O Caminho da Andorinha escrita por BadWolf


Capítulo 20
Pontos Finais e Definitivos




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Iorveth observava da janela os cavalos de Ciri e Turiel se apequenarem no horizonte. Ainda sentia-se um pouco dolorido pela briga recente com a jovem de cabelos brancos. Jamais esperaria tamanho poder de uma dh’oine como ela. Aliás, “dh’oine” em termos, pois havia fortes traços élficos nela. Deveria ser uma mestiça, embora nem isso explicasse o porquê de seus cabelos cinzentos. Talvez fosse a mesma razão de Gwynbleidd.

Suas atenções abandonaram a janela logo que Saskia soltou um grunhido de dor. A guerreira que ainda não havia despertado, acabou retomando sua consciência na hora certa. Iorveth sentiu-se levemente tolo por ter atacado primeiro, mas isso era seu instinto por ver dh’oines sempre como uma ameaça. E isso quase custou-lhe sua vida, se não fosse por Saskia.

—Você está bem? – permitiu-se perguntar o elfo, mais por educação do que necessidade. Era óbvio que ela não estava. Seu rosto estava pálido e seus olhos tontos. Ela parecia estar prestes a desmaiar, mas seu ímpeto a impedia de demonstrar fraqueza. Ao menos nisso ela não mudou, concluiu mentalmente o elfo.

—Vou ficar melhor se outra pessoa como essa Ciri não aparecer por aqui.

—Não vai. Só aldeões costumam procurar por Turiel e nenhum deles é curioso o bastante para entrar aqui. – disse, de repente, Anya.

Iorveth franziu o canto do lábio cicatrizado. Ele não sabia explicar, mas não se sentia confortável quando próximo da pequena dh’oine. Algo nela lhe causava não só desconforto, mas também uma ligeira raiva. Sabendo que não havia motivos para tal, Iorveth limitava-se a fazer algo que odiava: controlar suas emoções. A última coisa que precisava era ser expulso da casa de Turiel porque implicou com a pequena dh’oine que a elfa resolveu colocar debaixo de sua asa.

—Vamos torcer para que esteja certa. Er, como é mesmo o seu nome? – perguntou subitamente Saskia.

—Anya.

—Anya. – repetiu Saskia o nome da menina. – Um belo nome.

—Obrigada. – agradeceu educadamente a menina.

—Curioso, Anya... Não me lembro de ter visto você aqui, na casa de Turiel, na última vez em que estive por aqui.

A menina assentiu, como se já entendesse o que ela queria dizer.

—Eu passei a morar com Turiel um pouco depois de vocês terem partido, segundo ela me contou. – explicou a menina.

—Entendo. Então, como veio parar aqui?

Anya fechou levemente seu semblante.

—Meu pai precisou ir à guerra. Ele era temeriano. Ele conhecia Turiel, então me deixou aos cuidados dela. Disse que assim que a guerra terminasse, voltaria para me buscar. Mas...

—Já entendi, não precisa me explicar. – completou Saskia, já imaginando o que havia acontecido ao pai de Anya. Não era difícil imaginar. Foi morto na Guerra. Muitos temerianos perderam sua vida para os nilfgaardianos e crianças órfãs como Anya infelizmente eram as que mais sofriam com isso. Mas ao menos ela tinha Turiel.

—E sua mãe? Ela também está...?

Ao perceber que o semblante da menina entristeceu-se ainda mais, Saskia preferiu mudar o tópico do assunto.

—Ainda assim, estou surpresa em ver uma humana aos cuidados de uma elfa Aen Seidhe como Turiel.

—Turiel não se importa com isso, e eu também não. – respondeu de modo inteligente a menina. – Todas as raças deveriam ser tratadas com igualdade. Somos diferentes, mas nem por isso precisamos desrespeitar uns aos outros.

Saskia pareceu bastante surpresa e satisfeita com as palavras da jovem.

—Sábias palavras. – disse. – Se o Norte tivesse alguma Rainha com esse pensamento, tenho certeza que pessoas como eu e Iorveth não precisariam pegar em armas para lutar.

—Tolice, Saskia. – disse por fim Iorveth, sentindo-se autorizado a participar daquela conversa diante da menção de seu nome. – O racismo está entranhado nas veias dos Reis do Norte. É algo que passa de geração em geração, diria até que vai se aprofundando. Vide o desgraçado do Foltest. Racista até o último fio de cabelo.

Saskia voltou seus olhos a Anya. Percebeu que a menina estava séria. Ameaçadoramente séria. Se seus olhos fossem adagas, Iorveth certamente já estaria morto, apunhalado violentamente por eles. A raiva da jovem foi logo percebida pelo elfo, que se limitou a sorrir em escárnio.

—O Rei Foltest foi um bom Rei.

—Não me faça rir, dh’oine. Talvez tenha sido um bom Rei aos seus, mas o meu povo... Restava os polgroms, ameaças e morte. Não que seu amado Rei Foltest pudesse se importar com os elfos.

—Pois vamos olhar para uma situaão bastante inversa: se fosse você a ostentar uma coroa e governar um reino tão diversificado quanto a Teméria, com elfos, anões e “dh’oines”, como você tanto chama, você seria um bom governante para os “dh’oines”?

Iorveth tomou-se de seriedade. A resposta era óbvia. Claro que ele não se importaria. Na verdade, com tanto poder assim em mãos, Iorveth levaria o inferno aos dh’oines. Mesmo inferno pelo qual seu povo passava.

Saskia olhou de soslaio para seu marido, que engolia em seco a conjectura de Anya. A guerreira sentiu vontade de rir, mas sabia que isso só pioraria as coisas. Coube a própria Anya acrescentar ao final.

—Nada pior do que tecer críticas a alguém quando, no fundo, você desejaria fazer basicamente o mesmo estando no lugar dessa pessoa. Você combate Mal com Mal, portanto, não pode reclamar de colher o que sempre plantou.

—Sua ingenuidade me embrulha o estômago, pequena dh’oine. Se tivesse vivido o mundo lá fora, saberia que lados como “bem” ou “mal” simplesmente não existem. O mundo é cruel e cada um faz o que pode para sobreviver.

Sobreviver... Anais sabia bem o que significava essa palavra. Por meses, foi o que ela mais fez. Adormecer em clareiras na floresta, cavalgar horas a fio com Roche. Esconder seu nome, como ela fazia agora, diante de um homem que não hesitaria em cortar sua garganta logo quem soubesse quem verdadeiramente ela era.

Mas ele não poderia saber destas coisas. Talvez um dia, ela pensou. Nessas horas, a vontade de Anais era esquecer Roderick e qualquer casamento e marchar até Vízima, para proclamar o que era seu. Ou o que ensinaram para ela que era dela. Só para que não pudesse baixar mais a cabeça para pessoas arrogantes como Iorveth, que a julgavam como uma camponesa medíocre e irrelevante. Mas apesar do perigo, Anais não quis que ele vencesse.

—Não há lados, realmente. Mas há ações. E somos resultados delas. E quanto ao Rei Foltest... Ele poderia ter seus defeitos, é verdade, mas não merecia ter sua garganta cortada na frente de seus próprios filhos para que Nilfgaard pisasse como bem entendesse em seu reino. Agora, se me dê licença... – respondeu a jovem Anya, causando certa abismação em Saskia.

Quando a porta se fechou com rispidez, Saskia deu um assobio.

—Diga o que quiser, mas essa menina Anya é eloquente. – assinalou a guerreira, ainda abismada pelas palavras repletas de emoção da jovem.

—Não gosto dela.

Saskia riu. – Me surpreenderia se gostasse. Ela é uma dh’oine, afinal.

—Não é apenas por isso. Há algo em especial nela que me irrita...

—Como os anões dizem, “você não foi com os córneos dela.”

Iorveth fez uma careta. Odiava os ditados populares dos anões, mas desta vez talvez a sabedoria anã tivesse acertado. Aquela jovem não apenas o enojava por ser uma dh’oine, mas algo nela que causava uma inexplicável impaciência. O elfo não sabia dizer bem o porquê, mas seguir sua intuição era uma das razões para que ele estivesse vivo por tanto tempo.

—Vamos deixar de lado a menina. Por alguma razão absurda, Turiel a colocou debaixo de sua asa. Pode não haver qualquer lógica, mas precisamos aceitar sua decisão.

—Talvez haja lógica. Ela considera a menina como uma filha.

Iorveth torceu o lábio. Outra vez, o assunto “filhos”. Por que Saskia tinha que trazê-lo para a conversa? O assunto desagradava a Iorveth, mas o elfo sabia que era necessário conversar.

—Falando em filhos... – começou, com zombaria na palavra. – Presumo que sua derrota trouxe um pouco de reflexão e juízo quanto aos seus últimos feitos...

Saskia voltou seus olhos para sua mão. Mais precisamente, para a ausência de seu dedo mindinho. Sua mão estava enfaixada, mas a guerreira já sabia que a ferida estaria fechada, cicatrizada. Seu dedo jamais se regeneraria, agora que estava nas mãos de terceiros e dificilmente sendo destruído. Ela se perguntava como seria usá-lo agora, incompleto, para segurar uma espada. Isso a atrapalharia? A resposta lhe dava medo. Claro, havia a mão esquerda, mas ela jamais foi proficiente nesta mão.

—Fui impulsiva. – disse.

Iorveth suspirou. Ao menos, ela estava admitindo que errou. Isso era um bom sinal.

—Meus feitos jamais trarão Carl de volta. Não causei nada além de destruição e dor. Duvido que iremos conseguir recuperar o que está faltando do projeto.

—Pode ter sido queimado, junto aos acampamentos rebeldes. – alegou Iorveth. Sua hipótese fez Saskia sorrir, de um jeito cansado. Como ele sentia falta de seu sorriso, pensou curiosamente o elfo.

—Teria sido a única coisa boa de minhas ações. Ainda assim... Estive refletindo nos últimos dias sobre o que aconteceu em Mahakam... Vejo agora, com mais clareza, que há algo errado nessa história.

—E o que seria? – estranhou Iorveth. Não esperava ouvir dúvidas de Saskia.

—Se o pai de Carl roubou o projeto e os vendeu aos Filhos da Tem´ria, então o que ele fazia nos arredores de Mahakam? Ele foi encontrado muito rápido.

—Porque dh’oines são estúpidos. – concluiu com facilidade Iorveth. Saskia negativou, insatisfeita com a conclusão do elfo.

—Ele pediu para que eu cuidasse de Carl...

—Talvez porque temesse represálias dos anões.

—Não penso assim, Iorveth. Carl não estava lá. O que os anões poderiam fazer com ele, uma criança que dificilmente saberia o que é um projeto de arma? Aliás, Carl apareceu muito rápido, o que significa que ele estava nas redondezas de Mahakam. Por que seu pai se entregaria e o deixaria tão longe de casa?

Iorveth inalou profundamente.

—Eu interroguei alguns sobreviventes dos Filhos da Teméria. Ninguém sabia do projeto. E deu para perceber que eles falavam a verdade.

—Há algo errado. – concluiu Saskia. – E se os rebeldes não roubaram o projeto?

Iorveth parecia pensativo.

—Os Filhos da Teméria jamais foram inimigos de Mahakam e dos inumanos. Afinal, acreditamos em causas diferentes, mas não há atrito entre elas. Se o roubo deste projeto é realmente uma armação, então...

—Nilfgaard. – disse repentinamente Saskia. – Estão incomodados com os rebeldes, todos sabem disso. Os Filhos da Teméria tem atrapalhado muito o governo nilfgaardiano. E se estão usando os inumanos para destruí-los?

Iorveth arqueou levemente o lábio, movendo sua cicatriz.

—Se a intenção era destruir os rebeldes, fizeram muito bem planejado. Aposto que os rebeldes estão enfraquecidos, depois dos seus sucessivos ataques.

—Mas Nilfgaard não sabe que eu sou um dragão.

—Mas Nilfgaard sabe do poderio bélico de Mahakam. Anões, elfos... Todos dispostos a pegar em armas para proteger a si mesmos. Esse plano é engenhoso o bastante para ser maquinado por um nilfgaardiano. Talvez você esteja certa, Saskia, mas ainda assim, tudo isso são apenas vãs conjecturas. Precisamos investigar mais afundo essa história.

Saskia suspirou.

—E o que você sugere?

Iorveth parecia incerto. Saskia o encarava com seus olhos castanhos, que transbordavam raiva por ter sido enganada mais uma vez, e também desejo por saber a verdade. Ambos sentimentos que o familiarizavam com a boa e velha Saskia, dos tempos de Vergen. A guerreira que parecia ter feito o impossível e conquistado seu coração, apesar da relutância do elfo em admitir seus sentimentos.

—Irmos até a casa desse menino dh’oine. É um bom ponto de partida para investigarmos.

Saskia parecia claramente surpreendida. Antes que ela o questionasse sobre sua atitude, Iorveth respondeu.

—Essa história merece um ponto final. Final e definitivo. E o que quer que seja a verdade, nós a enfrentaremos. Juntos. Como deveria ter sido desde o princípio. Posso não concordar com suas atitudes, posso achar que você agiu tolamente. Eu me decepcionei, senti até raiva de você, mas vejo que este é apenas mais um percalço dentre os muitos que já enfrentamos. – o elfo interrompeu-se, respirando profundamente. – Suas mãos nunca me faltaram quando eu mais precisei. Nada mais justo que as minhas estejam disponíveis para você também.

Saskia sentiu-se sem palavras, surpresa pela franqueza de Iorveth. Antes que pudesse formular um agradecimento decente, o elfo saiu do quarto, deixando-a sozinha na cama. Seus olhos castanhos voltaram-se mais uma vez a mão direita e a ausência de seu dedo mindinho. Foi preciso suspirar duas vezes para que a guerreira não chorasse.


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