A Obra-Prima escrita por Viúva Negra


Capítulo 7
Capítulo 7




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Jennifer se via caminhando pela grama; era gélida por conta do orvalho da madrugada e fazia cócegas em seus tornozelos. O vento convidava seu cabelo para dançar. Seus olhos estavam quase fechados por causa da brisa que insistia em lhe beijar.

A jovem não se importava com as cócegas, beijos ou com a dança, só queria caminhar.

Ela tinha a lua para guiá-la, confiava naquele satélite natural a ponto de nem sequer dar uma espiada para aonde estava indo.

Até o momento de parar.

Era como se as finas folhas de grama se entrelaçassem em seus tornozelos, o vento puxasse seus cabelos, imobilizando-os à medida que a brisa congelava seus músculos.

A lua lhe permitiu, após quilômetros vagueando, finalmente baixar a cabeça, buscando o horizonte.

Um magnífico bosque dormia diante de si.

Os pinheiros inertes em seu sono profundo, acolhendo as criaturas nas quais entre eles viviam enquanto as altas e imponentes montanhas afastavam todo e qualquer perigo que ousasse se aproximar.

Jenny estava ali, com seus pés beirando um desfiladeiro. Somente isso a separava da paz que chamava seu nome entre as árvores sonolentas.

Voe, Jenny, voe!

Era a lua que lhe falava.

Seus braços se abriram, quase a serem tão grandes e solenes quanto aquelas montanhas. Poderia esmagar aquele pedaço tranquilo de vida contra o peito, absorvendo a harmonia que tanto necessitava.

Voe, Jenny, agora!

Fechou seus olhos, respirou fundo, sabendo que em segundos sentiria as nuvens se desfazendo entre seus dedos. Sorriu, se entregando aos céus.

Infelizmente, seus pés não saíram do chão.

A relva resistente se enrolava cada vez mais em seus tornozelos, subindo agora para as panturrilhas. O vento amarrava seu cabelo, deixando seu semblante entregue ao calor da brisa dantes fria.

Jenny abriu os olhos. A lua se fora. O céu estrelado sobre sua cabeça não passava de um teto lajeado abrigando uma lâmpada que não parava de balançar, agitando as sombras. A grama e o vento eram cordas, cobras traiçoeiras, esfiampadas, mas ainda podiam paralisar. O ardor vinha das janelas fechadas, o ar estava denso e levava um forte cheiro de argila até suas narinas.

A professora não estava de pé diante de um desfiladeiro, estava deitada. As manchas coloridas e arranhões que pôde enxergar com o canto dos olhos lhe fizeram acreditar que aquela era a mesa de trabalho de Carlos, mas onde ele estava?

A dor vinha sem ser convidada, pressionava a parte de trás de sua cabeça quando tentava rolá-la para melhor vislumbrar o ambiente há tempos conhecido. O rosto de Nunes e seus dois sósias surgiram diante do olhar confuso da moça, porém só um deles era sólido o bastante para bloquear o forte facho de luz que vinha da pequena e solitária lâmpada.

— Carlos... — chamou ela com a voz vacilante de alguém sob o efeito de algum anestésico — O que está fazendo?

Carlos lançou um olhar em direção à namorada, um olhar tão tranquilo, brilhando perante a face atônita da bela oriental. Ele ainda trazia leves tons escarlates ressecados em seu queixo e barba. Sorriu. Estava admirado, mais que isso... Encantado.

— Eu estava esperando você acordar — falou o escultor sereno, era como se tudo não tivesse passado de um sonho ruim.

— Por quê? — Jenny tinha de perguntar, era uma ânsia insaciável, uma curiosidade traiçoeira. Queria estabelecer um diálogo com ele, precisava mantê-lo sob o domínio de sua voz, pois sabia que sem isso, ele estaria perdido.

— Eu quero muito lhe mostrar uma coisa. Espere aqui.

A euforia na voz do artista deixava a professora ainda mais confusa em relação aos seus pensamentos e emoções. Será que Carlos desistira de machucá-la? Se sim, por que ainda estava amarrada como um animal capturado?

Respire fundo, Jenny.

Mantinha o ar por alguns segundos em seus pulmões, soltava-o lentamente e a sensação de leveza preenchia seu corpo cansado. Parecia que não havia mais amarras a lhe segurar, estava livre dos grilhões físicos e emocionais que a condenavam ao chão. Sentia-se flutuando.

Certa falta de claridade confortou seus olhos. Pôde ver a cabeça de Carlos tapar a luz novamente, ele ainda sorria encantado, encarando a face empalidecida da linda figura nipônica.

— Você vai adorar — disse ele tremulante, tinha dificuldades para controlar a própria agitação. — Deixe-me ajeitar um pouco a sua cabeça.

O escultor levantou gentilmente aquele novelo de negros fios. Jenny gemeu. Os longos dedos de Carlos pressionaram a parte de trás de seu crânio e daquela área, um calor doloroso se alastrava por quase toda a sua nuca.

A professora sentiu sua cabeça afundar em uma superfície quente e macia, certamente não era a fria e rija madeira da mesa a qual estava amarrada. Carlos a concedera pelo menos um travesseiro? Isso era bom?

— Está bem assim? — perguntou ele voltando a encará-la.

— Sim. Está ótimo, querido — respondeu a moça de modo brando, ansiando despertar o namorado amoroso que um dia ele mostrou ser.

— Que bom.

Com a cabeça agora um tanto elevada, Jenny podia enxergar boa parte dos movimentos de Carlos. Este se afastou da mesa para ir até outra, menor, feita de metal e com rodinhas ao final das quatro pernas. Havia algo sobre ela, porém a jovem educadora não podia ver, estava oculto sob um lençol que há muito perdera o tom pálido, puro, quase espectral.

O escultor posicionou-se atrás daquela pequena mesa e começou a empurrá-la. As mãos abertas deixando as palmas lúridas tocarem no metal gélido, os finos braços conduzindo a força exercida por seu tronco e pernas. O ranger estridente das rodas quase enferrujadas provocavam irritantes arrepios em Jennifer, os quais aumentavam a dor em sua cabeça.

O percurso durou aproximadamente um metro? Menos? Era impossível calcular quando se tinha a sensação de que um forcado dilacerava seus tímpanos, contudo Jenny não iria reclamar, não poderia.

Ela tinha certeza de que aquilo era uma escultura, o que mais seria? O aspecto fino do lençol revelava as curvas de uma curiosa e indecifrável silhueta. O que Carlos havia esculpido? Ah eram tantas possíveis respostas. Uma mais eloquente que a outra e sabia que ele era capaz de tornar os sonhos reais.

Nunes se aproximou, ficou entre Jenny e a suposta escultura. A namorada percebia as faíscas que saltavam vívidas daqueles olhos impacientes. Ela sempre lhe fora confiável, sua melhor amiga, uma crítica sincera, sua opinião sempre fora de suma importância.

Os dedos finos e ebúrneos dele pousaram sobre o lençol acinzentado, seu pomo de Adão oscilou ao engolir em seco. A ansiedade o matava para depois revivê-lo, o excitava, o enchia de calor, de poder, a ponto de sentir-se sobre-humano.

— Está pronta? — indagou Carlos procurando conter a euforia, enozando sua garganta para aparentar tranquilidade, fazendo a voz sair fraca, sibilante. Oh como aquilo era devastador!

— Estou.

Era verdade. Jenny estava pronta para encarar mais uma criatura fantástica. Estava pronta para capturar a imagem de mais um ser deformado, desses que arrancam um pedaço da alma somente ao olhar. Estava pronta para admirar mais um fragmento da mente estranha e perturbada do homem que escolhera como companheiro. Sim, estava pronta.

O lençol levantou-se feito uma cortina anunciando que o espetáculo iria começar, mas não havia aplausos, assovios ou qualquer outra manifestação de pura euforia. Tudo o que foi capaz de engolir o cômodo foi um aterrador silêncio, algo bem mais profundo do que simplesmente a ausência de som, era quase um vácuo ensurdecedor.

Os olhos de Jennifer perderam a cor, tornaram-se peças vítreas tais quais as imitações que Carlos usava em seus bonecos. Não havia brilho, apenas uma bruma opaca se espalhando por toda a superfície. Esta mesma neblina pálida se arrastou para fora do olhar arregalado da professora, caiu em suas bochechas, em seguida escorrendo por seus lábios entreabertos, seu queixo pequenino, seu pescoço... Aquela não era uma simples bruma.

A pele brônzea da jovem tornou-se lívida feito uma cândida flor encoberta com uma bela e fina camada de gelo.

Os pensamentos se esvaíram de sua mente, seus olhos captavam as imagens, porém estas eram congeladas no meio do caminho. O destinatário estava neutralizado, adormecido diante da torrente de informações difíceis de processar.

A análise era lenta, cuidadosa, pois havia muitos detalhes para serem vistos. A textura evidente transmitia uma maciez aveludada a quem quer que fosse o espectador, à distância notava-se a candura. Os traços finos e arredondados eram ternos e agradáveis, a luz dourada da lâmpada dava um brilho quase divino àqueles contornos. O tom amorenado, sensual, daqueles que despertam cobiça, luxúria, em Jenny despertou o pavor mais puro e primitivo que era capaz de sentir.

Estaria diante de um espelho? Reconhecia aquelas curvas tão bem que poderia guiar-se entre elas de olhos fechados, afinal, durante anos havia olhado para aquele desenho. Por anos maquiou aquelas maçãs do rosto para que não delatassem sua excessiva timidez diante de uma embaraçosa situação; por anos analisou aquele nariz pequeno e curvilíneo, perguntando-se em qual das narinas colocaria um piercing, a resposta foi: nenhuma. Por anos praguejou pelas sobrancelhas falhadas e o trabalho que lhes davam ao tentar desenhá-las com um simplório lápis de olho. Agora estava ali, encarando todas aquelas características. Todas juntas numa mistura única, uma miscelânea inconfundível.

Jennifer conhecia aquela escultura, pois ela era aquela escultura.


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