The mood for Love escrita por Clarisse Hugh, p a squad


Capítulo 1
The mood for Love


Notas iniciais do capítulo

A todas as amigas maravilhosas que este OTP me presenteou, esta é para vocês... ♥



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O ambiente estava iluminado, observei mentalmente com desdém enquanto sorvia o gosto amargo de um drinque qualquer, isso definitivamente ninguém poderia negar. Muito embora as luzes amareladas passassem uma sensação de desconforto, claustrofobia e sufocamento muito superiores ao original objetivo de clarear o amplo salão. Destacando incontáveis vezes mais as manchas de uso nos móveis de mogno, a poeira incrustada nas bordas dos vidros das cristaleiras e a imensa variedade de bebidas enfileiradas, dispostas no balcão do bar, ao invés de seus suntuosos lustres e castiçais, outrora o centro das atenções e encanto dos clientes; hoje, não mais que um porta pó.

Patético. O lugar como um todo era ridículo, de um atendimento grotesco, serviço pífio e uma clientela pior ainda. O escárnio que estampava minha face, entretanto, não se refletia com vigor em meus gestos preguiçosos, muito acostumados a executarem maquinalmente o trajeto do copo cheio até meus lábios ávidos e da minha boca cansada até o desgastado tampo da mesa onde o entediado barman cumpriria seu essencial papel social de entornar mais álcool em minha taça por quantas vezes fosse necessário, até me embebedar. Sorte do estabelecimento que terá que me aguentar durante a noite toda nessa cena medíocre reprisada infindavelmente até que eu finalmente desista e resolva irromper pela madrugada sem rumo certo.

Apesar de minhas previsões desse pseudo futuro recente, a noite estava apenas começando e eu não era nenhum clarividente. Ultimamente o esotérico em mim começava e findava na origem, nas memórias. Há certas coisas vistas que não se pode ignorar ou esquecer.

Lembro de quando praticamente respirava magia, o dia era todo uma festa e um culto, fui admirado e temido, o mundo era mais azul. Mas já lutei demais, me desgastei demais, me decepcionei demais. Foi se o tempo do místico, tridentes e cavalos reverberando tempestades em pleno verão. Agora só havia o cético, cansado e pateticamente melancólico Poseidon.

O mais interessante disso tudo: os mortais tanto desejarem tornar-se especiais, heróis, deuses.... Há! Mal sabem eles o quanto sua efemeridade nos causa inveja.

No início, o prospecto da imortalidade nos enche os olhos, dá a sensação de poder, controle, e mal podemos conter nosso ego a inclinar-se em direção ao infinito. Mas aí o tempo – ah, força inescrupulosa, outrora tão aparentemente promissora – chega para bater-nos à porta. Meu corpo segue intacto, no auge de sua forma física, mas a energia que habita em mim pulsa em letargia.

Sou eterno, mas cansado como um velho. Sou potencialmente tão destrutivo e forte quanto os elementos primordiais, mas tão igualmente desagradável, obsoleto e descartável quanto as marcas de umidade nesse balcão: indesejável, embora não haja efetiva forma de livrar-se delas.

Talvez seja o álcool me deixando ainda mais rabugento, mas olhando ao redor percebo grupos de amigos aproveitando a bebida, desinibidos em sua conversa e rindo! Por tudo que é mais sagrado, a futilidade ambulante de saltos da esquerda tem cara de quem poderia acabar descrevendo essa noite como divina. Humpft, como se houvesse algo de espetacular em experenciar essa fossa existencial. Mas é claro que esses babacas juvenis nada parecem entender acerca de filosofia e, quem eu quero enganar? Nem mesmo eu compreendo. Não é como se umas doses de whisky me tornassem um especialista.

Desisto de me aborrecer com os demais clientes do lugar e tento concentrar-me no líquido ocre, reluzindo como citrino derretido no copo de vidro em minhas mãos, enquanto busco maneiras de livrar-me de um tédio opressor, mas não posso evitar relancear uma olhada súbita para minha direita. Não posso, porque a porta foi aberta e uma corrente de ar invadiu o espaço. Não posso, porque a aura do recém-chegado me atrai como a um imã, de forma tão enérgica que chega a ser pungente. Não posso, porque seria capaz de reconhecer aqueles cachos loiros em qualquer lugar.

Ela costumava ser a mais atenta e perceptiva de nós, mas tenho a impressão de que os éons a afetaram tanto quanto a mim, pois não faz menção de me notar. Atena soa como uma peça mal encaixada naquele quebra-cabeça, pois sua postura sempre tão ereta, altiva e impecável não condiz com os ombros inclinados e o coque desleixado que adorna sua cabeça, muito menos com os corpos suados e as bebidas de baixa qualidade do lugar.

A iluminação barata ressalta a sobriedade de seu casaco cor de chumbo e sua palidez pincelada com bolsas arroxeadas abaixo dos olhos. Recebo uma pequena recompensa familiar, contudo, quando a vejo revirar os mesmos discretamente em resposta a algum comentário dirigido a ela. Os velhos tempos não se esvaíram de todo, ao que parece.

Analisá-la me recorda rotinas e conhecimentos familiares, mas como defini-la em meio a todo esse caos instaurado dentro de mim? Sobrinha irritante, inimiga declarada, desafeto antigo e, entretanto, é como se uma estranha conexão nos interligasse. Pensar nela agora não me causa repulsa tal qual costumava fazer. Por mais incrível que pareça, é quase como um respiro aliviado, como o suave aconchego da referência conhecida.

Levanto-me da cadeira no canto afastado e, ao impulsionar-me para frente, não deixo de me sentir exposto, cada traço e defeito muito bem delineado ao romper a proteção da sombra propícia. Encaminho meus passos em um trajeto em sua direção num gesto impensado e não posso conter-me, sempre fui o dos impulsos. O segredo é deixar o instinto conduzir, bem como o ir e vir das ondas. A tática é sorrir, como se nada importasse e, quando se trata da fama do mar, nada importa mesmo. As águas sempre foram boas professoras de imparcialidade.

Me aproximo de onde a donzela acaba de entornar o conteúdo da taça comprida repousando inerte a sua frente. A deusa da razão mostra-se por demais meticulosa em tudo que faz e, por isso mesmo, essa aparente dipsomania me pega desprevenido por um momento. Contemplo, no entanto, seus dedos muito firmes e longos, e não enxergo sintomas de alcoolismo, mas sim, indícios de uma potencial pianista.

Quando, por fim, ocupo o lugar a seu lado, tenho ciência de a ter compreendido mais no espaço de poucos metros do que numa vida inteira. Tenho uma certeza interior a respeito de minha presença ter sido notada, mas não há um só músculo em seu rosto muito gélido que denote qualquer expressão. Apenas mais uma recordação viva de sua frieza costumeira. Ouço seu timbre pedante ao se dirigir a mim, e sei que estou em casa.

— Acho que seria um pouco demais esperar me ver livre de você...

As notas de sua voz pintam um ranço pela minha pessoa que não se sustinha, cedendo muito rápido para um cansaço e exasperação os quais eu conhecia bem. Presenciar os sintomas daquele abatimento mental tão recém experienciados por mim refletidos na deusa mais centrada do Olimpo, causava-me um misto de sentimentos ambíguos. Se, por um lado, era um alívio ter a confirmação de não estar sozinho nessa odisseia de questionar os rumos da existência, pelo outro, Atena seria a última pessoa no mundo que eu esperaria encontrar desestabilizada de tal forma.

Palas costumava ser o bastião de firmeza de nossa família, e essa tristeza refletida em seus movimentos um tanto letárgicos me causava um certo aperto no peito. Em meu íntimo crescia um desejo de consolá-la, como se ao reestabelecer-se sua postura régia habitual as coisas pudessem reencontrar o rumo.

Apesar desse vago sentimento, fui o designado para representar a água por uma razão. Tal qual ela, sou capaz da adaptação, reconheço a natureza do mundo e adéquo-me através da volubilidade. Identifico as nuances da inconstância e as sinto como se fora meu próprio sangue. Quando se trata da água e do tempo, há uma verdade há muito conhecida que compartilham, talvez herança de meu pai: uma vez feita a mudança, já não havia saída. As eras antigas e as versões originais de nós já estavam perdidas, a questão que ditava o jogo atualmente era E agora?

— Tempos difíceis, Teninha. – A julgar pelo meio sorriso, ainda que seco e de canto, ela apreciara minha escolha de palavras. Não era esse, afinal, o cerne de todos problemas?

— Como acabamos vindo parar aqui?

Podia falar-lhe das inclementes Moiras, do que sabia sobre jornadas e destinos, mas aquele não era momento para dois velhos inimigos discutirem carma, então só chacoalhei a cabeça, resignado, enquanto voltávamos a beber.

I'm in the mood for love

Simply because you're near me

Funny, but when you're near me

I'm in the mood for love

O silêncio moldava-se a nosso redor tal qual poeira assentando-se muito gradativamente. A música ao fundo e os demais sons ressoavam abafados, ao menos para mim. Cada centímetro de meu ser muito consciente dos resquícios amargos de nossa insatisfação, da eletricidade estática em nossas auras, da mecha de cabelo que insistia em soltar-se da presilha presa na parte de trás de sua cabeça e também do quanto a ponta de seus dedos aparentava estar gelada. Eu poderia segurar suas mãos nas minhas se as coisas fossem diferentes.

Mas, a despeito de qualquer passado, era a meu lado que a deusa da guerra justa se encontrava, mais vulnerável do que eu jamais a vira, e eu não achava nada justo que as regras estivessem mudando tão rapidamente. Não diante de um velho amigo como Hefesto ou Héstia, mas na minha frente foi que sua cabeça deixou-se cair, pesada, sob a palma direita, exibindo todo seu cansaço e deuses, eu poderia segurar suas mãos nas minhas.

Quando finalmente toquei-lhe, minhas digitais deslizaram suaves pelo seu punho antes de envolverem sua palma por completo. Não era nenhum perito em quiromancia, mas as linhas de suas mãos me convidavam como se ali repousasse meu futuro e eu o segurei com gentileza.

— É só que... parece uma batalha perdida. – Sua voz vacilou por um instante, bem como a batida errática de meu coração.

A falta de propósito? O destino? Os anos? Nós? Sua sentença se aplicava tão bem a todos os nós que pareciam emaranhar o fio de nossas vidas e, ainda sim, o tecido seguia sendo cosido.

— Você sabe que eu não desisto.

Atena assentiu, apesar de minha fala responder melhor a pergunta que nunca chegou a ser verbalizada.

Heaven is in your eyes

Bright as the stars we're under

Oh, is it any wonder

That I'm in the mood for love?

 Cumplicidade silenciosa aparentava sentar-se conosco à mesa, os ares noturnos subitamente mais agradáveis. Quem diria, mas quando se olha bem, as luzes do teto até chegam a lembrar um pouco as estrelas.

Notas antigas se sobressaindo a cacofonia do estabelecimento decadente, foi quando me vi assoviando a canção, desejando jogar tudo para o alto e simplesmente dançar com ela. É, nesses momentos se tem noção de que se bebeu demais. Mas estranhamente, nada soava fora do lugar. Atena até mesmo parecia menos entregue, a um passo de sorrir de novo. Genuinamente desta vez.

A possibilidade de vê-la feliz é um desafio completamente novo e, de repente, minha própria tristeza não é mais tão opressora assim. Um novo estado de espírito vem ganhando força em meu ser, pois desde o primeiro instante em que a vi tenho a sensação de estar me descobrindo.

Amargura. Cansaço. Admiração. E algo mais. Uma pressão miúda no fundo do peito me ancorando no agora, algo a tanto esquecido que soava como novo.

Why stop to think of whether

This little dream might fade?

We've put our hearts together

Now we are one, I'm not afraid

Nesse instante soube que poderia até marchar para a derrota, desde que fosse a seu lado, o cinza em seus olhos reluzindo mais como prata e menos como nuvem. Sem pedir explicações percebi que ela se reencontrava também, possivelmente tão surpresa quanto eu, mas quando se trata dessa loira, nunca se sabe ao certo.

A trégua pode não durar, qualquer resquício de carinho ser consequência do álcool. A esse ponto da história, não chego a descartar a hipótese de uma miragem, mas estendo meus dedos, marcados por grossas cordas e redes de pesca, e a textura sedosa de seus cachos é tangível demais para ignorar. Bem como o cenho feminino franzido de leve sem, contudo, se afastar.

Talvez, se ficar sabendo, Zeus esperneie por raiva ou tédio, quem sabe até risque o céu escuro com seus raios, implicando comigo ou com outra besteira qualquer, e pode até ser que o mundo esteja desabando do lado de fora, mas por aqui o mar serenou e não há sinal algum de tempestade.

And if there's a cloud above

If it should rain, we'll let it

But for tonight forget it

I'm in the mood for love

— De tantos lugares, depois de tanto tempo, e é da forma mais improvável que efetivamente chego a conhecer você.

Conhecer as linguagens do mundo devem terem-na feito uma autodidata, pois foi na ausência de palavras que ela me leu.

— Devia tentar a praia qualquer dia desses, sabe. Se não me engano a antropologia prega pelo estudo da espécie em seu habitat natural...

Mais do que uma provocação, era um convite.

Oh yeah

Why stop to think of whether

This little dream might fade?

We've put our hearts together

Now we are one, I'm not afraid

 Apolo só prosseguia o deus da música porque poucos foram agraciados com a melodia de seu riso. Atena tinha inverno em sua altivez, outono em sua postura, primavera nos gestos fluidos, verão na luminosidade de seu rosto e o sentimento universal de quatro letrinhas, recém-nascido em mim, flertando com cada adorável pedacinho seu.

— Talvez eu devesse me permitir bronzear um pouquinho mesmo...

And if there's a cloud above

If it should rain, we'll let it

But, for tonight, forget it

Cause I'm in the mood for love

I'm in the mood for love

For love, for love...

Os acordes finais do saxofone ressoavam baixinho enquanto a voz de Rod Stewart desaparecia preguiçosamente dos autofalantes.

— Eu gosto muito dessa música.

Mas o fato era que eu gostava mesmo era da verdade que ela subentendia.

— É linda mesmo.... Eu gosto também de uma outra que ela me lembra muito...

Queria perguntar qual, mas os acontecimentos falavam por si mesmos.

{I know I stand in line,

Until you think you have the time

To spend an evening with me

And if we go some place to dance

I know that there's a chance

You won't be leaving with me

And afterwards we drop into a quiet little place

And have a drink or two}

 — And then I go and spoil it all by saying something stupid like I love you.... – A confissão tão doce em sua voz que poderia se passar por um mero sussurrar.

O olhar que trocamos enquanto ela se levantava, deixando o bar, transbordava impossibilidades e talvez uma esperança. No mais, o lugar como um todo seguia ridículo, de um atendimento grotesco, serviço pífio e uma clientela pior ainda...

Mas talvez a estupidez não fosse tão ruim, afinal.


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Notas finais do capítulo

Verso cantado por Atena: “E então eu vou e estrago tudo dizendo algo estúpido como ‘eu te amo’...”

Confesso ouvi as músicas citadas na história mais vezes durante os últimos dias do que na vida inteira, mas elas são maravilhosas, então valeu totalmente a pena. Finais levemente bittersweet são minha religião, mas confesso que a Afrodite em mim gosta de acreditar que depois disso eles honraram os clichês, se casaram e foram felizes para sempre, mas a escolha fica por conta de cada um de vocês.