas meninas.

—Vocês devem estar se perguntando o que aconteceu comigo, certo? - Letícia aproveitou o momento, parte porque ela mesma queria contar e parte porque conhecia os amigos e sabia que eles estavam bem curiosos, para poder explicar o que havia acontecido com ela. -Depois que vocês pularam eu voltei para dentro da mata. Corri direto para cima daquela bruxa do caralho e acho que ela não estava esperando por essa loucura! Já que eu definitivamente não teria coragem de pular, quis ao menos dar mais tempo para vocês escaparem dela. -Enquanto falavam, Letícia olhava nos olhos de cada um, fazendo-os perceber que ela não se arrependia do que fez. -Peguei a crocodilo de surpresa e segurei no pescoço dela e por um momento achei que ia conseguir esganar aquela desgraçada, mas ela era mais forte do que eu. - a garota levou a mão até o próprio pescoço, relembrando a dor que sentiu. -Ela rasgou a minha garganta com aquelas garras e me arrastou. Acho que ela iria me trazer novamente para cá! - disse refletindo, olhando ao redor antes de continuar. -Mas eu não ia a deixar vencer assim tão fácil. Usei o restinho de forças que tinha para me soltar dela e por acidente acabei caindo em uma ribanceira, onde rolei até cair em outra parte do açude.

Sérgio interrompeu a fala da garota com uma risada que ecoou pela caverna, levando em seguida as mãos à boca, tentando se conter. Josi e George seguraram o riso em respeito à amiga, até que a própria Letícia começou a rir.

—Seria trágico se não fosse cômico! - continuou depois que todos conseguiram controlar as risadas que pensaram nunca mais serem capazes de proferir após tantos momentos de desespero e medo, mas que agora era tão espontânea que a barriga já começava a doer. -Pensei que ia morrer afogada e ainda lutei por um tempo para prender a respiração, mas sentia como se estivesse queimando de dentro para fora e me entreguei. Ao contrário do que eu pensei, a angústia só durou enquanto eu estava lutando, depois que eu aceitei o meu destino à dor passou. - Embora eles não estivessem sob o efeito da magia do Saci que os fez ver os pensamentos como imagens de um filme, a forma como Letícia falava, em um tom mágico, possibilitou que os três ouvintes imaginassem cada cena. -Foi então que eu ouvi o canto! A música vinha por todos os lados e eu só quis ir em direção a ela, mas na verdade, foi o encanto que veio ao meu encontro. Seis sereias me encontraram e usaram seus poderes para me salvar! Segundo elas o lobisomem da região matou a Sereia daqui e elas, como irmãs, vieram atrás de vingança.

—O Bradador lamentou a morte dessa Sereia pouco antes de te encontrarmos. - George comentou, lembrando-se do que Josi havia dito ao verem mais uma vez a cabana onde morava o lobisomem.

—Elas me deram uma segunda chance para que eu pudesse vingar a morte da nossa irmã. - a garota sorriu ao perceber a forma como se referiu a Sereia morta. -É estranho já me sentir parte das Iaras. Se você pudessem ter visto! Enquanto eu me transformava eu vi cada uma de nós, em todo o país. Somos tantas! - a empolgação dela chegava a ser contagiante.

—Mas por que salvaram você?! - Sérgio ficou curioso.

—Por causa do sacrifício que fiz para dar mais tempo a vocês. A primeira de nós, a Iara que originou o mito, era uma índia guerreira! Erroneamente as pessoas contam sua história como se ela tivesse assassinado os irmãos porque eles sentiam ciúmes dela, quando na verdade ela os matou para salvar sua aldeia. O pai de Iara, no entanto, ficou contra ela e a jogou no rio, em uma noite de lua cheia. Os peixes a salvaram e ela se transformou na primeira Sereia do nosso país! Ela foi fruto de um sacrifício.

Josi estava prestes a perguntar sobre o fato das sereias serem conhecidas por encantarem os homens e levá-los para o fundo do mar, mas não teve tempo uma vez que o Saci retornou para a sala onde eles estavam.

—Ela acordou! A poção funcionou. - ele declarou, sorrindo largamente.

A recuperação de Joyce aconteceu em algumas horas e já nos primeiros raios do sol a garota já sentia como se nada tivesse acontecido e nem parecia ter estado perto da morte há tão pouco tempo. Josi e Letícia a ajudaram a arrumar o novo corte de cabelo que acabou por combinar com a personalidade descontraída da garota. O grupo ainda teve tempo para vasculhar a caverna e encontraram os seus pertences. Depois de uma refeição a base de frutas e raízes, muito bem preparadas pelo anfitrião da caverna, puderam esclarecer algumas dúvidas sobre o mundo sobrenatural com o Saci.

—Vejam, o que vocês precisam saber é que a vida de vocês, queiram ou não, mudou completamente pois foram tocados pelo sobrenatural e sobreviveram. Alguns de vocês até se transformaram em um de nós! - ele apontou para Letícia e Joyce, que se entreolharam. As garotas sabiam que eram diferentes agora, mas ainda assim sentiam-se as mesmas de antes. -Eu não sou o maior conhecedor do mundo sobrenatural, mas já vivi tempo o suficiente como Saci para saber que o que aconteceu com vocês talvez nunca tenha acontecido antes com nenhuma outra pessoa. E fatos assim atraem a atenção do mundo sobrenatural!

—O que você quer dizer com isso? - Josi perguntou, preocupada.

—Quero dizer que vocês mataram três seres mitológicos e mesmo que dois deles não façam falta alguma, no caso a Cuca e o Lobisomem, outros seres podem se sentir ameaçados. Todos nós conhecemos as histórias do tempo em que os humanos nos caçaram, alguns até mesmo viveram nessa época!

—Olha, eu entendo o que você quer dizer, mas nós não matamos uma bruxa e um lobisomem porque queríamos. Apenas nos defendemos e você sabe disso! -George começou a defender o grupo. -E isso não nos faz a partir de agora João e Maria, caçadores de sobrenaturais! Não vamos atrás de vocês. - disse olhando para os outros que concordavam com ele, voltando por fim a encarar o Saci.

—Isso não quer dizer que eles não venham atrás de vocês!  Vocês sabem da verdade agora, a verdade escondida nesse mundo. E vocês sabem qual o preço da verdade? - o rapaz olhou para cada um, esperando uma resposta que não veio. -O preço da verdade é a responsabilidade. Agora, vocês são responsáveis por manter esse segredo longe dos naturais!

Algumas horas depois o grupo deixou a caverna. Josi devolveu o capuz do Saci e todo o grupo o agradeceu por toda a ajuda que haviam recebido da criatura, que se colocou a disposição caso voltassem a precisar deles. Ele ficaria na caverna da Cuca, pois havia ali muitos segredos a serem descobertos! Antes de o grupo ir, o Saci os presenteou com frascos de poções, unguentos e livros que poderiam ser úteis para a nova realidade a qual aqueles jovens teriam que enfrentar.

Aquele era o último dia do total de três em que eles deveriam ter descansado e se divertido, mas em vez disso tiveram que lutar por suas vidas várias vezes e apesar do pesadelo ter chegado ao fim, eles ainda precisavam encontrar Marcos!

Com a morte da Cuca a maioria dos feitiços que havia naquela serra foram aos poucos sendo quebrados e caminhar pela mata tornou-se mais fácil uma vez que não havia qualquer magia que fazia com que os visitantes se perdessem ou fossem atraídos para uma armadilha. Todavia, o grupo já estava a algumas horas caminhando e não haviam encontrado mais do que alguns rastros do amigo!

—Pelo que o Saci disse, Marcos já deve ter voltado à forma humana. Mas ter se transformado por duas noites seguidas pode tê-lo deixado confuso e em alguns casos as primeiras transformações podem até deixar o indivíduo sem memória. - George comentou, confirmando a informação em um dos livros que ganharam de presente. -Se a nossa nova bruxinha já tivesse experiência, poderia fazer alguma magia de localização. - continuou, olhando para a prima que por um momento pareceu desconfortável com a sugestão.

—Ao menos ontem foi à última noite de lua cheia. - Letícia comentou, tentando dar um pouco mais de esperança para Josi. -Vamos encontrá-lo!

O fim da tarde já se aproximava e o grupo tinha decidido seguir para a cidade em busca de alguma informação. -Além disso, temos que dar sinal de vida para as nossas famílias. - Joyce disse, imaginando o quanto os pais deveriam estar preocupados. Se eles ao menos imaginasse por tudo que ela e os outros haviam passado.

Estavam encaminhando-se para a trilha novamente quando escutaram um som forte e conhecido, que levou todos a encarar o céu. Pela intensidade do som o helicóptero estava bem acima deles e não demorou muito para que avistassem bombeiros, policiais e guardas florestais vindo ao encontro deles. Josi, no entanto, foi a primeira a avistar o rapaz alto e de traços fortes no meio deles! Logo a garota estava correndo ao encontro do namorado, abraçando-o com força.

—Trouxe o resgate! - Marcos falou, beijando a garota.

♦ Um Mês Depois ♦

Já havia se passado um mês desde que os seis haviam descoberto o mundo sobrenatural e ainda lembravam com alívio dos acontecimentos. Depois que foram resgatados pela polícia e todos os outros envolvidos, tiveram que dar várias explicações. Por sorte, graças à sintonia que havia entre eles, conseguiram inventar uma história convincente que os rendeu alguns dias de fama uma vez que a notícia de que “seis jovens haviam se perdido na Serra de Aratanha após serem vítimas de um sequestro relâmpago” foi pauta dos jornais e telejornais da cidade e região metropolitana.

Marcos depois da segunda noite de lua cheia foi encontrado na cidade próximo ao carro de Josi, no estacionamento onde o grupo havia deixado o veículo. Depois de pensar alguns dias, George levantou a hipótese de que o rapaz procurou algum símbolo da sua humanidade e foi levado até a Doblô que era uma grande representatividade da namorada. Logo que esteve consciente, o rapaz acionou as forças responsáveis e subiu a serra com um exército de homens para resgatar os amigos!

Segundo os exames médicos o grupo estava bem e não foi encontrado grande alterações nos exames pelo qual eles passaram, no qual foi recomendado apenas algumas sessões com um psicólogo para tratar do estresse pós-traumático. Bem, os naturais não tinham como saber que o grupo havia sobrevivido aquele momento com muito mais do que apenas um estresse pós-traumático!

Josi todas as noites durante o último mês tinha pesadelos que a atormentavam, mas os quais ela não conseguia se recordar ao acordar, apenas sentia as más sensações que as imagens a causava. Marcos sentiu que com a aproximação da próxima lua cheia ficava mais difícil controlar seus impulsos agressivos e sentia uma raiva incessante dentro de sí. Somado a isso os seus sentidos pareciam ter se tornado mais aguçados e por vezes, ao contrário do que se pode imaginar, isso era uma maldição. Não havia mais um lugar em que ele conseguia ter paz, pois escutava todos os sons ao seu redor como se estivesse cercado de paredões de sons, cada um emitindo um ruído diferente, diretamente dentro da sua cabeça, sendo impossível conseguir distinguir alguma coisa. Sentia todos os odores, bons e ruins, ao ponto de sentir os sabores na boca.

Joyce mais do que com o novo corte de cabelo, estava tentando se acostumar com as magias involuntárias que por vezes acabava executando em momentos de fortes emoções. Em dada noite teve um pesadelo no qual se viu diante de um grande espelho e pouco a pouco sua pele ia se soltando do corpo até revelar sua verdadeira identidade e o espelho refletir a imagem de uma mulher crocodilo. A garota acordou gritando e viu que o quarto onde dormia pegava fogo em vários cantos! Por pouco o fogo não consumiu todo o local e apesar de terem atribuído o incêndio a um curto circuito, a garota sabia que ela era responsável, ou melhor, o seu medo de se transformar em uma Cuca era o responsável.

Letícia cada dia mais perdia a aura de sedução que a cercou logo depois da transformação e a pele antes bonita adquiriu um aspecto ressecado, os cabelos que por um tempo estiveram sempre sedosos e bem arrumados sem qualquer esforço perderam a cor e o brilho. O pior, no entanto, era o sentimento de não pertencer mais àquele meio. A garota não conseguia mais se sentir a vontade perto das pessoas, até mesmo dos amigos. Todavia, isso não aconteceu apenas com ela! O grupo pouco se viu depois dos dias de terror que passaram juntos, com exceção de Sérgio e George que moravam na mesma casa.

Contudo, Sérgio andava a todo o momento assustado, realmente apresentando todos os sinais de um estresse pós-traumático, o qual não podia ser tratado adequadamente uma vez que ele não poderia falar sobre o que realmente aconteceu. Na verdade, ele passou a evitar qualquer assunto relacionado ao que aconteceu. Encontrou na negação uma forma de se sentir seguro! George, por outro lado, se afundou nos livros e em qualquer conteúdo que conseguiu encontrar sobre o assunto, procurando aprender cada vez mais, quase como uma obsessão. E foi justamente ele quem reuniu o grupo novamente.

—Acredito que Letícia está ficando doente porque agora sua natureza não é mais a mesma. Ela precisa voltar para as águas, mesmo que por um tempo! E a lua cheia está chegando mais uma vez e isso explica os sintomas que Marcos anda sentindo. Precisamos tirar ele da cidade, levá-lo para algum local onde a transformação dele não chame a atenção e ele não machuque ninguém. - embora aquela fosse uma possibilidade que todos sabiam que poderia acontecer, ninguém havia tido coragem de falar tão claramente. -E a Joyce precisa começar a aprender a controlar os poderes. Além do livro que eu peguei da Cuca, o Saci nos deu outros livros que podem ajudá-la.

—E qual é a sugestão? - Josi perguntou.

A princípio George pensou em retornar para a serra onde tudo começou, mas levando em consideração o estado do namorado e tudo que eles haviam sofrido naquele local, desistiu da ideia.

—Podemos alugar uma casa de praia, Marcos precisa ficar fora pelo menos sete noites. Acredito que um final de semana seja o suficiente para Letícia! Encontrei uma casa de praia em Paracuru que fica bem isolada e está em um preço acessível por ser longe de tudo e é exatamente o que precisamos.

Depois de discutirem a ideia por algum tempo, todos concordaram que era o melhor a ser feito. Josi foi quem mais teve dificuldade em convencer a família a deixá-la viajar novamente, mesmo sendo maior de idade, a garota tinha uma ligação muito próxima com os pais que ainda não haviam se recuperado do susto que passaram. Até mesmo para o grupo tudo ainda era muito recente. Contudo, o que mais estava incomodando a garota era aquela sensação de que algo ruim estava prestes a acontecer.

A viagem até o local durou algumas horas e o grupo pouco falou durante o caminho. Sérgio foi quem mais relutou em ir, mas por fim aceitou unicamente por medo de que algo acontecesse com George. O grupo teve o cuidado de estar mais preparado dessa vez para qualquer imprevisto e depois que chegaram ao local, logo iniciaram os preparativos, tinham menos de cinco horas até o início da noite.

A casa era bonita e aconchegante, muito melhor do que imaginavam pelo preço que haviam conseguido o pacote de sete dias. O muro era alto e possuía cerca elétrica o que impediria que qualquer intruso pudesse ter acesso facilmente ao local. - Qualquer um que entrar aqui sem ser convidado vai se arrepender. -Marcos comentou, com um sorriso diabólico no rosto. Um grande espaço gramado, uma piscina e uma garagem para quatro carros preenchiam a frente da casa após o portão de entrada, sendo seguida de uma varanda grande que fez os garotos pensar em como teria sido divertido se pudessem ter chamado outros amigos e os familiares para estar ali com eles. No entanto, foram obrigados a mentir falando que ficariam em uma pousada, evitando assim qualquer convidado surpresa.

A casa possuía três quartos e eles escolheram o mais afastado da entrada para servir de cela para Marcos. Quando a noite chegasse era ali que eles prenderiam o lobisomem! Retiraram do quarto todo o material que tinham comprado e depois de verem mais uma vez os tutoriais de isolamento acústico no youtube, começaram a trabalhar distribuindo caixas de ovos, madeiras e isopor pelo quarto. Mesmo a casa sendo bastante isolada, eles sabiam que o uivo e o rugido do lobisomem poderia ser escutado a quilômetros de distância e tinham esperança de que o isolamento ao menos amenizasse um pouco isso.

Depois que terminaram, trouxeram as grossas correntes de ferro que imobilizariam Marcos. -Vamos deixar Letícia na praia e depois repassamos o feitiço que Joyce vai usar. - George declarou, sentindo-se cada vez mais nervoso à medida que as horas se passavam.

Os fundos da casa dava direto para a praia a qual eles tinham acesso por um pequeno portão. Segundo o proprietário, eles teriam praticamente uma praia particular! Todos acompanharam Letícia até a areia da praia e a simples proximidade com o mar já parecia fazer bem a garota. -Quem diria que logo você que morria de medo de nadar fosse agora precisar fazer isso para ficar bem. - George comentou com a irmã, segurando as mãos da Sereia enquanto entravam na água.

—Estão com os tampões? - ela perguntou, recebendo um movimento afirmativo do irmão. George depois de ler tudo que podia sobre Sereias levantou a possibilidade de que durante o momento de recuperação de Letícia ela viesse a cantar, algo que era natural e inerente ao ser no qual a garota se transformara. Com isso eles precisariam de proteção para não serem encantados e o único jeito seria não escutar a música hipnótica.

Depois de soltar a mão do irmão, a garota se despiu e entregou as roupas a ele, mergulhando com graciosidade, submergindo nas águas do mar, desaparecendo. George ainda esperou alguns minutos antes de sair do mar e voltar para a areia e se reunir novamente com os amigos. -Acho que deu certo. Ela voltará quando estiver melhor. -Falou, tentando se convencer. Uma parte sua tinha medo de que uma vez que estivesse novamente na sua forma de Iara, a irmã não desejasse mais voltar para o mundo dos naturais. -Vamos, ainda temos que ver se o feitiço da Joyce vai servir.

George ajudou a prima a encontrar um feitiço que pudesse ajudá-los a conter Marcos dentro do quarto. Contudo, todos os livros que eles pegaram na caverna da Cuca eram escritos em línguas, que depois de uma longa pesquisa feita por George descobriu serem indígenas. Ele teve que visitar a biblioteca pública da cidade para conseguir traduzir algumas palavras do ofaié, uaioró e guató, tendo mais sucesso com palavras cognatas dessas línguas e do tupi-guarani. -Seria muito bom ter a ajuda do Google tradutor! - George comentou com Joyce, tentando deixar o clima mais ameno.

Os dois estavam reunidos no espaço aberto na parte da frente da casa, próximos a piscina, enquanto Josi estava com Marcos no quarto onde ele ficaria preso dentro de algumas horas e Sérgio na varanda, observando os dois de longe. Os dois abriram o livro e passaram as folhas até acharem a certa. -Pelo que consegui traduzir, esse é um feitiço de isolamento, de proteção de uma área.

Joyce olhou para o texto e ficou atenta a cada palavra, lendo-as em sua mente, alheia ao que o primo estava falando até pegar das mãos dele o livro. Sentiu a vista ficar turva por um momento e piscou algumas vezes até voltar a encarar o texto e ver que algo havia mudado.

—Como você fez isso? - George perguntou em um misto de admiração e susto.

—Isso o que? - o garoto não precisou responder, pois logo ela percebeu o que havia mudado no livro. As palavras antes escritas em línguas que eles não tinham qualquer domínio, agora estavam em português.

—Não acredito que perdi semanas tentando traduzir essas coisas quando você podia fazer isso! - ao menos tempo que estava feliz, o garoto sentia-se frustrado. Depois de rirem da situação, descobriram que o feitiço que eles usariam servia para retirar o oxigênio de uma determinada área e não para protegê-la. -Bem, ao menos descobrimos isso antes de testar.

Já estavam a poucos minutos do nascer da lua quando encontraram um novo feitiço que talvez pudesse ajudar, mas não tiveram tempo de testar. Aquela seria a primeira vez que Joyce usaria sua magia de forma consciente e todos estavam muito inseguros com muitas coisas.

—O livro de criaturas que o Saci me deu fala que um lobisomem transforma-se de forma mais rápida se estiver iluminado pela luz da lua. Aqui no quarto ele não vai ver a lua, mas continuará sentindo os efeitos dela, então é certo que ele vai se transformar. - ao contrário dos feitiços, essa era informação que George tinha certeza. -Então é melhor amarrarmos logo ele.

Marcos envolvido pelas grossas correntes de forma que seus braços ficassem juntos a lateral do corpo. As pernas também foram presas juntas e deixaram-no deitado na cama que havia no quarto, o único móvel que deixaram ali. Procuraram deixá-lo o mais confortável quanto era possível.

—Vou ficar aqui com ele até os primeiros momentos da transformação. -Josi afirmou e ninguém teve coragem de argumentar. Todos viam o quanto à garota estava preocupada com o namorado e como tudo aquilo pelo o qual ele estava passando a deixava triste.

—Se fosse com você, eu também estaria com o coração partido. - George falou, abraçando Sérgio. -Logo ela que sempre teve medo dessas coisas, agora é namorada de um lobisomem. Temos que descobrir uma forma de livrá-lo dessa maldição! - o garoto tinha lido todos os arquivos que conseguira sobre lobisomens, mas ainda precisa traduzir outros e carregava a esperança de que neles pudesse encontrar alguma saída para a atual situação do amigo.

Marcos conseguiu controlar os gritos de dor que a transformação causava durante as três primeiras horas. As 21h Josi deixou o quarto a pedido do namorado que não queria que ela visse todo o processo. Ele resistiu o quanto pôde, mas poucos minutos depois que a garota saiu do quarto, as garras começaram a crescer de forma assustadoramente rápida, assim como os músculos passaram a adquirir outras formas e os pelos surgirem pelo corpo. Os dentes que depois de um longo tratamento com aparelho de correção haviam ficado alinhados transformaram-se em presas grandes demais para um humano, mas que se encaixaram perfeitamente quando a estrutura óssea do maxilar se estendeu até formar um focinho. As orelhas tornaram-se longas e pontudas e o cóccix cresceu até formar uma calda!

O primeiro rugido foi ouvido às 23h de forma abafada pelos três que estavam do lado de fora da porta. -Acho que é a hora de tentar o feitiço, Joyce. - George falou, segurando a mão de Josi, puxando-a para uma distância segura enquanto a prima se preparava. Os dois observaram a garota fechar os olhos e respirar fundo. -Você consegue, Joyce. Confie em você mesma. - o garoto falava palavras de incentivo. Se pudesse ele trocaria de lugar com ela, afinal sempre foi um fã dessas figuras fantásticas, mas sabia que se o destino a escolheu para tal era porque ela era a única capaz. -O poder está dentro de você.

Joyce escutava as palavras do primo e refletia sobre elas, ao mesmo tempo em que imagens da Cuca preenchiam a sua mente. Ela sabia que era capaz de executar a magia, mas temia que isso a aproximasse ainda mais do seu destino. Temia que quanto mais aceitasse a sua nova condição, mais se transformasse em uma Cuca! O rugido de dentro do quarto fez os três se assustarem e olharem apreensivos para a porta. George pensou por um momento se não seria melhor eles irem para os fundos da casa como Sérgio havia feito. Ouviram novamente o rugido do lobisomem, seguido de várias batidas contra a porta. Josi sentiu a sensação de terror gelar seu corpo por dentro e soube que algo de ruim iria acontecer logo. -Joyce, agora! - gritou, olhando para a amiga.

O grito de Josi fez com que em segundos Joyce se lembrasse do momento em que o lobisomem a atacou na clareira da serra e do momento em que Marcos a salvou, condenando-se assim aquela realidade. De certa forma, ela sabia que a culpa da transformação do amigo fora sua e devia sua vida a ele. Ela tinha que protegê-lo!

Josi e George viram quando a garota esticou as mãos em direção à porta. Os dedos indicadores e polegares se encontrando verticalmente, formando um triângulo, enquanto os demais alinhados na horizontal apontavam para o objeto de madeira! Os olhos da garota adquiriram uma coloração verde esmeralda, igual à cor da energia que eles viram surgir em volta da menina. Sem que eles esperassem, Joyce se virou na direção deles, estendendo as mãos, ainda unidas na direção dos dois.

Convoco a força dos espíritos da natureza, servos do bem, filhos da mãe terra. Rogo-lhes que assim como a mãe protetora guarda os seus filhos, defendam os meus aliados. Ofereço o meu corpo como escudo, o meu sangue como barreira, o meu poder como proteção.

Diante dos olhos dos garotos, viram surgir diferentes seres brilhosos que se assemelhavam a fadas, que voaram em direção a eles. George sabia que aquele não era o feitiço que eles haviam lido no livro e nem se recordava de ter visto igual, mas não teve tempo de pensar muito a respeito já que no mesmo momento em que os espíritos de luz os alcançaram, a porta do quarto foi arrombada e de dentro surgiu um lobisomem que se livrava dos últimos pedaços de correntes que o prendiam.

A criatura media mais de dois metros de altura e embora não tivesse a mesma aparência grotesca do lobisomem que enfrentaram na serra, não deixa de ser assustador. Josi e George viram quando Joyce mudou a posição das mãos, apontando dessa vez para o lobisomem, mas antes que pudesse conjurar um novo feitiço, a garota recebeu um ataque que a lançou longe, contra a parede.

—Marcos, não! - Josi gritou ao ver a amiga ser atacada o que chamou a atenção do lobisomem que a encarou. Por alguns segundos os olhos acinzentados da criatura encararam os da garota e ela quase acreditou que o homem havia tomado controle sobre a criatura quando o mesmo correu na direção dos dois, percorrendo o caminho que os afastava tão rápido que eles não tiveram tempo de reação.

O lobisomem saltou sobre eles, dentes e a garras a mostra, prontos para estraçalha-los, mas antes que pudesse tocar no corpo de Josi e George, uma barreira mágica verde esmeralda surgiu na frente dos dois, protegendo-os, lançando a criatura para longe deles. Abismados os dois viram quando o lobisomem se levantou e correu para os fundos da casa.

Logo que o lobisomem sumiu de vista, Josi correu na direção de Joyce quebrando a barreira de proteção e George correu na direção dos fundos da casa, na mesma direção que o lobisomem seguiu. O garoto chegou ainda a tempo de ver a criatura jogar o corpo de Sérgio para o lado e seguir correndo em direção à praia!

George sentiu o seu coração parar de bater por alguns segundos e quase não teve forças para continuar a andar até o local onde o namorado estava. Com as lágrimas já escorrendo pelo rosto, ele se ajoelhou ao lado de Sérgio e o tomou em seus braços, sentindo o sangue quente do rapaz em sua própria pele. Quando Josi e Joyce chegaram à porta, não tiveram coragem de se aproximar no primeiro minuto, o choro e os gritos de George paralisou as duas onde estavam. Josi imediatamente conseguiu lembrar-se dos pesadelos que teve durante os últimos dias e noite após noite ela havia visto aquela mesma cena. -Sérgio… - ela sussurrou.


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