Moiras escrita por Lucca


Capítulo 19
Joshua


Notas iniciais do capítulo

A ideia original ia por um caminho diferente, mas a visita de uma Terapeuta Ocupacional à escola onde trabalho inspirou esse capítulo e trouxe Joshua para essa história.



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Semanas depois, Jane e Kurt desembarcaram em Johannesburg. Ela estava muito apreensiva, o mar de incógnitas que eram suas memórias já havia se tornado lugar comum. A possibilidade de resgatar parte de suas lembranças, sua infância ali naquele país, trazia muito desconforto e insegurança. Kurt estava bem mais otimista.

No caminho até o hotel, Jane observava atentamente tudo pelo vidro do carro. Ele segurou sua mão e ela retribuiu. Após o check in, no quarto, ele tentou começar de forma casual:

— Enfim, chegamos! E teremos uma semana inteira só nossa.

— Kurt, acho que não foi uma boa ideia.

Ele a abraçou:

— Calma, nós acabamos de chegar.

— Tem algo me incomodando aqui.

— O que?

— Não sei. O cheiro, as pessoas, tudo!

Ele se afastou apenas o suficiente para poder encontrar seus olhos:

— Lembranças?

— Não, não! É só uma sensação, nada mais.

— Você está insegura assim por causa de uma sensação? Essa não é Jane que eu conheço.

— Kurt... _ ela olhou ao redor tomando coragem para depois encará-lo _ eu não sei se quero lembrar...

Ele respondeu com um beijo suave em sua testa, depois segurou firme suas mãos e as levou até seu peito.

— Já conversamos sobre isso. Nenhuma memória vai te tirar de onde você está agora, porque você é única, Jane. Alice, Remi e Você são uma só pessoa. Não há motivos para temer. Além disso, você era só uma criança...

— Uma criança capaz de matar, Kurt, muito mais que só um coelho.

— Uma criança que foi obrigada a matar, Jane. Vamos, se dê uma chance. Antes do orfanato você teve uma família que te amou. Não serão apenas memórias ruins.

Ela fechou os olhos e se jogou contra o peito dele. Ali, sentindo o coração de Kurt, seu cheiro, aconchegada nos seus braços era tão seguro. “Ele está certo. Melhor enfrentar do que fugir.”

Os dois primeiros dias transcorreram como dias normais de um casal de turistas: passeios, comidas e cultura diferentes. Jane aproveitou mais do que esperava. Era divertido ver Kurt tão surpreso com seu entorno quanto ela. Algumas cenas desconexas voltaram à sua mente, nada ruim, tudo muito fragmentado: um sorvete, crianças brincando, a casa, o quintal. Existia um passado lá que não era feito só de trevas.

No terceiro dia, decidiram visitar o Lion Park, uma reserva que possibilita o contato com animais com ímpalas, kudus, gnus, hienas, girafas e, é claro, leões. Jane ficou muito decepcionada com o local onde os felinos estavam. Apesar de terem grandes dimensões, não diferiam muito das jaulas dos zoológicos tradicionais. O contato com os animais herbívoros foi diferente e, enquanto se divertiam alimentando as girafas, um grupo barulhento de aproximadamente 10 crianças chegou ao local.

Elas tinham idades variadas de 3 a 8 anos e estavam empolgadíssimas com os animais. Um garotinho, que era bem menor que os demais, movia-se com dificuldade e tentava se aproximar dos animais.  Atrás das lentes grossas de seus óculos, parecia curioso com tudo. Entretanto, os demais não davam espaço e a mulher que acompanhava o grupo quando se aproximou foi para recolocá-lo bem mais atrás. Isso não o fez desistir, com suas limitações, aos poucos se reinfiltrou no meio do grupo apenas para ser novamente afastados pelos maiores.

A atenção de Kurt e Jane foi totalmente roubada por aquele menino. As girafas já não interessavam mais. A mistura de teimosia e perseverança do pequeno é que os encantava agora.

— É inadequado nos aproximarmos e ajudar?_ Jane questionou.

Kurt parecia relutante, mas a situação pedia alguma intervenção e Jane não se conteve:

— Com licença, será que podemos aproximar um pouco mais o pequenininho das girafas?

A mulher respondeu com indiferença:

— Não é necessário, ele não entende, nem é capaz de ver direito. _ as outras crianças a sua volta mal a deixavam responder em sua euforia com os animais.

— Mesmo assim, se você permitir, nós gostaríamos muito de ajuda-lo a chegar mais perto.

A mulher concordou com a cabeça e voltou sua atenção para as outras crianças. Quando Kurt e Jane se aproximaram de menino não tiveram uma recepção calorosa:

— Não, não! Sai! Não.

Se entreolharam surpresos com a teimosia do garotinho. Jane tentou argumentar, explicando que iriam ajudá-lo a se aproximar das girafas, mas só obteve novos “Não” e “Sai”. Então Kurt tomou a iniciativa, pegou o garotinho e o colocou bem próximo dos bichos. Os protestos pararam. Os instantes seguintes foram de total encantamento: do pequeno com as girafas e de Jane e Kurt com o pequeno.

Tudo o que Jane conseguiu com novas tentativas de aproximação foi ouvir um “Não gosto de você”. Mas ele gostava das girafas e como gostava.  E isso bastava para o casal. Os minutos passaram rápido demais e a mulher se aproximou avisando que era hora de retornarem. Agradeceu pela ajuda, informou que o nome do garotinho era Joshua e que todos ali eram órfãos. Se despediram e partiram numa van, deixando Jane e Kurt ainda suspirando para trás.

Pouco depois da van partir, Jane olhou no chão e viu a fraldinha que Josh segurava o tempo todo. Correu para pegá-la:

— Kurt, ele parecia tão apegado a isso.

— Vamos ter que descobrir onde é esse orfanato e levar de volta pra ele. Afinal, somos o FBI, não somos?

Jane riu. O cheiro de Josh que estava naquele pedacinho de pano despertava nela o desejo de guardá-lo, mas ela seria incapaz disso.

Algumas abordagens ali mesmo com os seguranças do parque identificaram o nome da instituição e sua localização. Como estavam distante cerca de 40 minutos da cidade, decidiram almoçar primeiro e descansar um pouco no hotel antes de fazer a visita.

No orfanato foi fácil conseguir autorização para entregar a fralda para Joshua pessoalmente. A recepção que receberam do garoto não foi diferente daquela do parque. Jane começou a se sentir especial cada vez que ouvia aquele “Não gosto de você”.

Na conversa com os responsáveis pela instituição descobriram que aos dois anos e meio de idade Josh engasgou com uma bala e teve uma parada respiratória seguida de um grave quadro de pneumonia por aspiração, ficando em coma por mais de 40 dias. Sua mãe era usuária de crack e não teve condições de acompanhar seu tratamento, por isso foi trazido ao abrigo. Pouco depois, faleceu de over dose. Não havia outros parentes. Apesar de ainda ter grandes limitações, os médicos estavam otimistas com o avanço de Josh e acreditavam que, em condições melhores de reabilitação, ele poderia superar as sequelas.

— Que história triste. Pena que moramos tão longe. Eu adoraria poder fazer algo para ajudar. _ Jane comentou

— Temos um programa de apadrinhamento, se vocês se interessarem. Vocês podem estar presentes na vida dele através de telefonemas, presentes e visitas. Sei que os EUA é muito longe, mas é o que temos para oferecer.

O sorriso em seus olhares não deixava dúvida e foi Kurt quem se pronunciou:

— Nós aceitamos.

Resolvidos todos os tramites legais sobre o apadrinhamento, puderam curtir o restante dos dias das férias. As visitas ao orfanato foram diárias, sem qualquer mudança por parte de Joshua. Na última visita, enquanto saíam do orfanato, Jane recuperou uma de suas memórias:

Shepherd estava sentada à sua frente, abraçada à Ian. Alice segurava forte a mão do irmão e disse:

“_Eu não gosto de você. Não vou deixar você levá-lo!”

“_Alice, eu quero vocês dois. Tem certeza que o melhor para Ian é ficar aqui?”

Alice encarou o olhar suplicante de Ian, observou sua cicatriz e pensou sobre o quanto ela tinha falhado em protegê-lo até ali. Então,  respondeu secamente:

“_ Eu vou.”

Jane só contou a Kurt quando já estavam no hotel. Aquela lembrança foi para ela um oásis em meio ao deserto. Talvez ela tenha errado em aceitar ir com Shepherd, mas seu primeiro instinto foi se negar a isso. Já existia Jane em Alice.

Voltaram para casa com um enorme vazio. Em todas as conversas, os momentos com Joshua voltavam. Poucas noites depois, já na cama, assistiram a um vídeo enviado pelo orfanato. A monitora pediu para que o menino mandasse um beijo para os padrinhos, então puderam ouvir Josh dizendo: “Não gosto de você!”

Jane se levantou da cama aflita.

— Claro que ele não gosta de mim. Ele está lá, sozinho, lutando pela sua recuperação. Não tem ninguém lá por ele. Nós passamos pela sua vida e agora estamos do outro lado do mundo esperando um beijo num vídeo. Que diferença isso faz pra ele? Que chance real ele tem? _ as lágrimas não podiam mais ser contidas.

Kurt se levantou e a abraçou.

— Jane, ele está bem. _ sua voz expressou toda a insegurança de seu coração. Naquele momento, ele só conseguia pensar que não teria ninguém lá para ajudar Josh a se aproximar das girafas. Então, agarrou-se ainda mais a Jane.

Na manhã seguinte, pouco depois do início do expediente, Kurt chamou Jane à sua sala:

— O que houve?

Ele lhe entregou alguns documentos onde ela pode ler “Adoção Internacional”

— Kurt, você tem certeza?

— Mais que tudo! E você?

Um sorriso tomou conta do rosto de Jane:

— Mais que tudo! É uma grande mudança e talvez meu passado atrapalhe isso também...

— Eu estou disposto a mudar por essa família, Jane. Vamos ser avaliados, passar por entrevistas. Estou seguro das nossas chances de conseguirmos a aprovação. Nosso presente prova que todo o seu passado com a Sandstorm está superado. E estamos fazendo isso pelo futuro, nosso e de Joshua.

Após algumas semanas, Josh desembarcou no aeroporto de Nova York com seus novos pais. Arredio, teimoso e persistente, ganhou o team no primeiro encontro.

— OMG! Toda essa teimosia é tão Jeller! Se não fosse essa pela cor de chocolate, eu teria certeza que era filho biológico deles. _ Rich comentou recebendo um nada delicado cutucão de Patterson.

 Jane se afastou do trabalho para se dedicar em tempo integral à recuperação do filho.

Nas primeiras noites, quando o colocavam na cama e arriscavam o tradicional beijo de boa noite, recebiam o já esperado: “Não, sai”. Mas numa noite, Kurt estava no banho, quando Jane repetiu a rotina da hora de dormir e foi surpreendida. Josh segurou forte sua mão num claro convite para que ela ficasse.

Quando Kurt saiu do banho e foi até o quarto, observou Jane sentada na cama de Josh com a mão entrelaçada à do menino.

— Eu simplesmente sou incapaz de soltá-lo._ ela disse com lágrimas nos olhos.

— Eu também não soltaria. Aproveite!

Jane se surpreendeu consigo mesma na maternidade. Ela se sentia muito mais segura sobre quem era. Ela era Jane Weller, esposa de Kurt Weller, mãe de Joshua Weller, irmã de Roman. Toda a culpa que sentia por seu passado perdeu a importância. Viver o presente e construir o futuro de sua nova família era o sentimento que a impulsionava agora.

Quatro meses depois a recuperação de Josh era inacreditável. A mudança em seu comportamento com a família também. Os especialistas diziam que a avaliação de seu desenvolvimento já alcançava os patamares da normalidade. Além do amor incondicional e dedicação dos pais temos que considerar a contribuição de Patterson e Rich com jogos criados especialmente para desenvolver as habilidades do garoto. As atividades esportivas e brincadeiras com Tasha e Roman também ajudaram muito.

Claro que ele não andou livremente com os pais nem fisioterapeutas. Essa conquista foi obra de Bethany. Eles se entenderam muito bem e presentearam toda a família com essa novidade durante a festa depois do batizado de ambos. Kurt e Jane choraram de alegria. Sarah e Reade, padrinho de Josh, também.

Ao final da festa, Zapata depositou uma nota de dez dólares na mão de Reade. Roman, que cumpria prisão domiciliar e continuava trabalhando como informante para as agencias governamentais, quis saber do que se tratava:

— Uma vez eu apostei com ele que nada faria Weller mais feliz que Jane.

— Mas ela faz parte disso.

— Peraí... Reade, devolve meu dinheiro.

Reade só se afastou sorrindo. Todos continuavam fingindo não perceber o envolvimento entre Tasha e Roman.

Com o tempo, a família reivindicou momentos a sós com o menino. As tias Tasha e Patterson passariam o dia com Josh para mamãe ter um tempo livre. Jane tentou argumentar que não era necessário, mas sabia que as amigas mereciam esse momento. Combinaram o reencontro no NYO, ao final do expediente, mas elas não apareceram.

— Não liga, só envia uma mensagem, Patterson. Eles nunca vão concordar com isso.

—Não é pra eles concordarem. Nós somos as tias e temos o direito cometer desvios à regra._ Patterson disse enquanto enviava uma mensagem para Jane e Kurt os encontrarem no McDonalds que não era longe dali.

Kurt estava no final dos relatórios da semana, todo o andar já estava vazio, só os dois ainda estavam ali. Ele olhou para Jane sentada no sofá e se lembro do quanto desejou que tudo isso se tornasse realidade. Ela estava ainda mais linda, havia um novo brilho no seu olhar, mais intenso que antes. Tudo começou ali, no FBI.

Ele abandonou os relatórios, se levantou e foi até ela, puxando-a para si num beijo apaixonado. Decididamente não foi um beijo casto. Quando se separaram, Jane olhou interrogativamente pra ele que retribuiu com um sorriso e disse:

— Vem comigo!

Entraram na sala de reuniões. Por algum motivo bobo, já que estavam sozinhos ali, ele fechou a porta à chave e cerrou as persianas.

— Tantas vezes estivemos sentados nessa sala tentando decifrar os planos da Sandstorm e minha cabeça se negava a pensar em outra coisa além de poder ter você nua em cima dessa mesa comigo.

Jane sentiu o rubor tomar conta do seu rosto, mas seu corpo inteiro queimou com o que ele acabara de dizer.

— Esses pensamentos não eram um privilégio seu. _ disse maliciosamente.

Mais nada precisava ser dito. Aquele momento e aquela sala eram totalmente deles.


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