Pedestal escrita por AHB


Capítulo 1
Pedestal




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Outro dia fui ao pequeno cinema no centro da cidadezinha em que vivia para assistir a um filme que acabara de estrear. Falaram que era de terror, mas não tive medo. A protagonista era de dar pena, pobre coitada. As colegas de escola faziam barbaridades e a mocinha – que linda que era – sofria nas mãos delas. E em casa também, porque a mãe era completamente desprovida de sanidade e castigava a filha sem motivos. Me irritou profundamente ser incapaz de atravessar a tela e mudar toda aquela história. Chorei no fim, o que foi um evento engraçado na opinião dos meus colegas.

Logo na saída andávamos pelas ruas pouco movimentadas, ladeadas por casas bem pequenas, algumas com nichos para imagens religiosas nas paredes de tinta descascada. Era noite, a maioria das pessoas já tinha ido dormir e deveríamos ser um incômodo grupo de jovens voltando além da hora para o lar.

Um morador das cercanias reclamou da barulheira que causávamos e antes que pudesse estar em meio a uma briga, deixei meus amigos, seguindo meu próprio caminho por uma travessa solitária. Estava perto de casa quando um gato pulou graciosamente de um canto escuro para o meio da passagem, bem diante de mim. Era um felino gordo, talvez uma gata prenha. Tinha a pelagem felpuda e cinza e olhos dourados, brilhantes feito faróis e me encarava como a um desconhecido e invasor. Não tinha superstições, mas não ousei cruzar o caminho do animal, não por medo, mas por respeitar sua territorialidade.

“Deixa-me passar, dona gata.”

Passos que não pude ouvir até estarem realmente próximos assustaram a gata e ela correu dali antes que eu tivesse consciência que chegava alguém. Eu sabia quem era, uma moça estranha e feia que evitava tudo que era gente do bairro. Olhando bem, lembrava muito a personagem daquele filme. Ela sustentou o encontro de nossas vistas por um breve momento, então baixou a cabeça e andou para longe, na direção oposta a que eu deveria ir, quase tão rápida quando a gata que a pouco estivera ali.

Já em casa, quando deitei, tive a impressão de ter visto pela janela a gata caminhando no alto do muro e sonhei que em vez dos olhos dourados e ovais, ela tinha olhos humanos cheios de escuridão iguais aos da moça e ao fundo uma voz aguda dizia que “todos irão rir de você”. Era claro que minha cabeça estava cheia de coisas, fazendo uma orquestra disrítmica das memórias marcantes daquela noite.

Em pouco tempo, acabei quase esquecendo desses estranhos acontecimentos, até passar diante de uma casa muito velha, há anos desabitada. Lá estava essa garota que andava sozinha e ficava horas sentada na mureta daquela casa abandonada. Todo mundo sabia desses hábitos dela. Esquisita.

Nem sei porque comecei a perder tempo pensando a respeito dessa moça. Era realmente como aquela Carrie do filme em exibição no cineminha do centro, mas sem a mãe louca. Acho que morava com a vó, ou sei lá. Nunca falei com ela, até porque ela jamais falava, sequer encarava, quem quer que fosse.

Porém passei a desviar minha rota em direção à casa velha, fingindo que era um atalho, só para ver a criatura. Era meu show de aberração visitar a vigília da jovem. Tudo tão incomum. Por que aquela casa? Me enchia de indagações a figura delicada da qual só podia adjetivar a postura, pois nada mais sabia.

A garota era uma estátua viva que por vezes piscava ou mudava de posição. Eu olhava para ela e ela estava olhando para o pássaro pousado no galho das primaveras. Tinha visgo no muro e a ação do tempo. Parecia que ela, a moça, tinha sido construída junto com a casa em algum dia do passado. E ficou por lá, criando limo com a pedra e a madeira de que era feita a construção.

Pálida. Silenciosa.

Apenas gostava de olhar para a beleza trágica da moça antiga sob as primaveras.

Ninguém entenderia, achariam que era um interesse romântico pela estranha. Aquela figura alienígena no mundo dos normais. Como fazer entender que era agora minha nova tradição – um costume enraizado – adorar a santa da mureta?

E santa não fala. Tampouco te ouve ou responde. Apenas é alta e calma, exercendo alento sobre o peregrino prostrado a recitar Shakespeare. Eu me desdobrava em versos sem maiores razões que não ter recebido um olhar sequer em troca de minhas visitas. Possível que fosse retardada, por isso nunca dirigia o olhar em minha direção.

Oh, atração bizarra por aquela garota distante.

 

Desses dias largaram uma caixa com três gatinhos na área sombria da casa abandonada. Eles estavam bem, saltavam uns sobre os outros e batiam as patinhas nos arbustos. A senhorita calada pegou um deles nos braços, acariciou com a ponta dos dedos as costas cinzentas do bichinho. Eu sabia, lá do meu esconderijo, que o gato ronronou, grato, enroscado no colo da musa do tempo imemorial. Queria ser um filhote de gato, seguro entre as mãos brancas e trazido até perto do rosto de mármore. Delicada e doce. Queria ir até lá roubar o lugar do maldito gato. Que droga, passaria a alimentá-los para que não fossem embora e ela sempre quisesse vir e vê-los.

Ah, gatinhos, a minha dama dos estranhos gosta tanto de vocês, que sorte, meus pequenos.

 

Quando chovia ela não vinha gastar a tarte no isolamento, mas eu me escondia sob o guarda-chuva e parava pelo menos um segundo para observar a impressão de retrato vazio que a ausência dela dava ao trecho de muro rodeado por um arco de ervas e flores.

Caminhei até o lugar que pertencia a ela. Vi os filhotes de gato adormecidos sob a área coberta diante do batente da porta de madeira trabalhada e corroída da casa. Queria que a moça estivesse lá: podia imaginá-la rindo para mim, os cabelos lisos e longos estariam molhados, grudados no corpo e aí minha musa seria algo entre afogada e sereia. Curvaria-me de forma galante para tocar-lhe a face com os lábios. Então ela ia inclinar um tantinho o rosto para o lado, prefazendo um beijo estalado. Seria engraçado porque a água da chuva ia escorrer para dentro de nossos narizes e faria um barulho estranho. Meio difícil de respirar e por causa do frio faria um vaporzinho entre a gente.

Riu quem me viu viver um beijo imaginário sob a chuva. Ela tinha a boca pequena, rosa e fina. Nariz delgado. Cílios longos e olhos negros. A presença inteira dela estava lá. Podia abraçá-la e sentir como era magra e macia. Corpo quente apesar da superfície fria devido à intempérie. Era um claro sinal de insensatez: não deveria jamais beijar a louca do bairro.

 

No dia que o sol retornou, a moça não veio com a luz dourada da nova manhã.  (Dispunha-me a me tornar poeta por ela, de quem sequer sabia o nome.)

Esperei ansiosamente, andei em círculos por horas inteiras me perguntando se deveria contar que a beijara sem que lá estivesse. Logo já era noite e apenas um gato saltou do muro para a rua. Era tudo mistério no pedestal sem musa.

Ela fazia de propósito, eu sei. Conhecia meus sentimentos e sabia o quanto a amava em sua postura de desprezível e louca que fala com animais e plantas. Todos sabiam o quanto beirava a condição de insana, esperavam que fizesse coisas como deixar gente esperando até caducarem os visitantes.

Precisava encontrá-la a todo custo, nem que fosse batendo de porta em porta.

Tentaram dizer que eu estava doente, que impressionei-me com um filme e projetara isso em uma desconhecida. Depois falaram que ela partiu para não mais voltar. Parem com isso! Pare você, eles respondiam. Não eram capazes de entender que não era uma paixão, apenas precisava vê-la. Precisava contar que a havia beijado.

Como poderia tocar em uma mulher feita do mais puro mármore, tolos? Me tomam por alguém com problemas? Queria erguer um santuário e poder orar à santa todos os dias sobre amor e beijos sonhados.

Sentei aos pés do muro baixo e colhi as pétalas de primaveras murchas. Esperaria dia após dia porque ela tinha que retornar ao seu devido lugar.

O gato roçou a patinha no meu joelho como se perguntasse “ainda aqui?”. O sopro suave do vento rangia a madeira da velha casa. Admirado com a precisão do beija-flor e o desabrochar de novas flores, ergui devagar o corpo e sentei – pessoa muda, pálida, estranha – sobre o pedestal de pedra adornado de musgo. A solidão é admirável.

Mente perdida nos raios de sol escapando por entre a trança de plantas que tanto remetiam à face de uma bizarra santa, não vi, nem percebi a figura esguia, sozinha que nem eu, meio oculta por verde, poste ou guarda-chuva, admirando uma moldura agora preenchida. Eu era a pessoa-estátua diante da casa posta ao secreto observador.

Escrito em 05/ 2010.


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