Dissolva-me escrita por scarecrow


Capítulo 1
capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

capítulo inspirado na música dissolve-me da banda alt-j.



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DISSOLVA-ME

Era tarde, e eu estava triste.

De repente, o que parecia ser a melhor ideia possível para o nosso entardecer tinha se tornado tudo o que eu mais detestava na vida.

— Venha comigo, Carlos — me chamou, sem vergonha alguma.

Suas mãos puxaram minha blusa fina, desprotegendo-me do frio. Disse que não mais uma vez, mas ele parecia não querer ouvir. Beijou meus lábios, minhas clavículas, os botões da minha calça justa. Desamarrou meus cadarços e enrolou minhas meias para dentro de um dos pares.

— Você sabe que eu odeio sentir areia nos meus pés — reclamei.

Ele me levantou sem esforço. O vento forte bagunçava seus cabelos escuros desde a raiz até as pontas cacheadas. Bruno não chegou a puxar minha mão magra até o mar como eu imaginei que ele faria; no lugar disso, apenas caminhou sozinho em minha frente, passo atrás de passo, até a água salgada.

— Está muito frio —  anunciei, como se isso fosse nos impedir alguma coisa.

O Sol havia caído mais rápido do que esperávamos, e eu mal havia percebido o quão escuro já estava. Imaginei que já fosse por volta das oito da noite. Um horário perfeito para voltarmos para casa, se me perguntassem. Mas não para Bruno.

Porque Bruno deu um grande mergulho na imensidão noturna, deixando-me sozinho debaixo da lua crescente. Deixei meus pés chegarem até a água, mas nunca mais do que isso.

E ele voltou encharcado. 

Encharcado de água, de sal e de um bilhão de sentimentos indecifráveis, que transbordavam dos seus dedos até seu toque suave em minha pele quente. Bruno voltou cheio. Completo e denso, como eram todos os dias de sua vida.

E eu fiquei ali, estagnado, envergonhado por ter tamanha admiração exposta.

— Eu posso nadar daqui até a África —  ele me contou, apontando para a direção oeste — mas de nada adiantaria se você não molhasse mais do que apenas os pés.

Não soube responder. Ele saiu da água e foi em direção à terra firme, sem parecer incomodado com a quantidade de grãos de areia que se colavam em sua pele aderente. O vi vestir de volta apenas a blusa de frio colorida e se sentar onde achava devido.

Voltei minha atenção ao mar.

Eu era pouco e raso. Era solto como areia.

Eu não era nada e, por isso, sequer entendia como Bruno, tão completo de si, poderia se apaixonar por alguém como eu. Alguém quase apático de tão inexperiente, quase covarde de tão incrédulo.

Porque eu não tinha nada, e vivia esperando que o Bruno fosse o suficiente para me abastecer por inteiro, torcendo, de dedos cruzados, para que eu nunca precisasse me tornar algo puramente meu. 

Até chegar aquele entardecer rotineiro, em que Bruno me disse não ser suficiente. Ele nunca seria suficiente.

Porque de nada adiantava enquanto eu não me amasse mais do que o mínimo.

Pensei sobre o assunto por algum tempo. Talvez, Bruno tivesse razão. Talvez, se eu tivesse alguma coisa, a mínima coisa que fosse, ele não precisaria ter tudo o tempo todo.

Talvez, se eu tivesse algum pouco, não precisasse de mais ninguém para me completar.

Se fizesse o devido esforço, no meu tempo meio demorado, eu já estaria muito bem sozinho. E então, quem sabe, todo o amor que o Bruno tinha por mim fosse capaz de me transbordar, gota por gota, até me dissolver em sua densidade.

Até o dia em que minha admiração virasse também um bocado de companheirismo, daquele verdadeiro.

Olhei para a água em meus pés. Caminhei com a areia entre meus dedos até que o sal chegasse à altura dos meus joelhos tortos. Nunca havia reparado o quão barulhento era o mar, muito menos me lembrava de quando na vida estive tão decidido quanto agora.

Prendi a respiração.


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