Sequestrada escrita por AC Espadeiro


Capítulo 3
Primeiros Dias




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Vamos conversando naturalmente, ele vai perguntando coisas sobre mim que eu não me assustava em responder. Não era como a maioria das pessoas que tentavam se aproximar praticamente fazendo uma entrevista comigo, perguntando onde eu moro, onde eu gosto de ir, o que faço nos fins de semana.

Eles não entendem que dar informações sobre a vida pessoal é a última coisa que alguém que está tentando se esconder quer.

Vou me distraindo com nossa conversa que até esqueço que deveria estar em aula, mas essa memória volta quando o som da maçaneta se abrindo faz com que eu me estremeça por inteiro. Meu coração dispara, quase sair pela boca, olho apreensiva e vejo o garoto o qual esbarrei no corredor hoje cedo. O encaro, sem querer mostrar medo, e sem querer que ele tente puxar papo comigo. Me encolho na poltrona mexendo compulsivamente na minha unha para tentar de alguma forma aliviar aquele pavor.

—Vovô! Ah... Perdão...- Ele diz percebendo minha pequena presença ali. - Não sabia que estava com visita!-Seus olhos pairam sobre mim de um modo diferente. Não era como se eu fosse estranha ou um bicho do mato, eu era apenas mais uma pessoa.
—Tudo bem, meu neto, eu queria mesmo falar com você! Me de um instante!- O garoto acena com a cabeça e vai pro outro canto da sala pegar uma xícara de café.

Olaf se inclina, ainda sentado, pra perto de mim e sussurra por seus lábios secos e pregueados.

—Esse é meu neto, Aaron. Ele estuda aqui desde que nasceu e... Pode confiar, é um ótimo rapaz! Se quiser peço que ele lhe acompanhe para as aulas. -Ele diz feliz mas a ideia não me soa bem. A presença de alguém cujo o sobrenome não é Castellamary ainda me assusta. E acho que sempre vai assustar.
—Eu... Eu... Eu não sei, vô! Não consigo! É muito pra mim em apenas um dia de escola.
—Não prefere estar acompanhada?
—Sinceramente...? Não. A ideia de alguém me distraindo não é boa, sem contar que foi como a psicóloga disse pra minha mãe escondido de mim... Eu não vou conseguir fazer amizades.
—Claro que vai, Mel! Eu não sou seu amigo? Então! Olha, eu venho para esta mesma sala todos os dias, sempre que precisar de alguém pra conversar ou estiver a beira de... De... Daquilo que você teve!
—Um surto?
—Isso ai! Sempre que estiver quase surtando, ou precisar de um amigo pra conversar ou uma companhia pra hora do lanche, estarei aqui. Okay?

O sinal toca, está na hora da segunda aula e eu resolvo que é melhor eu voltar. Não que eu queira, mas devo tentar mais uma vez.

—Vô... Eu vou pra minha sala, tentar terminar alguma aula, te vejo amanhã?
—Claro! -Ele sorri pra mim e eu me levanto indo para a porta e saindo sem me despedir do garoto.

Assim que saio os corredores estão vazios e aquilo me assusta num nível extremo, só me lembra do estacionamento frio e vazio. Corro minha mão de volta a maçaneta e me jogo dentro da sala, fechando a porta com um só empurrão me apoiando sobre ela sentindo meu coração bater com tanta força que parece estourar minha caixa torácica.

—Desculpa!- Digo ofegante e os dois me olham surpresos. -Vô... O senhor p-pode me... Me...
—Quer que eu lhe acompanhe até sua sala?

Umedeço os lábios com a língua e balanço a cabeça dizendo que sim. Ele da um sorriso meigo e diz que "Adoraria". Seu neto fica olhando confuso sem entender nada e então nós saímos da sala indo em direção à outra.

Ao chegarmos, com alguns minutos de atraso, os olhares da turma diferente se viram pra mim e a professora me olha com cara feia, mas Olaf fala algumas palavras, que eu não consigo ouvir pelo medo, enquanto eu me sento na primeira cadeira já que não há mais lugares na janela.

—Ok, qual seu nome senhorita?- Ela pergunta rígida.
—Melanie. Professora, peço que pegue leve com ela, ela está com uma cólica horrível, por isso não conseguia chegar. Acho que foi nervosismo pelo primeiro dia de aula numa escola nova!- Diz Olaf e eu olho muitíssimo agradecida pelo que ele fez.
—Eu irei aceitar... Hoje! Não tolero atrasos em minhas aulas, estamos entendidas senhorita?

Afirmo com a cabeça baixa encarando meus sapatos, só acordo quando uma dor latejante surge em um de meus dedos por eu ter arrancado tanta unha dele.

Olho para frente e admito que aqui é bem melhor, as pessoas não ficam me encarando, ou melhor, podem ficar, mas eu não vejo. A professora começa a passar a matéria e eu vou copiando tudo em meu fichário. Era tudo novo, estranho, diferente. Eu estou tendo aulas particulares com um garoto da minha idade, a psicóloga o recomendou, seu nome é Nate. Me disseram que ele é o garoto mais aplicado de sua turma, tem 18 anos e seu boletim não tem notas abaixo de 9,5. Doutora Pilar achou que assim eu poderia me enturmar com pessoas da minha idade e aprender melhor sobre o que estão realmente ensinando nas escolas.

Minhas aulas com Nate começaram mês retrasado, ele é legal, até consigo me distrair um pouco, mas para isso nós estudamos na mesa de jantar enquanto meus pais assistem TV ou leem na sala, preciso da garantia de que eles estarão ali para me concentrar em algo diferente.

Mas claro que dois meses de aula, não são o suficiente para repor o que foi perdido em 4 anos, mas pelo menos me ajuda a pegar o ritmo e lembrar como se estuda.

Anoto a matéria e me distraio a ponto de não prestar atenção no que a professora explica. Minha mente vagueia, pela primeira vez no dia, no mundo da lua, começo a pensar nos afazeres da semana. Aula com Nate em todos os dias, consulta com a doutora Pilar amanhã, grupo de apoio inútil depois de amanhã, etc.

Começo a pensar em cada detalhe de minha semana que acordo com um grito do meu nome que me faz saltar da cadeira.

—SENHORITA CASTELLAMARY!- A professora grita chamando a minha atenção e eu ouço os murmúrios vindo de trás de mim trazendo o desconforto. Eu sei que minha mãe fez questão de pedir que a escola se responsabilizasse por alertar a todos os professores sobre minhas "dificuldades", mas parece que não deram a devida importância ao meu simples problema.

—Senhorita Castellamary, atrasada e ainda por cima sonhando no meio da aula! Por que não conta pra turma o que a senhorita estava imaginando de tão importante? Compartilhe com a turma!

Essa mulher criou uma implicância comigo do nada.

—Não... Desculpe. -Falo abaixando a cabeça deixando meu cabelo esconder-me.
—Responda minha pergunta!
—Eu não estava pensando em nada.- Minha voz falha. Queria falar com força imponente, sempre fui assim, nunca fui de receber ordem. Até o momento que ou eu obedecia... Ou algo de ruim acontecia. Queria gritar mas falei quase em um sussurro.
—Não essa pergunta, Castellamary! -Ela da uma pausa e continua. -Mais uma vez! Segundo Karl Marx, as lutas de classes, as greves e as revoluções são resultado de...?

Ela fala e eu a olho pela primeira vez. Ela deve ter uns 40 anos, tem traços finos e um rosto mais fino ainda, posso quase jurar que ela tem bigode. Ela usa roupas formais até demais para uma escola. Blazer, calça boca de sino, cabelos presos em um coque que se fosse feito em mim, eu já estaria com dor de cabeça de tanto que deve ter puxado seu cabelo. Seus olhos são cinzas assim como sua impiedosa alma, se é que ela tem uma, e pra completar tudo, um óculos redondo enorme que me lembra uma abelha na hora.

—Eu... Eu...
—Lhe fiz uma pergunta, senhorita! Deve responde-la. -Ela me olha com deboche e nariz em pé.
—Eu... Não sei.
—Impressionante! Levanta menina! Anda! Não estou aqui pra isso! -Olho sem entender e ela anda em direção à porta abrindo-a ao mesmo tempo que eu continuo sentada. -Anda! Não fique parada com essa cara!

Seu modo de falar faz a turma inteira se calar e repousar seus olhos sobre mim com curiosidade e ambição por uma emocionante briga. Me levanto calmamente, arrumando minhas coisas, olhando para baixo sem querer ver ninguém. Saio da sala e ela diz:

—Eu vou com você! A diretora daqui é muito fraca, lógico que ela afrouxara a mão com você!

A medida que andamos ela vai reclamando e comentando o quão era um absurdo eu estar tão desinteressada em sua aula, que seria tão importante para meu futuro e no quão irresponsável eu era por estar jogando o dinheiro dos meus pais no lixo, mas apenas sigo em frente me concentrando em não encontrar ninguém pelos corredores.

Ao virar em um deles, entramos na diretoria, às pressas. Ela sequer pede licença, apenas abre a porta dando um susto da coitada da diretora.

—Diretora Monrey!- Ela anuncia sua entrada por meio de um berro.
—Meu Deus! Professora Morgana! Quase me matou de susto! - Ela diz levando a mão ao peito com uma respiração levemente desregular. -Por favor, bata da próxima vez!

Observo de canto de olho o quão a professora Morgana ignora suas palavras e revira os olhos discretamente para ela.

—Diretora, vim exigir a detenção desta menina!
—Ahn... Oi? -Fico surpresa com suas palavras mas parece que não sou a única.
—Exatamente, diretora! Essa garota em seu primeiro dia de aula conseguiu chegar atrasada em minha aula e estava devaneando em minha aula! Ela não prestou atenção em nada! Essa menina é mui... -Ela despeja tudo sobre a diretora sem pausa pra respirar ou para que ela fale. A diretora parece desesperada, querendo que ela cale a boca de alguma forma, mexendo a mão tentando fazê-la prestar atenção nela.
—PROFESSORA MORGANA! -Sua voz se exalta chamando a atenção de nós duas. -Por favor, se acalme em primeiro lugar e em segundo -Ela vira sua cabeça para mim com um sorriso piedoso.-, mil perdões, Mel! Ainda não tive tempo de conversar com os professores sobre sua chegada!
—O quê? -Ela pergunta indignada por seu pedido de desculpas e volta a resmungar. - Diretora, eu sei que ela é aluna nova, mas ainda assim, ela...
—Morgana!- Ela se põe de pé rapidamente impondo sua autoridade ali. Posso sentir os calafrios de medo da professora. -Antes de tudo, essa menina cujo você se refere tem nome, e é Melanie Castellamary. Já ouviu falar nela?

A professora faz cara de desentendida e parece confusa pela certeza da diretora.

—A senhora é professora de sociologia, senhora Morgana! Deveria saber sobre o que ocorre na sociedade e no dia a dia de nosso país!

Uma expressão de superioridade surge no rosto de Monrey que vai em direção a uma pilha de papéis na bancada branca de mandeira, no canto da sala e pega um dos papéis e o joga em cima de sua mesa na direção de Morgana.

Ela engole em seco, nervosa, e olha para baixo tomando o papel em suas mãos. Um jornal, com aparência de antigo, mas não tanto. Ela o vira para que possa ler e fica o olhando incrédula, descrente, sem acreditar no que seus olhos leem. Não é preciso muito esforço para se imaginar o que está escrito ali.

Ela não tenta disfarçar como a maioria das pessoas, pelo menos não de primeira, ela olha para o papel e para mim inúmeras vezes tentando ter certeza absoluta.

—O caso...
—Do estacionamento na 13! -Completa a diretora confirmando suas suspeitas.

Então era assim que chamavam meu caso.

—Deve imaginar que alguém que passe 4 anos em cativeiro tenha dificuldades para se adaptar a um colégio novo, não é, professora Morgana?

Ela fica em silêncio sem tirar os olhos do jornal.

—Eu lhe fiz uma pergunta, senhorita Morgana! Deve respondê-la!

Sinto meus músculos se contraírem já que quero muito gritar e bater palmas para a diretora, mas não estou nem um pouco a fim de ficar de detenção.

—S-Sim, diretora Monrey! -Gagueja ela. -Esse é um motivo plausível...
—Plausível?
—Um ótimo motivo! -Ela corrige nervosa por seu erro.
—Ótimo!- Diz Monrey relaxando sua pose. -Faltam 5 minutos para o intervalo, sugiro que volte a sua classe professora e Melanie estou lhe dando permissão, como pedido de desculpas em nome do erro de Morgana, para que vá logo para cantina comprar seu lanche. Aproveite enquanto as outras turmas não descem, assim ainda estará vazio quando chegar!
—Obrigada, diretora!- Sorrio pela primeira vez e faço menção a sair, mas ela me chama.
—Um momento, Melanie! Professora Morgana, não quer dizer nada a sua aluna?

Um silêncio paira na sala e eu posso ver a professora cerrar os pulsos estalando seus dedos discretamente, até que com muita força, como se estivessem arrancando um pedaço dela, a mesma pronuncia entre os dentes:

—Desculpa, querida!

Aceno com a cabeça aceitando suas "desculpas" e vou para a cantina conforme a recomendação da diretora, por sorte os corredores estão com alguns inspetores e faxineiros que já se preparam para a multidão de adolescentes que está por vir quando aquele sinal tocar.

Vou para a cantina onde uma mulher velha, com uma enorme verruga na ponta do nariz, com uma cara de nojo e cansaço pergunta co sua voz estridente:

—Vai querer o quê? -Pergunta ela com má vontade provavelmente preferindo estar em qualquer outro lugar do que aqui.
—Tem sanduíche de queijo?
—UM SANDUÍCHE DE QUEIJO!- Meus ouvidos choram com o grito que ela dá. -Pronto! -Ela me entrega o pão enrolado no plástico e eu a entrego o dinheiro, pegando meu troco e procurando algum lugar pra ficar.

Queria poder sair da escola, assim poderia passar o recreio com minha mãe que ainda está do outro lado da rua. O sinal toca e eu cogito a ideia de ir novamente para a sala de Olaf, mas isso significa passar pelo mutirão de pessoas que veem em minha direção e as várias inspetoras que ficariam me perguntando aonde estou indo, sem contar que por mais que ele tenha sido muito gentil, não quero incomoda-lo mais meia hora com meus problemas trágicos.

Acima da cantina havia um andar com uma sala, e uma escada que levava a ele, então resolvo subi-la e ficar ali no topo, onde posso ver todos e ninguém pode me ver. Sento-me no degrau mais alto e analiso as pessoas que me chamam atenção.

O casal perfeito, com uma menina loira de olhos azuis como água e um garoto do mesmo tipo que ela, eles eram como a Barbie e o Ken. Não parecem metidos, deduzo que sejam populares já que estão falando com todo mundo, mas não o popular ruim.

Não muito longe, perto da máquina de pipoca que eu mal tinha reparado a existência, estava uma garota totalmente o oposto dos dois. Roupas pretas, cabelos coloridos, jaqueta com aqueles espetos de nome estranho, etc.

O pátio era enorme, a escola é totalmente fechada, cercada por muros e seguranças, por isso minha escolha de vir para cá. Meus pais não têm dinheiro para uma mensalidade tão cara, mas graças às doações que muitas pessoas enviaram ao saber de minha história, meu pai consegue arcar com os custos.

Daqui do alto, dá pra se ver além dos muros, e a primeira coisa que meus olhos veem é a floresta, de árvores altas, pequenos morros, mata densa e colorida. Sinto uma vontade imensa de correr pra dentro dela e ao mesmo tempo um calafrio percorre minha espinha fazendo-me imaginar o que pode haver dentro dela. E não me refiro a animais.

Sei que ele me observava. Eu sei disso. Sei que não foi do nada. Cada passo, cada ação, foi meticulosamente calculada. Era para eu estar ali, era para eu descer sozinha para aquele estacionamento, era para eu tentar correr e no fim de tudo ser pega. Mas meu medo é que ele tenha planejado a minha libertação e que na verdade ele esteja apenas me olhando com sua mente sádica e insana esperando para ver minha tortura novamente.

Sua imagem passa e repassa pela minha cabeça inúmeras vezes e eu continuo me perguntando como? A única coisa que consigo me perguntar desde que tudo começou... Ou terminou. Como isso foi possível? Como eu nunca o vi? Como eu nunca percebi?

Os pensamentos tiram a fome do meu estômago e eu resolvo não me forçar a comer como venho fazendo ultimamente. É cansativo, sem contar que se eu estiver mal mesmo irei vomitar de qualquer maneira.

Odeio esses momentos que não tem nada pra fazer, nem ninguém pra conversar. Minha mente vagueia rapidamente e eu começo a lembrar de coisas... Coisas que eu só queria esquecer.


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Notas finais do capítulo

Espero que estejam gostando!! Nos vemos no próximo capítulo!!



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