Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 14
Tédio, tédio e mais tédio.




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Oiê!

Bom te ter por aqui! Eu já estava definhando de tédio!

Sério, está mais parado que o normal por aqui... Ou talvez eu só esteja super sensível ao tédio. Sabe, ficar sozinho num andar por longos períodos de tempo faz isso com você.

Enfim, você deve querer saber novidades, certo? Afinal, por qual outro motivo voltaria?

Pois bem, deixa eu ver... Teve o velório do Agente Chihuahua. Coisa pequena, pouca gente foi, a Dra Acre pareceu se controlar muito para não chorar (e conseguiu. É difícil ela perder a compostura) e eu preferi assistir de longe. Eu nem tinha intimidade com ele mesmo... A não ser que conte ser estagiescravo dele por uma tarde como "intimidade". O caixão estava fechado e era bem bonito, não que eu entenda muito de estética de velórios... Só achei bonito. Material de qualidade.

Depois que enterraram e fizeram aquelas solenidades todas, a vida voltou ao rumo de sempre. Que, no meu caso, significa tédio. Até recebi um convite pra um lanche na lanchonete, mas recusei, eu realmente não gosto da comida de lá. Acho que eu poderia pôr a comida da lanchonete como a terceira coisa mais assustadora desse prédio.

Tédio é tão entediante, não é?

Ei, eu estava te contando algo da última vez, certo?

Vejamos... Ah sim, quando eu virei balconista/cara do balcão.

Vamos continuar?

"Só pra lembrar: foi logo depois de eu ser porteiro (da porta automática...)

Não, eu ainda não aceitei bem essa história. Era uma porta automática!
Enfim, a linha de raciocínio do RH, se é que existiu uma, foi mais ou menos essa: eu sabia o básico de praticamente todas as funções, já que, pelo menos por algum tempo, eu fiz de tudo. Sério, acho que sou o único cara aqui que já esteve em todos os andares do prédio!... Quer dizer, em todos menos no oitavo. Acho que, se eu chegar perto daquele andar, não saio mais! É a 'ala psiquiátrica' por assim dizer. Não sei como não parei nele ainda.

A antiga recepcionista deve estar por lá agora.

Bem, exceto o oitavo, já estive em todos!

E, se eu sabia o básico de tudo, eu podia muito bem orientar as pessoas perdidas ou algo assim.

Pessoalmente, gostei mais desse emprego inventado que do de porteiro. Sei lá, me senti menos inútil com esse.

Acho que eu nunca vou superar essa coisa de porteiro.

Me colocaram atrás de um balcão de informações. Legal. O problema era onde iriam me pôr... No começo, eu ficava bem ao lado da recepção. Lá era bem legal, fazia sentido estar lá (afinal, era bem à vista, o que faz sentido se eu ia orientar gente perdida), e o lugar era agradável. Eu até puxava conversa com a recepcionista (não a que foi afastada por problemas alimentares, a que veio antes dela... Ou foi a que veio antes da que veio antes dela? Sei lá... Recepção é um negócio tão dinâmico por aqui. Parece até que é um novo por mês!) e, se eu tivesse sorte, batia um bom papo. A moça era bem simpática, sinto falta dela, pena que não durou no emprego.

Mas, ei, onde eu estava?

Ah, o balcão. Pois é, térreo, que legal, ainda estava dentro da 'cadeia alimentar'... E não durou nem uma semana. Pois é, não sei se era por puxar conversa demais com quem não devia e em horas que não devia, se era por dar informações não pedidas, se era por me meter na vida alheia, só sei que me arrancaram de lá rapidinho.

Depois do térreo, fui para o segundo andar, ao lado da biblioteca. Já começou a ficar esquisito, mas ainda fazia algum sentido: pessoas perdidas procurando orientação perto de uma biblioteca é uma possibilidade bem aceitável. E lá não era ruim também. Claro que, na época, eu não tinha problemas com o Sr Dragão... Hoje em dia isso seria um arranjo bem problemático.

Suspeito que o problema era o fluxo de pessoas ainda ser muito grande. Tá bom que eu não atrapalhava mais o trabalho dos recepcionistas (não que dê para atrapalhar muito aquele trabalho... Ele já é bem ruim por si só), mas me deixar perto de pessoas que leem não era exatamente uma boa ideia. Motivo? Pessoas que leem gostam de histórias, eu conto histórias.

Acredite, minhas histórias desagradam muita gente! Me surpreende ninguém nunca ter tentado calar minha boca de vez.

Até teve aquela tentativa como agente de campo, mas não sei se conta...
Depois dessa, nunca tive grandes problemas envolvendo arriscar minha vida.

Enfim, histórias: eu contava pra quem quisesse ouvir (o que eu faço até hoje com você, se não percebeu) e não tinha o menor problema com isso. A biblioteca era perto da creche, então foi aí que fiz 'amizade' com boa parte das crianças. Tá bom que eles preferiam ouvir 'João e o Pé de Feijão' a ouvir 'a vez que eu botei fogo na cozinha', mas eu não tinha grandes problemas com isso. O público manda!

Já as crianças maiores/pré-adolescentes/pré-aborrecentes/jovenzinhos/seja-lá-como-se-chama-esse-povo gostavam bastante das minhas histórias 'pessoais'. Pessoinhas curiosas... Mas era bem divertido. Quer fazer crianças grandes rirem? Diga que tentou hipnotizar um galo e fracassou miseravelmente.

Me tiraram de lá também. É, também não entendi direito o motivo... Vai ver minhas histórias estavam incomodando ou algo assim. Eu posso ser muito barulhento. E se me juntar com as crianças piora!

Só sei que fui subindo e, contrariando as 'leis naturais do prédio', quanto mais eu subia, mais minha 'posição na cadeia alimentar' descia. Afinal, quanto mais longe do térreo ficava o balcão de informações, mais sem sentido a existência dele ficava. Pelo menos era o que eu pensava na época... Depois eu descobri o 'limbo do quarto andar'.

Antes de acabar nesse fim de mundo, eu estive no nono andar, perto dos escritórios, e no terceiro, perto da segurança. Obviamente, nenhum desses deu certo. Provavelmente pelo mesmo motivo dos outros... Falar demais, ser inconveniente demais, ou vai ver que o pessoal só não gostava de mim. Até que, num belo dia, alguém teve a brilhante ideia de me jogar para o quarto andar e estou aqui até hoje.

História emocionante, não?

Não? Ah, tá bom...

Desde que eu estou no 'limbo', ganhei muito tempo livre para não fazer nada, mas isso você já sabe, certo? E eu também parei de tentar fingir que tenho alguma utilidade aqui, afinal, ninguém vêm ao quarto andar procurando informações.

Isso é, quase ninguém... Teve uma vez, poucas semanas depois de eu ser 'realocado' para cá, que um garoto veio aqui. Tá que ele não estava exatamente procurando informações, acho que ele queria explorar ou algo assim, mas está valendo! Ele também ficou meio confuso com o motivo de eu estar aqui, então eu expliquei, de um modo talvez mais exagerado que o necessário, que só queriam se livrar de mim e me isolar do resto da humanidade. Ele riu.

Garoto legal. Ele começou a vir aqui quase todo dia, acho que fugindo do resto do povo da idade dele ou algo assim... Até fiz uma piada do tipo 'nem uma guerra apocalíptica consegue extinguir os emos'. Ele não se importou muito com a piada, sorte minha. Ele era meio calado, mas gente boa. E eu não tenho problema nenhum em fazer a parte da conversa toda sozinho, então ficou tudo bem. Acho até que ele curtia minhas histórias estranhas e comentários aleatórios. Se não curtia, pelo menos continuava voltando.

Um dia até contei pra ele um 'segredo', por assim dizer. Não era nada demais, mas eu sabia que ele curtiria a informação: no quinto andar, última porta à direita, tem uma sala que não serve para absolutamente nada. Isso aí, fizeram uma sala e nunca colocaram nada nela, só um lugar vazio e inabitado... Nunca entendi bem qual era o propósito original daquele lugar, nem sei por que não me colocaram lá de uma vez se só me queriam longe da 'civilização', mas estava lá. Chamei carinhosamente de 'cantinho das trevas' em homenagem a ele, porque eu sabia que ele gostaria de lá.

Por que eu digo que era 'segredo'? Porque eu nunca contei pra mais ninguém, ora. Acho que eu nem devia saber da existência daquele lugar! Descobri numa das minhas andanças não autorizadas entre empregos... Não acho que seja grande coisa, mas ele curtiu essa atmosfera toda de 'segredo'. Pra ser sincero, o único motivo de eu não contar pra ninguém é não querer que alguém decida se envolver em 'atividades recreativas' por lá também. Já tem gente fazendo isso em lugar demais!

Pena que o garoto emo não fica mais no cantinho das trevas. Eles combinavam tão bem! Ele foi um dos que morreu naquele massacre que eu comentei. Lembra? aquele com velório coletivo, honras militares e essas solenidades todas? Pois é, que pena.

Tirando ele, acho que nunca recebi 'visitas' inesperadas. A Soraya/Sandra/Sicília vinha aqui antes, claro, mas ela trabalhava aqui, então acho que era comum. E o Valério/Victor/Vero vem aqui de vez em quando pra ver se eu não ateei fogo em nada e pra me ajudar a cuidar do tamagotchi. Tirando isso, ninguém.

Nem a Dra Acre vem me visitar! Acho injusto da parte dela, já que eu já fui ao laboratório dela... Mas, pensando bem, não sei se gostaria daquela mulher por aqui. Pelo menos não por agora nem num futuro próximo. Ela anda irritável esses dias...

Enfim, acho que viajei até demais agora, certo? Eu estava falando do meu emprego como cara do balcão!

...Nah, pensando bem, já falei tudo que tinha pra falar.

Então acho que essa foi a história"

É impressão minha ou está ficando cada vez mais difícil ter uma boa conversa?

Saudade do tempo que eu tinha um emprego novo por semana... Pelo menos eu tinha coisas interessante a contar.

Sabe como é difícil passar o dia atrás de um balcão e ainda ter papo?

Além disso, pelo menos nos outros empregos eu não morria lenta e dolorosamente de puro tédio.

Tá bom que eu podia morrer em incêndios causados acidentalmente, ou por causa de ataques de monstros, ou ser assassinado pela tia da creche, mas eu não morria de tédio! Menos quando eu trabalhei em escritório... Aí era em pé de igualdade com o balcão.

Não me leve a mal, eu amo esse balcão, sério. É só que o tédio me dá muita vontade de reclamar...

Pensando bem, eu nem devia estar aqui reclamando. Vai ter uma reunião geral de emergência hoje e acho que eu vou. Pela primeira vez na minha vida, não vou nem precisar me disfarçar pra não ser barrado! É aberto a todos!

Eu sei, que raro ter uma reunião importante aberta... Geralmente o povo do "topo da cadeia alimentar" detesta se misturar com os "meros mortais".

O motivo da reunião "de emergência"? Sei lá... Pelo que eu entendi, o chefe (o "chefão", o chefe de todo mundo do prédio. Prefiro deixar claro porque eu já tive tanto chefe que, se eu chamasse todo mundo nesse prédio de "chefe", ainda estaria meio que certo) teve um ataque cardíaco ou algo assim. Ou seria um AVC? Talvez um derrame... Bem, é algo nessa linha.

Melhor eu colocar uma roupinha mais decente para a reunião, não é? Mas não um terno! Eu não quero nem ver um terno tão cedo depois daquele episódio das rãs! Não é nem pelas rãs, é pelo terno mesmo... Ô coisa ruim.

Enfim, melhor eu me apressar.

Até mais!


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