A Obra-Prima escrita por Viúva Negra


Capítulo 10
Capítulo 10




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O nervosismo corria por aquele corpo magro e desengonçado, a respiração era rápida e profunda e gotas de suor escapavam por suas têmporas.

Naquele dia, Carlos havia tomado um longo e relaxante banho deixando a água refrescar sua pele quente, resultado do atrito feito entre seu corpo e o colchão ao revirar-se na cama tentando dormir. Uma caneca cheia de café lhe ajudou a disfarçar o aspecto sonolento de quem madrugou por falta de sono. Ele penteou os cabelos para trás e até aparou a barba moldando-a tal qual um desses jardineiros que esculpem figuras de bichos em arbustos, porém o rapaz não levaria a silhueta de um coelho estampada em seu rosto. O que fez foi apenas deixá-la simétrica, tornando-o menos um viking e mais um galã de novela das nove.

Vestiu sua melhor roupa — na verdade algumas peças que não estavam sujas nem rasgadas — e olhou-se no espelho... Via no fundo de seus olhos castanhos o puro e agridoce desespero. O ar quente que saía de sua boca embaçou o vidro. Com a ponta de seu dedo indicador Nunes traçou o desenho de dois olhos tão pequenos, fulgurantes e um risco prateado escapando deles.

Ficou ali parado por alguns instantes olhando para o seu próprio desenho. Aqueles traços fugazes iam desvanecendo ao passar dos segundos, pois a superfície lisa não era mais alimentada com o vapor que saía dos lábios do escultor. A figura foi diminuindo, suas formas foram se extinguindo até somente restarem algumas manchas esbranquiçadas naquele pequeno espelho de banheiro.

Suas mãos tremiam ao volante do carro, de tempos em tempos olhava nervoso para o retrovisor e suspirava aliviado. Ainda estava ali... Sã e salva.

Os sinais de trânsito demoravam a abrir, seus polegares já estavam doloridos de tanto baterem contra o volante, reproduzindo o toque de alguma música na esperança de se acalmar. Os pensamentos corriam nauseantes por sua mente, não sabia o que iria acontecer, pelo que poderia esperar. Quando a luz verde do semáforo brilhava diante de sua face, a palidez lhe possuía; praguejava em silêncio pela espera e lentidão, porém não queria sair do lugar.

As pessoas iam e vinham rápido demais, eram tantos rostos, tantas vozes que mal podia decorar. Aquilo piorava a situação. Suas mãos suavam tornando-se escorregadias, era um frenético exercício esfregá-las contra um pequeno lenço de flanela amassado que trazia em um dos bolsos da calça. Seus olhos corriam pelo amplo local buscando algo, o peito desacelerava cada vez mais em sinal de decepção, será que não viriam?

Nunes encarou o lençol lívido envolvendo alguma coisa imóvel bem ao seu lado. Era tão fino, suave, felizmente a finura não transmitia transparência, mas opacidade, o rapaz poderia ficar tranquilo ao menos por este detalhe.

Ali, dentre a multidão alvoroçada, três rostos conhecidos se destacavam. Carlos sentiu suas pernas tão bambas que pensou que fosse cair, todavia apenas ficou imóvel, procurando conter a respiração à medida que se aproximavam.

Um homem esguio, trazendo traços evidentes do avanço da calvície por sua cabeça oval, usava um par de óculos arredondados sustentados por um fino e adunco nariz. O outro era mais baixo, um pouco acima do peso, parecia confortável em seus trajes vitorianos preto e vermelho escuro. Por último, uma mulher alta de meia idade com seu nariz arrebitado e seu cabelo cor de cereja madura para disfarçar os primeiros fios brancos.

O trio caminhava despreocupado, analisando os trabalhos expostos nas outras bancas. Esculturas, quadros, máscaras, personagens completos interpretados por modelos amigos daqueles que sonhavam em conquistar um espaço no tão disputado mundo dos efeitos especiais.

Carlos era um deles. Seu maior sonho era trabalhar em grandes produções, poder ver as criaturas grotescas que tanto amava aterrorizando jovens e adultos através das telas do cinema. Queria que deitassem as cabeças nos travesseiros e não conseguissem dormir pensando que aqueles seres estariam à espreita, apenas esperando um momento de vulnerabilidade, entretanto aquelas três figuras lhe tiraram toda a esperança, pisotearam e cuspiram em seus sonhos feito os vilões dos filmes que tanto amava. Não foi há tanto tempo, mas agora estava ali. Reunira toda a coragem que ainda vivia em seu ser, estava de cabeça erguida apenas encarando com seriedade a aproximação daqueles grandes críticos.

— Boa tarde, Carlos! — cumprimentou a mulher com uma voz fina, porém firme.

Bo-boa tarde, senhorita Vivian — respondeu o escultor sentindo o gosto amargo do nervosismo adormecendo seus sentidos. Todavia lutava contra isto, precisava ser decidido diante deles.

— Já faz muito tempo desde nosso último encontro, meu rapaz — disse o homem esguio.

— Sim, senhor Nelson, e eu tenho trabalhado muito desde então.

— Presumo que trouxe algo para que possamos avaliar, não é? — indagou o homem mais baixo e elegante.

— Exatamente, senhor Giovanni.

Os seis olhos moveram-se para a peça ainda oculta contígua a Nunes, se apertavam na tentativa de descobrir o que estaria debaixo daquele pano. Vivian torceu a boca fina, levemente irritada por não conseguir saber o que aquela figura espectral escondia; Giovanni revirou os olhos em sinal de desdém enquanto Nelson ajustou seus óculos virando-se para Carlos.

— Pois bem, mostre-nos o que trouxe.

As mãos do escultor chacoalhavam causando risos internos nas presenças austeras. O rapaz sentiu o tecido macio entre seus dedos, como era gostoso o toque liso e gélido daquela fina cortina; dobrou-os agarrando firme o lençol para retirá-lo com um brusco puxão, revelando o que timidamente se escondia.

Não ouviu mais a entonação confusa dos que passavam ao redor, tudo se afogou em um silêncio profundo no qual só era quebrado pelas batidas de seu próprio coração. Olhou para sua criação apenas checando se estava tudo em ordem, aquela imagem já preenchia sua mente. Poderia ficar décadas sem vê-la de novo, ainda sim se lembraria de cada detalhe que escorrera apaixonadamente por seus hábeis dedos. Voltou sua atenção para os críticos e aquela cena lhe surpreendeu...

Três bocas entreabertas numa perplexidade muda. As linhas de cada um dos semblantes se esticando à medida em que seus olhos se arregalavam, os peitos quase parados, não se ouvia sequer um suspiro.

O que viam diante de seus olhos era digno de admiração unida à uma análise paciente e complexa. Uma escultura em tamanho real, dessas que os menos afortunados viam no Museu de Cera de Hollywood pela TV.

As vestes folgadas desciam em tons serenos de azul até os pés descalços, uma túnica lucilante na qual permitia-se notar os detalhes da humilde, porém bela costura. As mangas caíam em dobras perto do cotovelo, pois as mãos estavam unidas em um gesto de oração, pequenos e finos dedos entrelaçados cultivando o primor de unhas naturalmente róseas; o tom bronzeado da pele distribuído em um jogo perfeito de luz e sombra.

Os seis olhos então fitaram o busto, a peça mais magnífica da escultura. Do topo da cabeça, caía a bela cascata negra como a noite que circundava aquele rosto arredondado, tão diminuto e inocente feito o de uma criança. As sobrancelhas arqueadas dando ternura àquela face; os lábios selados, lascivos, porém suaves, nada precisavam dizer para se fazerem ouvir.

Os críticos então encararam os olhos...

Pequeninos olhos escuros brilhavam diante das lentes dos óculos de Nelson. Olhavam para baixo com brandura, de modo que estivesse admirando aqueles pobres mortais, rezando por suas almas condenadas, permitindo que suas mentes guardem na lembrança ao menos aquele deslumbrante fragmento de pureza, de fragilidade imóvel diante deles.

Eis que algo assustara os soberbos avaliadores, obrigando cada um a dar um passo para trás em sinal de espanto e contemplação... Lágrimas. Sim! Dois filetes dardejantes fugiram pelos cantos de ambos os olhos da escultura traçando um caminho lento e delineado até o pequenino e redondo queixo daquela figura angelical. Aquilo deixou a trinca extasiada, convidando-os a derramar sua mais profunda e verdadeira emoção diante do artista orgulhoso. Não havia vergonha ou até embaraços naquele momento, pois todos sabiam que o choro purificava a alma.

Carlos admirou aqueles três rostos vagueando pelas belezas frágeis de sua obra. Era como assistir cavaleiros se entregando de boa vontade à força maior partida do inimigo, ajoelhando-se, declarando solenemente suas fraquezas diante da imagem imponente do adversário. Sentiu um calor irradiar por seu peito, um sorriso brotar largo em seu rosto lívido ao perceber que quem passava por sua banca também ficava estagnado, também permitia que seus lábios se desprendessem e caíssem em silencioso espanto.

O recinto que abrigava aquela exposição se calou e todos saudavam o magnífico trabalho de Nunes.

Vivian se aproximou da escultura de modo lento. Aquela imagem despertou-lhe certo receio, porém precisava tocá-la, precisava senti-la entre seus dedos para se convencer de que era real. Passeou sua mão pelas bochechas e queixo da suave expressão do ser inerte, era suave... E tão quente! Um gemido rouco lhe afastou daquela escultura ainda encarando-a.

Nelson voltou-se perplexo para o artista.

— Conte-nos o que ela é, Carlos, por favor! — havia desespero em seu pedido, como se sua vida dependesse da oculta história daquele ser diante deles.

O rapaz respirou fundo e, sem tirar os olhos de seu trabalho, respondeu:

— Ela é a perfeição. É a sanidade excomungando a loucura, a arte sendo doada aos céus, e como agradecimento, a cadência de um anjo vindo para nos abençoar.

Aquela definição pareceu mais que satisfatória para aquelas figuras estagnadas ao seu lado. Giovanni retirou sua cartola envolta em veludo negro e a aconchegou em seu peito em sinal de respeito.

— É sublime... — suspirou ele.

— É magnífica! — declarou Nelson engolindo em seco.

O sorriso no rosto de Nunes não poderia ser maior, quase podia sentir a pele no canto de seus lábios se rasgando e mesmo que isto acontecesse, ainda iria regozijar-se na rendição de seus maiores inimigos. Finalmente tocara suas almas de uma maneira tão pura e cruel. Vê-los definhar numa admiração taciturna era a melhor tortura que poderia desejá-los e o rapaz queria desfrutar de cada momento de seu triunfo.

Vivian chegou mais perto, pousou a mão suavemente no ombro do artista. Ele ainda podia ver aqueles pequenos olhos verdes brilhando através das lágrimas.

— Meus parabéns, Carlos, — disse ela sorrindo, maravilhada — você criou uma obra-prima!


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Notas finais do capítulo

É isso aí, pessoal, assim chegamos ao fim desta novela! Espero que tenham gostado e obrigada a todos por estarem comigo até aqui Beijos e até a próxima :*



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