A Obra-Prima escrita por Viúva Negra


Capítulo 9
Capítulo 9




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Jennifer sentiu os lábios secos de Nunes em sua fronte num beijo que durou apenas alguns segundos.

Carlos encostou a lâmina em uma das bochechas da jovem, ela sentiu o toque doloroso do gume frio contra a sua pele quente. A ponta arranhou seu rosto ao descer até um dos cantos de sua boca, o artista observou aqueles lábios pálidos, trêmulos.

A pressão se exercera rapidamente. A ponta afiada da lâmina penetrou a pele suave de Jenny, liberando um delgado fio escarlate que deslizou até seu queixo. A moça gemeu, inquietou-se, porém aquilo não foi capaz de romper a concentração de Carlos; sua outra mão segurou firme o maxilar da jovem professora enquanto a lâmina do canivete contornava precisamente aquela boca sinuosa.

Como um doce saído facilmente da forma, os lábios de Jennifer estavam nas mãos de Carlos, pintados de um vivo e sensual vermelho. Gritos e palavras mal articuladas saíam por entre os dentes daquele pobre rosto condenado a um sorriso eterno.

O escultor vira o quanto foi fácil obter aquela singela e delicada peça. Nunes começou a pensar na lacuna em sua escultura, como aquele pedaço encaixaria perfeitamente tal qual se ali sempre fora o seu lugar. Ficaria magnífica!

Não podia parar, não agora que vislumbrara tão esplêndida estética para um de seus mais importantes trabalhos. Pôs-se a analisar sua escultura. Apesar de ricos detalhes no rosto como a linha tênue das sobrancelhas, o pequeno e arredondado nariz, as bochechas e o queixo curvo, diminutos feito o semblante plácido de uma criança, ainda estava crua, carente de mais traços.

Carlos direcionou seus olhos para a parte superior da obra. O busto de Jenny passava uma imagem ligeiramente cômica com aquela careca lustrosa. Era isso! Os olhos de Nunes fulguraram ao vislumbrar o acessório perfeito; fios negros e brilhantes emoldurando aquela face cândida, era disso que precisava.

O canivete ainda estava em sua mão enquanto na outra segurava os belos lábios carmesins. Depositou-os sobre uma mesa ao passo no qual seus ouvidos eram afagados por gemidos de uma variação incomum e lenta do nome Carlos.

A fraca e solitária luz da lâmpada iluminava as gotículas de suor que brotavam no topo da cabeça de Jennifer, o brilho dava mais intensidade àqueles fios escuros, densos, sedutores. Com sua mão livre, Nunes jogou algumas mechas para trás, analisando o ponto exato onde se iniciava a bela cabeleira, visualizando a divisória entre a testa.

Jennifer sentiu o toque gelado da lâmina deitada sobre sua cabeça, Carlos inclinou o gume para que facilmente entrasse na pele da jovem. O fulgor prateado adquirira um tom carmesim enquanto adentrava sob o couro cabeludo num processo semelhante ao de descascar uma laranja.

Os urros guturais se iniciaram de modo desesperador. Jenny arranhava a madeira da mesa com força suficiente para que lascas se enterrassem na carne debaixo de suas unhas. Quanto mais se contorcia tentando livrar-se daquelas amarras, mais fundo a lâmina penetrava. Carlos sentiu até uma leve descarga de alegria correr por seu corpo ao ver que sua adorada musa estava lhe ajudando nesta tarefa.

Filetes de sangue morno escorriam pelo rosto retorcido de dor da professora; sua cabeça assemelhava-se a uma bola de sorvete decorada com uma suculenta cobertura de morango. Sentia o gume desbravando a parte interna de seu escalpo, imaginou a lâmina roçando gentilmente seu crânio, arranhando seu osso.

Um puxão foi o que bastou para Nunes ter aquela linda cabeleira suspensa entre seus dedos.

Como era magnífica aquela cascata negra se enroscando em sua mão feito macias serpentes. O artista aproximou aquele ornamento de seu rosto, respirou profundamente o aroma que dele exalava, uma doce fragrância de babosa misturada ao cheiro ferroso do sangue. Era sem igual a sensação de possuir tão bonito enfeite, ainda mais sendo de tão fino material.

— Carlos, or aor, are!6

Uma súplica lenta e com uma nítida falha na dicção chamou a atenção do rapaz.

Nunes fitou aquela figura cativa diante de si. Para outros seria digna de pena e horror, mas para ele era sinônimo de afeto, ternura e admiração.

Uma gota, dentre tantas outras escorreu de um dos olhos miúdos da criatura acuada, dolorida, mutilada; o brilho daquela gota acendeu o olhar do escultor, que buscou mais uma vez analisar sua obra, conferindo suas lacunas. Sim... Havia dois pequenos buracos escuros bem no centro de seu trabalho, dois espaços vazios, fendas que ansiavam por um par de pedras preciosas para lhes dar sentido, para lhes dar vida.

Carlos mirou aquela peça tão única com aquele mecanismo curioso. Seria interessante se sua criação pudesse chorar. As lágrimas iluminariam seu tênue semblante tal qual os primeiros raios do amanhecer, sim! Ele queria que sua obra pudesse chorar assim como o trabalho do mais hábil e impiedoso Criador.

Pôde ver seu próprio rosto no fundo daquele olhar assustado, a ambição que fervia debaixo daquela pele pálida, tornando-a cada vez mais rubra.

— Eu sempre amei tudo em você, Jenny, principalmente esses seus lindos olhos. Ah sim! Esse belo par de ônix que brilharam sobre mim no primeiro instante em que te conheci.

Jennifer contemplou o brilho avermelhado do gume afiado do canivete, aquilo previamente doeu em seu peito, permitindo-se desmanchar em lágrimas.

— Carlos...

Ela sussurrou entre seus soluços, porém era em vão. Seu corpo inerte, mergulhado nas dores físicas e emocionais que latejavam de dentro para fora. Sua cabeça pesada, desprotegida, sangrando sem cessar e sua voz tão fina, tão doce já perdida pelo caminho, pois seu receptor não era mais o mesmo. Tudo se escureceu feito um eclipse repentino.

Feche os olhos, Jenny, vai acabar logo...


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Notas finais do capítulo

6. Jenny estava querendo dizer: "Carlos, por favor, pare!", o modo como ela disse seria a forma que a alguém tentasse pronunciar palavras sem o uso dos lábios.



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