Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 20
Cães que farejam sentimentos


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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Capítulo 20 -- Cães que farejam sentimentos 

 

Ester parecia muito com um cão farejador. Sério, ela parecia farejar quando eu estava escondendo alguma coisa ou prestes a fazer besteira. Sem qualquer motivo, ela enfiou a cara dentro da minha mochila e revirou tudo até encontrar a carta. Ela abriu, leu, refletiu, suspirou e sorriu ironicamente para mim. Mas não falou nada. Quando deu horário de sair fomos ao banheiro juntas e ela finalmente falou alguma coisa. Era típico dela esperar estarmos sozinhas para me dar uma bronca; confiávamos nos meninos, mas isso era um lance de garota para garota, então seria melhor deixá-los de fora. Também porque os dois me dariam um tremendo sermão... e aguentar três de uma vez não seria legal. 

 

— Você guarda essa coisa tipo um amuleto ou quê? — Ela perguntou. — Não vou te julgar, cada louco com suas manias... mas você não tinha jogado ela fora? 

 

Suspirei. 

 

— Encontrei ela dentro de um livro na biblioteca. Cartas para o passado, lembra como eu o lia muitas vezes? Coloquei dentro dele e devolvi... ia jogar fora, mas o Nicolas chegou na hora. — Ester cruzou os braços e fez aquela cara de quem me conhecia muito bem. — Eu não consegui, tá legal? 

 

— Joga essa coisa fora, eu tô falando sério. — Ela tirou um batom da bolsa, me surpreendendo. Especialmente porque o batom era meu. Ela tinha o pegado emprestado faz muito tempo, e eu até esqueci. Mas dane-se, não ligo para isso. — Você fica com meus gibis da turma da Mônica jovem e eu com seu batom. — Fiz um gesto para dizer que tudo bem. — Lizzy, você sonha demais. Sonha com coisas impossíveis, aliás. Essa carta é o suficiente para te fazer voltar dois anos e viver tudo aquilo de novo. 

 

— Eu sei... 

 

— Você conheceu um cara legal, bonito e inteligente. Aliás, estou começando a achar que a família dele tem dinheiro. Muito dinheiro... 

 

— Ester! 

 

— Tô brincando. A questão é que você tem de esquecer essa coisa toda do passado. 

 

— Difícil, já que sei tudo que está escrito de cor. 

 

— Espero, de verdade, que isso não signifique nada demais; só que você tem uma ótima memória. 

 

— Não guardo rancor, nem nada assim. Mas perdi todas as esperanças com a última coisa que ouvi dele. É meio difícil esquecer. — Saímos do banheiro de braços dados. — Eu seria muito idiota se ainda mantivesse alguma esperança. 

 

— Somos filhas do Rei, minha querida. Não precisamos nos humilhar para ninguém! — Ester me fez sorrir. — Mas o que ele disse na última vez que se falaram? 

 

— A última coisa que me disse? "Melhor você me esquecer. Se tem qualquer intuito de que voltemos a ser amigos, esquece. Vai cada um para um lado, e acabou." — Dei os ombros. — Não tive coragem de falar nada depois disso. 

 

Eu não tinha falado isso para Ester. Para ninguém, aliás. Todos sabiam que eu tinha parado de falar com ele... mas pensavam que foi uma decisão minha. Enfim, isso não importava mais. 

 

— Veja pelo lado bom: Agora você tem o Nicolas! Que é bonito, inteligente... tem dinheiro. 

 

— Ester! 

 

— A parte importante é que você esqueceu o bobão do Roger. Seguiu em frente e agora está tudo bem. Só não volte para o passado, tá legal? — Ester e eu suspiramos juntas; concordei. — Vamos tomar um milk shake? 

 

— De ovomaltine seria ótimo... — Considerei a ideia. 

 

— Vamos ao shopping essa semana, ok. — Ester não estava perguntando, e sim exigindo. Acompanhá-la devia ser uma obrigação minha por ser sua melhor amiga. — Preciso de maquiagens novas e umas roupas. 

 

— De onde você vai tirar dinheiro para isso? 

 

Ela suspirou e deu os ombros. Ester iria usar o fundo de emergência que sempre fazíamos. Guardavámos todo dinheiro que dava, e quando precisávamos ou queríamos usávamos para comprar qualquer coisa. Já fazia um ano e pouquinho desde a última vez em que mexi no meu, e ela provavelmente tinha o mesmo tempo. Nós duas fazíamos isso porque de vez em quando batia uma vontade comprar e se distrair, aqueles dias ruins que toda mulher tem... e não tínhamos dinheiro nenhum, daí veio a ideia de juntar dinheiro para essas ocasiões. 

 

— Vamos sexta, depois da aula. — Ester sorriu feita uma boba quando viu seu namorado no portão, falando algo que parecia ser muito importante. — Não liga, ainda estou na fase de boba apaixonada. 

 

— Eu não vou fazer meu trabalho com ele! Vou acabar fazendo tudo sozinho, como da última vez. Ninguém vai se aproveitar mais de mim! — Erick bateu no peito, mostrando-se indignado. 

 

— Já falei que vou fazer com você, cara. — Disse Nicolas. 

 

— Acontece que eu também não quero fazer com você. 

 

— E por que não? 

 

— Porque você é metido demais. 

 

— Problema seu, ia se dar bem ficando comigo. Além de tudo, sou muito inteligente. 

 

— Viu só? — Erick abraçou Ester com um braço. — Qual é a boa? 

 

— Milk shake. — Ester disse, procurando algo com os olhos. — Cadê os meus meninos? 

 

— Foram direto para centro, em uma loja onde os jogos são mais baratos. Matheus pediu para avisar que vai na sua casa hoje à tarde, Lizzy. — Disse Nicolas, colocando o braço em volta dos meus ombros. 

 

— Estou sem dinheiro, boneca. — Avisou Erick. Nicolas e eu trocamos um olhar cúmplice; boneca? Ah, que coisa fofa. Ele percebeu. — Começo de namoro, sabe como é. Ainda precisamos de um tempinho antes de começar com os xingamentos carinhosos. 

 

— Eu pago. — Ester disse. — E a Lizzy paga para o Nicolas, certo? — Concordei. — Ótimo. Quero um de abacaxi. Vamos, bebê.

 

Nicolas e eu rimos sem disfarçar. 

 

— Vamos, bebê. — Olhei para ele. 

 

— Vamos, boneca. 

 

[...]

 

Deitada em minha cama com uma pilha de cobertores, deixei meu livro de lado e parei para ler a carta. "Penso em um futuro com você..." que jeito irônico de começar, levando em conta que cinco meses não havia mais futuro nenhum para nós. Tive até vontade rir. É incrível como sempre acreditamos em palavras, mas acontece que palavras não amam ninguém. Tento não pensar muito no passado, mas as vezes ele parece querer voltar para dar um oi. Pelo menos eu já não ficava afetada ao lembrar, nem chorava mais como uma garotinha boba... 

 

— Lizzy? — Matheus entrou no quarto e fechou a porta. Pelas roupas e pela mochila devia ter vindo direto do centro para cá. Já eram cinco da tarde e a mãe dele devia estar surtando. — Adivinha quem comprou Just Dance? Vamos dançar muito agora. 

 

Tomás deu seu Xbox antigo para ele. Quando comentei que Matheus queria um, Tomás ofereceu o dele. Não estava velho, mas foi completamente substituído por outro videogame novinho. Matheus ficou nas nuvens e agradaceu a Deus pelo milagre. Antes de vir pegá-lo ele foi a cidade comprar jogos novos e agora estava com sorriso maior do que o próprio rosto. 

 

— Você está com uma cara... — Ele largou as sacolas no chão e sentou na cama comigo. — O que foi? 

 

— Por que os homens são tão bobões? — Soltei, deixando ele colocar o braço debaixo da minha cabeça. 

 

— Nem todos os homens são. Temos um jeito diferente de ver as coisas, e as vezes nos expressamos mau. Fazemos o que parece certo da maneira errada. Só não generaliza, não são todos. 

 

— A maioria? 

 

— Talvez... o que aconteceu? 

 

— Tô pensando no passado. 

 

— No Roger? Pensei que ele fosse página virada. 

 

— Ele é. Só não consigo entender. Tinha tudo para dar certo! 

 

— Olha só, acho que você sofreu tanto porque criou expectativas demais. Você pensou muito adiante ao invés de viver o momento. Além disso, quis tentar insistir no que claramente não era para dar certo. — Ele apoiou sua cabeça na minha. — Roger foi um idiota; foi grosso com você e terminou tudo de uma maneira sem sentido, ele não devia tratar ninguém assim. Especialmente uma garota. 

 

— Você já se apaixonou de verdade? — Apesar de sermos amigos, nunca vi Matheus sofrer por amor. 

 

— Não. — Ele não pensou para responder. — Só fiquei com três garotas na vida, você sabe. Gostei de uma, Karol, mas acho que não foi amor. Se tivesse sido, eu teria sofrido muito, já que ela não gostava de mim. —  Ele pareceu se lembrar de algo. — Uma tia minha me disse uma coisa que nunca esqueci. Ela falou que não importa quantos amores passam pela sua vida, apenas três ficam marcados para sempre em sua memória. 

 

— Quais são eles? 

 

— O primeiro amor, aquele não passa de uma paixonite que mais tarde você vai descobrir ser sem sentido. O amor que marca, que na maioria das vezes resulta em sofrimento por não ser correspondido. E o amor verdadeiro, aquele que dura para sempre; com a pessoa que vai ser para sempre seu companheiro. Já passei pelo primeiro e espero sinceramente pular para o terceiro logo. 

 

— Já passei por dois. Só falta o último. 

 

— Lizzy, você tem de realmente virar a página. Talvez você até tenha virado a página, mas fica voltando nela e procurando uma continuação onde só vai achar um ponto final. O capítulo já foi encerrado. — Ele deu os ombros. — O Nicolas parece ser legal. E agora é teu namorado, aproveita isso e esquece o Roger de vez. 

 

— Não sei. Ainda tenho um pouco de medo de me entregar a um novo amor... 

 

— Relaxa, eu já falei com ele. 

 

— Falou o quê? — Olhei para o Matheus. 

 

— Para não te magoar. E disse que ele precisava da minha permissão para namorar com você. — Disse tranquilamente. 

 

— O que ele falou? 

 

— Pediu minha permissão. 

 

— E? 

 

— Eu disse que ia pensar. 

 

— E? 

 

— Ele disse que ia te namorar de qualquer jeito. 

 

— E? 

 

— Eu disse que ele ia ver uma coisa. 

 

— E o que mais? 

 

— Ele disse que fez uns meses de judô e que podia encarar. 

 

Caí na gargalhada. 

 

— Contou para ele que você faz karatê desde os cinco anos? 

 

Matheus deu um sorrisinho travesso. 

 

— Vamos deixar ele ter uma surpresa. — Matheus me abraçou forte. — Tenho que ir. Fique com Deus, você demais. É do tamanho dos seus sonhos e... É isso aí. Você já sabe o roteiro. Preciso ir antes que minha mãe queira ir na polícia dizer que fui sequestrado. 

 

— Tudo bem. — Ele se levantou e foi quase saltitando em direção a porta. O que um videogame novo não faz com um homem. — Matheus? — Ele me olhou. — Eu te amo. 

 

— Também te amo. Vá na minha casa para jogarmos Just Dance! — E ele saiu feliz da vida. 

 

Peguei meu livro novamente, virando a página. Virei a página, e não apenas no sentido figurado. Matheus tinha razão: não dava para ficar voltando na mesma página sempre. Já estava mais que na hora de prestar atenção no resto da história. 


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