O Caminho da Andorinha escrita por BadWolf


Capítulo 15
Caminhos Desencontrados




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Teméria, 1279.

Vilarejo de Lathlake

 

            Ciri ouvia o estalar dos galhos, balançados pelos fortes ventos daquele fim de tarde repleto de nuvens em Lathlake. Caminharam por quase o dia todo para longe de Lathlake, por entre as pastagens e colinas da região, e quando por fim chegaram aos pantanosos terrenos de Velen,o bruxo decidiu dar meia-volta. De volta à Lathlake, agora os dois bruxos já estavam perto do bosque, que cercava o vilarejo.

Por insistência de Bjorn, a bruxa de cabelos brancos agora caminhava até a mata, seguindo o faro do bruxo. Cansada, Ciri sentia-se andando em círculos. Duvidava muito que houvesse qualquer wyvern na região, que dirá um dragão. Uma criatura grande como aquela logo seria avistada. Agachado e alheio ao seus resmungos, Bjorn aspirava o ar. Seus olhos felinos estavam agora fechados, ajudando a formar no rosto do bruxo uma feição contemplativa e concentrada.

            -Madeira queimada... E sangue humano.

            Conhecendo bem os sentidos sobre-humanos de bruxo – sentidos que ela não tinha – Ciri sabia que não poderia retruca-lo. Restava-lhe apenas segui-lo mata adiante, apesar de achar que uma fera tão grande quanto um dragão não seria capaz de se esconder em uma floresta.

            -O vento está ajudando a levar o cheiro da fumaça até aqui. Tenho certeza de que o dragão andou atacando mais gente. – disse Bjorn, levantando-se solenemente do chão.

            -Por que diz “mais gente”? Ninguém de Lathlake foi atacado...

            -Concordo. O Dragão está atacando pessoas na mata.

            -Que pessoas? – questionou a Bruxa, descrente.

            -Os Filhos da Teméria.

            A jovem arregalou seus olhos verdes. – Os rebeldes?

            -É como os nilfgaardianos gostam de chama-los. Tenho seguido o rastro de destruição e morte deixado por este dragão negro, e esse rastro é puramente rebelde. Estou seguindo o dragão há semanas, desde as proximidades das Montanhas de Mahakam. O dragão está atacando as guarnições rebeldes escondidas na mata. Por um momento, cheguei até a pensar que esse dragão estivesse trabalhando para Nilfgaard, mas dragões não são seres completamente cientes. Imagino que as guarnições rebeldes estejam chamando a atenção desse dragão, invadindo seu território, ou o dragão simplesmente vê naqueles acampamentos uma boa refeição... Enfim, não estou interessado na política daqui. Quero apenas os espólios do dragão e nada mais.

            Enquanto caminhava lado a lado de Bjorn, Ciri não pôde deixar de se questionar sobre o porquê do bruxo de Skellige querer tanto assim esse dragão. Será que ele estava sendo contratado pelos Filhos da Teméria? A hipótese não era tão absurda assim, especialmente quando Bjorn recusou a intromissão do Rei no assunto. Bruxos não deveriam se meter em política, mas a própria tinha um exemplo e tanto de que, às vezes, quando o bruxo se dá conta, já está atolado nela.

            Logo o cheiro de fumaça começou a se tornar mais forte, a ponto de Ciri e seu medíocre olfato humano conseguir percebê-lo. Bjorn estava certo. A mata estava pegando fogo. Partículas de brasas já começavam a voar pelo ar e a temperatura já estava alta. Havia fogo, e ali perto.

            -Veja só... – apontou Ciri, para o que seria partes de um cadáver humano, mastigado pela metade inferior. Pelos lírios bordados em sua camisa, era um rebelde temeriano. Mais adiante, mais e mais cadáveres, carbonizados. E em pedaços. Quem não morreu queimado no acampamento decerto teve uma morte sangrenta debaixo dos dentes do dragão.

            Quando Ciri voltou seus olhos para Bjorn, percebeu que o bruxo estava desconfortável. Seu semblante estava pálido e sua boca retraída em uma estranha careta, que a bruxa não conseguia compreender o porquê.

            -Você está bem? – perguntou, confusa.

            Um grunhido de ânsia de vômito escapou da garganta do bruxo. Ciri estranhou ainda mais sua reação. Ele estava enojado? Com um cadáver humano? A bruxa tentava formular uma pergunta que não soasse ofensiva ou intrusiva a respeito do estranho comportamento de Bjorn, mas antes que suas palavras se reunissem, o bruxo a surpreendeu mais uma vez, erguendo de suas vestes uma espécie de máscara, que lhe tampou parte do rosto  – principalmente o nariz.

            -Um Filho da Teméria, como disse. – concluiu Bjorn, não dando qualquer tempo para que Ciri pudesse comentar sobre sua atitude inusitada de cobrir parte do rosto. A voz do bruxo chegava até mesmo a sair abafada por baixo do pano, notou Ciri.

            -Até onde sei, um dragão não possui inteligência a ponto de definir um lado político. – brincou Ciri.

            -Foi o que pensei também, mas ao que parece, esse dragão parece ter um apetite por rebeldes. Ou talvez, não goste de comer nilfgaardianos. Os Cavaleiros Negros devem ter uma carne muito dura, quem sabe...

            Ciri riu com a piada de Bjorn. Prestes a fazer um comentário, a bruxa sentiu seu medalhão tremer. Havia um monstro por perto...

            -Está sentindo seu medalhão tremer?

            -Eu não possuo medalhão. Eu o perdi.

            Isso explica porque ele não o exibe...

            -O meu está vibrando.

            Os olhos de Bjorn voltaram-se para o medalhão de Ciri, atado à cintura da bruxa.

            -Escola do Lobo? – comentou o bruxo. Ciri rolou os olhos.

            -Meu medalhão é da Escola do Gato.

            -Gato, lobo... Tudo felino. – menosprezou Bjorn. Não foi o suficiente para Ciri.

—Um bruxo que erra conceitos básicos sobre dragões, que faz o Axii enraivecer ao invés de acalmar, que parece ter nojo de sangue humano...

—Não tenho nojo de sangue humano. Meu olfato é muito apurado e não gosto do cheiro, é diferente. – justificou Bjorn, ainda com parte do rosto coberto.

—Ah por favor! Mais um pouco e você vomitaria nas minhas botas. Afinal, que tipo de bruxo é você?

            Os olhos felinos de Bjorn encontraram os de Ciri, verdes e humanos. Um tom de verde que o bruxo jamais vira no rosto de um humano. Certamente, um tom exótico de verde. Algo nas feições de Ciri lhe aturdiam de que ela tinha sangue élfico. Talvez fosse as belas feições do rosto ou a altura avantajada, incomum em humanas.

            -Um tipo de bruxo... – começou Bjorn. – que sabe que tem uma horda de endriúgas indo em nossa direção, olhando para a gente como a próxima refeição.

            As palavras do bruxo fizeram Ciri desembainhar imediatamente sua Zirael. Sua espada de prata estava banhada por Óleo Draconiano, mas agora não havia mais tempo para usar o óleo certo. Por fora, teria de servir. Costumava matar endriúgas em segundos e...

            Droga! Bjorn está do meu lado! Não posso usar meus poderes na frente dele!

            O bruxo de Skellige ergueu seu machado de prata, segurando-o firmemente com suas duas mãos. Seu rosto assumia agora uma expressão diabólica. Partiu dele o primeiro golpe, que afastou cinco endríugas de uma só vez.

            -Gostando do sabor da minha prata? – brincou, erguendo mais uma vez seu machado. Seus movimentos eram lentos, mas fortes e críticos. Com poucos golpes, os monstros morriam, graças à força aplicada pelo bruxo. Com sua Zirael na mão, Ciri dava golpes ágeis e concisos enquanto desviava do ataque das aracnídeas com facilidade, rolando do chão e contra-atacando, espalhando pela grama uma gosma verde soltada pelos ferimentos das endriúgas, que mal conseguiam atacar os dois bruxos. Uma delas tentou atacar Bjorn, mas o bruxo se protegeu com Quen, fazendo seu escudo explodir e soltar leves partículas no ar, projetando a endríuga violentamente para trás.

            Quando a última endriúga viva soltou seu agonizante suspiro de dor, caindo paralisada no chão, os bruxos embainharam suas espadas.

            -Acho que era a última. – concluiu Ciri.

            -Odeio matar monstros de graça. Sinto como se tivesse acabado de fazer um contrato deixar de existir quando isso acontece.

            Ciri riu com diversão. – Bom, não havia como conversar com elas e convencê-las de que o melhor não era nos atacar. Mas olha, talvez a gente consiga usá-las para alguma coisa... – disse Ciri, agachando-se à altura dos monstros mortos no chão.

            -O que tem em mente? – perguntou o bruxo, enquanto observava Ciri retirar de seu bolso uma pequena adaga e um frasco vazio de vidro.

            -Coletar um pouco do veneno dela e vender para Turiel.

            O bruxo riu. – Aquela elfa atrevida?

            -Ela pode ser o que quiser, contanto que me dê alguns Orens pelo veneno.

            Bjorn olhou para o céu. Apesar das nuvens a quase encobri-lo, dava para ver que o céu já estava a adquirir uma cor alaranjada, típica dos fins de tarde da Teméria. Passaram o dia todo a cavalgar e procurar evidências do dragão, mas só encontraram sinais concretos faltando pouco para anoitecer. E a noite não era uma boa aliada para uma batalha contra uma fera tão perigosa assim...

            -Certo. Vamos recolher veneno dessas endríugas e ver o que podemos conseguir. Talvez dê para pagar umas cervejas na estalagem.

            Ainda guardando um pouco de veneno de endriúga no frasco, Ciri voltou seus olhos para Bjorn, com grande indignação.

            -Então suje um pouco suas mãos e me ajude. Não vou fazer todo o trabalho por você.

            O bruxo riu sarcasticamente.

            -Mas como reclama... Tudo bem, eu vou te ajudar. – disse, tirando uma adaga de sua cintura e cortando os cadáveres, à procura de veneno. Os dois bruxos ficaram lado a lado, extraindo veneno das aracnas. Enquanto as gotas de veneno da ponta de suas adagas escorriam para dentro dos frascos, Ciri voltou seus olhos para o machado de Bjorn. Um belo machado de prata, pesado e bastante adornado. A julgar pelos arranhões em sua superfície, esse machado já tinha lá alguns séculos de idade. Os adornos em sua lâmina faziam Ciri admirar a arma. Era magnífica. O bruxo parecia ocupado demais para perceber, cortando o cadáver de uma endríuga e provavelmente procurando por embriões, o que só fez Ciri analisa-lo ainda mais.

            Está escrito na Linguagem dos Antepassados de Skellige... “Um presente ao Urso de Skellige, Havenkar”... Como eu suspeitava. Deve ter pertencido a outro bruxo, chamado Havenkar. Bjorn é jovem demais para ter um machado de prata tão antigo assim.

            -Não está à venda.

            Ciri saiu de seus devaneios com as palavras de Bjorn, cujo semblante sério e olhos de felino haviam abandonado o veneno para agora encará-la, estoicamente.

            -Como?

            -Meu machado não está à venda.

            Ciri sacudiu a cabeça. – Mesmo se estivesse, não estaria interessada. Não luto com machados.

            O bruxo riu.

            -Claro. Ele é quase do seu tamanho. Imagine só, você tentando erguê-lo... – o bruxo começou a rir debochadamente. Ciri rolou seus olhos.

            -Que exagero. Simplesmente acho que o combate com machado se torna lento demais. Prefiro espada. Mas afinal, parece que esse machado tem uma história.

            -Sim. – admitiu Bjorn. – Meu machado se chama Havenkar, porque é o nome de seu primeiro dono. Um bruxo de Skellige, bastante famoso por ter derrotado um grifo quando estava bêbado de hidromel...

            -Isso só pode ser mentira... – resmungou Ciri. Bjorn parecia inconsolável.

            -Não é mentira. Havenkar de Faroe o derrotou na Montanha de Ard Skelllige. Pena que todas as testemunhas já morreram de velhice.

            -Então, como esse machado foi parar na sua mão?

            Subitamente, o bruxo pareceu pensativo. Chegou a franzir os lábios, inquieto.

            -Eu o herdei do meu Mentor. É tudo que posso dizer.

            Ciri percebeu que a conversa adotara um tom amargo. Talvez, o Mentor dele tivesse morrido. Ciri havia perdido Vesemir e entendia muito bem aquela dor. Ela queria dizer palavras de consolo, mas não se sentia íntima o bastante de Bjorn para isso. E, a julgar pelas feições dele, ele também não precisava de consolo. Via saber há quantos anos havia acontecido essa perda... Certamente, ele já havia superado.

            -Creio que já coletamos o bastante de veneno. Duvido que Turiel tenha dinheiro para tanto. Vamos. – disse Bjorn, levantando-se e deixando para trás os cadáveres esvaziados das endriúgas.

 

£££££

 

            Adal tamborilava em seu copo. O pobre ferreiro bufava. Já havia perdido as contas de quantas vezes bufara naquela conversa com Turiel. A elfa parecia irredutível. Teimosia... Isso deveria ser coisa de elfa, pensou o ferreiro. Se mulheres já costumavam ser teimosas por natureza, imagine as elfas... Seu cenho estava apertado. Adal tentava se mostrar amedrontador, em vão. A elfa parecia não teme-lo, nem mesmo pelo fato dele estar usando uma espada atada à sua cintura. Talvez fosse verdade o fato de que ela enfrentou um dragão, pensou o ferreiro.

            -Eu já disse. Não. – enfatizou Turiel.

            -Anya já está na idade para casar. Não é mais uma menina.

—Já disse, ela ainda é muito jovem.

Irritado, o ferreiro se levantou da cadeira. Deu alguns passos para perto da elfa, que estava de braços cruzados e os lábios torcidos de irritação. Mas que elfa teimosa da porra...

—Você não entende, Turiel, porque você vive por séculos, mas Anya é humana. Não pode esperar para sempre. Ela já é considerada maior de idade, sabia? Pode se casar, se quiser...

—Ela não vai se casar sem a minha autorização. – alertou Turiel.

—Então, autorize. – por fim, o ferreiro bufou. – Por Melitele, Turiel! Essa menina não tem ninguém além de você! Não tem um pai para arranjar-lhe um casamento porque, como você disse, o pai dela morreu na guerra. Você terá de cuidar disso, seja elfa ou não!

—Ela acha que o pai está vivo e não quer tomar nenhum passo definitivo até que ele apareça. – explicou a elfa, provocando uma risada em Adal.

—Mas a guerra já acabou! Se ele está vivo, então por que não volta para casa? Por que não vem buscar a filha e passa a ser o pai de verdade dela?

Turiel parecia cansada, negativando com a cabeça.

—Não precisa me convencer sobre qualquer coisa, Adal. Só estou transmitindo o que ela pensa sobre o assunto. Já disse, não tenho absolutamente nada contra Roderick. Na verdade, até o acho um bom rapaz, mas eu acho que ela está muito jovem para uma responsabilidade tão grande como um casamento. Espere mais alguns anos e...

—Anos?! – exclamou o ferreiro. – Acha que Anya viverá por dois ou três séculos, assim como você? Ela está em uma idade ótima para se casar. O corpo dela já está formado, pronto para conceber crianças e...

Turiel bufou, irritada. – Humanos e sua obsessão em “conceber crianças”...

—Meu filho gosta dela, Turiel. Estou aqui pelos sentimentos dele. Queria que meu filho arranjasse uma noiva melhor, com um dote de verdade e de boa família, mas ele faz questão que seja Anya. Eles são amigos desde criança. Darão um casal feliz e abençoado por Melitele e...

Batidas à porta interromperam o ferreiro. Ao voltar seus olhos para a janela, o homem percebeu que a noite já havia caído. Passara quase a tarde toda tentando convencer a elfa. Mais uma vez, em vão. Sabia muito bem o que ouviria de Roderick. “Você não foi convincente o bastante” ou “ela não gosta de ser chamada de elfa e você com certeza a chamou disso!”. Como sempre, a culpa era sempre dele.

—Deve ser um de seus clientes. De qualquer modo, é melhor eu ir embora. As estradas andam muito perigosas para que eu me aventure à noite por elas.

Turiel levou o ferreiro Adal até a porta. Ao abri-la, surpreendeu-se com Ciri e aquele bruxo arrogante no limiar de sua porta, a aguardá-la. Seu cenho franziu logo que se aproximou de Bjorn, que tinha um estranho cheiro de cogumelos misturado a sangue humano, algo que a deixava confusa, pois bruxos costumavam matar monstros, não humanos.

—Entrem. – pediu Turiel, sendo prontamente obedecida pelos dois bruxos, que sem qualquer cerimônia se aproximaram do fogo, ainda que de pé. Ninguém poderia culpa-los por buscar o calor das chamas, pois fazia uma noite fria, afinal. Até mesmo para bruxos.

—Estão interessados em alguma poção? Elixir? Ervas? – ofereceu a elfa.

—Na verdade... – começou Ciri, deixando a elfa curiosa. – Nós estamos aqui porque temos uma proposta para te fazer...

—Que proposta? – estranhou.

—Matamos algumas endriúgas e coletamos o veneno delas. Interessada?

Turiel arregalou os olhos, contente. Já era clara qual seria sua resposta.

—Excelente! – exclamou a elfa. – Endríugas dão trabalho para matar, mesmo com as minhas armadilhas.

Ciri e Turiel começaram a negociar o preço dos cinco frascos de venenos de endríugas, chegando finalmente a um consenso de que cada um deles valia, ao menos cinco Orens. Para surpresa de ambos, os venenos renderam um bom dinheiro, que dava para pagar mais do que uma ou duas canecas na Taberna do Lucius.

Os dois bruxos despediram-se de Turiel, deixando a casa da elfa enquanto conversavam sobre seus planos para aquela noite. Também falavam um pouco de como deveriam proceder no dia seguinte, mas Turiel estava com a mente agitada demais para absorver qualquer palavra deles. Ao fechar a porta, percebeu que Anya já estava na sala.

—Adal continua insistente. – disse a menina, num tom conclusivo e desanimado. Inalando profundamente, Turiel terminou de trancar a porta e se aproximou da jovem. Seus cabelos castanhos claros, costumeiramente presos em um simples coque, estavam levemente trançados ao estilo élfico, que Turiel lhe ensinou. A jovem puxou um pequeno banco de madeira para perto da lareira, onde o calor ajudava a aplacar mais uma noite fria a castigar a Teméria, já tão próxima do Inverno e da neve que costumava embranquecer seus campos. A elfa fez o mesmo, espreguiçando-se levemente.

—Adal insiste no casamento. Na verdade, Roderick. Se dependesse de Adal, você não seria noiva dele. Não terá um dote e é associada a uma elfa.

—Queria responde-lo. Talvez ele parasse com essas insistências se me escutasse. – disse Anais, com firmeza.

—Não é assim que funciona na sociedade dos humanos, Anya. As mulheres não podem participar diretamente de decisões como casamento. Caberia aos seus pais, mas na falta deles, cabe agora à mim. E só cabe a mim porque não tenho marido.

—Por isso acho melhores as regras élficas. Sabe, homens e mulheres com igualdade...

Turiel deixou escapar uma sonora gargalhada. Uma grande ironia do destino que a filha de um Rei implacável e perseguidor de inumanos se simpatizasse com os modos de sociedade élfica, que Turiel lhe explicou e que agradou a jovem em muitos detalhes.

—Ainda bem que não há ninguém por perto para ouvir isso.

—Não há nada de errado em querer ter uma voz mais ativa.

Turiel voltou seus olhos à jovem. Era impressionante como o tempo passava rápido aos dh’oines. Como a vida deles era breve e passageira. Oito anos... Um breve instante na duradoura vida de um elfo, mas o suficiente para Turiel assistir uma pequena criança tornar-se praticamente uma adulta. Seu corpo desenvolveu-se velozmente e Turiel participou disso. Lembrava-se das tolas lágrimas infantis da jovem, ao perceber que seus seios estavam maiores a cada dia, do susto da menina ao acordar com a cama suja de sangue pela primeira vez, além do choque com a descoberta de que os sons estranhos provenientes do quarto que Roche dividia com Brigida estavam muito longe de ser alguma briga. Turiel participou de todas essas etapas. Algumas delas foram tão novidade para a elfa quanto para Anais, como o surgimento de pelos pelo corpo e espinhas nos rostos, algo que os Aen Seidhe não possuíam.

E agora, aquela menina – menina não, mulher – estava dividida. Dividida entre a promessa de um homem praticamente morto e a realidade que ela poderia alcançar. Pois Turiel não tinha qualquer trono para lhe prometer, mas poderia conseguir, ao menos, um bom casamento.

—Anais... – disse, por fim, Turiel. A jovem menina se sobressaltou. Raramente Turiel a chamava assim. Não apenas por segurança, mas porque estava acostumada com a ideia de que ela era apenas uma criança comum, cuja vida estava estranhamente ligada a um temeriano de rudes maneiras.

—Eu não posso. – disse, por fim, como se já soubesse quais seriam as palavras de Turiel. Os olhos de Anais abaixaram-se, com a menina curvando seu rosto e evitando os olhos de Turiel. Não pôde fazê-lo por muito tempo, pois sentiu uma mão a delicadamente erguer seu queixo.

—Ele está morto. – foi a resposta dura de Turiel.

Os olhos de Anais marejaram-se. Turiel continuou.

—Não há mal algum em seguir em frente, se quiser. Sei que você... Gosta de Roderick.

Um pequeno sorriso desenhou-se nos lábios de Anais.

—Não sei exatamente o que sinto por ele, mas... Admito que a ideia de construir uma família e passar o resto dos meus dias com ele me agrada. Roderick é o único menino que me olha como uma igual.

—Ele já tem dezessete anos. Para os padrões humanos, já pode se casar. Não é mais um menino, assim como você não é mais uma menina. Vocês não podem esperar para sempre.

—Eu sei, mas Roche... – Anais estava prestes a dizer alguma coisa, mas suas palavras morreram. – Eu não sei. Tenho a impressão de que ele está vivo.

—As notícias que circulam é que ele foi aprisionado, ao apresentar a cabeça de Radovid, e que morreu na masmorra.

—Ninguém o viu sendo executado. E se ele escapou?

Turiel riu secamente.

—Anais, sei o que Vernon representa para você, mas infelizmente a morte chega para todos. Até mesmo para homens como ele.

—Se ele morreu, a culpa foi toda minha.

Turiel negativou com a cabeça, diante da tristeza da jovem.

—A culpa não é sua. O próprio Vernon jamais a culparia. Ele estava consciente dos riscos, desde o momento em que optou por deixa-la sob os meus cuidados e prosseguiu em sua tentativa de restaurar a Teméria. Ele chegou perto. Talvez não do modo mais correto, mas chegou, e sem viver o bastante para ver os resultados. Não acho que ele se arrependeu de não ter permanecido conosco. Duvido muito que ele se aquietaria aqui em Lathlake, com seu país em cinzas. Ele estaria vivo, mas infeliz. Triste.

Anais sentiu sua mão sendo coberta pelos delicados e magros dedos de Turiel. Seus olhos voltaram-se às mãos da elfa, que faziam um leve contraste de cor e formato com as suas. Ambas pertenciam a duas raças separadas por ódio e orgulho, mas por ironia da vida, suas vidas estavam unidas.

—Eu temo por você, Anais. Temo que você fique sozinha, enquanto espera que um homem morto apareça por aquela porta, carregando uma Coroa de Ouro para colocar sobre sua cabeça. Você é humana. O tempo passa mais rápido para você do que para mim. Roderick é um bom rapaz, mas não tem razões para esperar. Se você mudar de idéia, ele poderá não estar mais te esperando. Tenho medo de que você tenha que conviver com a perda dele para sempre. Tudo porque está se abraçando a promessas do passado.

Lágrimas começaram a escorrer do rosto de Anais. Os lábios da menina tremiam, quase na mesma frequência que seu corpo. Há muito tempo, a jovem não chorava assim, lembrou-se Turiel. Ela chorou assim nas duas vezes em que Roche partiu: a primeira, em que ele a deixara com Turiel, e a segunda, quando notícias de sua morte chegaram à Lathlake. Talvez, aquela fosse uma terceira vez, e definitiva. O dia em que Anais viraria para sempre a suspensa página de sua vida, permeadas por promessas não-cumpridas e pessoas mortas que ela insistia em se segurar.

Por fim, vieram as palavras mais difíceis de seus dezesseis anos de vida.

—Está bem. Eu vou me casar com Roderick.

 

££££££

 

A casa estava silenciosa. O fogo da lareira já havia morrido, restando ainda as brasas enegrecidas, exalando fumaça. Uma jovem menina adormecia, cansada. Seu travesseiro ainda estava um pouco úmido pelas lágrimas. Seus braços estavam atados a um objeto cuja ponta prateada reluzia pelo luar, que escapava de sua janela. Qualquer um acharia perigoso dormir abraçado a uma espada, ainda que esta estivesse guardada em uma bainha de couro, mas a jovem não tinha uma lembrança mais forte a se recordar.

Apenas os grilos eram escutados. O distante uivar de lobos contratava com piados de corujas. A floresta estava viva, acordada, ignorando a tristeza e escuridão dos ocupantes daquela modesta casa em seus domínios.

Uma vela foi acendida, dando um pouco de vida ao ambiente. Era Turiel.

Não havia lágrimas em seus olhos. A elfa passou o resto da noite consolando Anais – ou melhor, Anya – por ter tomado a decisão mais difícil de sua vida. Turiel jamais sentiu tanto orgulho dela, por desprender-se das amarras dos sonhos e encarar uma vida adulta. Muitos outros morreriam, embriagados por promessas e vivendo em ilusões, mas não Anya. Ela teve a coragem de se posicionar em sua própria história, ao invés de esperar que outras a escrevessem por ela.

Guiando-se pela casa com uma solitária vela, Turiel caminhou até seu armário de frascos e elixires. Pondo a vela sobre o chão, a elfa pôs-se a vasculha-lo, com cuidado para não acordar Anya. A jovem chorara por horas e só agora conseguira um momento de paz. Tudo que ela não queria era perturbá-la. Além disso, Turiel também não tinha o menor desejo de se explicar sobre o quê exatamente estava fazendo.

Por fim, a elfa encontrou o que procurava. Retirou de sua caixa uma garrafa de vidro, de líquido levemente incolor. Apesar de lacrada por uma rolha, o cheiro do Licor de Mahakam ainda era forte às suas narinas.

Seus olhos encararam a garrafa. Era hora de jogá-la fora. Não haveria ninguém para bebê-la. Não haveria comemorações que tivessem espaço para ela. Agora, a próxima comemoração daquela casa seria o casamento de Anya com Roderick. A ocasião pedia um vinho suave, não uma bebida forte, preferida por soldados e homens de vida errante.

Homens como Vernon Roche.

—Eu sinto muito, Roche. – sussurrou Turiel. A elfa fixou seus olhos mais uma vez na garrafa. Passou seus dedos pela etiqueta, com um desenho bonito das Montanhas de Mahakam. Ela sentiu-se hesitante. Por que? Imaginava que Roche estava morto. Na verdade, sua jornada não levaria a outro destino senão este. Ele até demorou a morrer, concluiu Turiel. Anais chegou a acusa-la de pessimista quando a elfa expressou sua opinião, mas o passar do tempo acabou por revelar que seu pessimismo não era lá tão absurdo assim.

As emoções contraditórias da elfa fizeram a garrafa ser devolvida com força à caixa. Mais um pouco de força e ela teria se partido, empesteando seus produtos alquímicos com aquele cheiro de bebida forte. Por que não me desfaço dela? A elfa não compreendia sua hesitação. Ela representava a espera por um homem morto. Se Anya conseguiu seguir em frente, por quê ela não era capaz de fazer o mesmo?

Porque eu também desejo que ele esteja vivo, concluiu com tristeza.

Depois de guardar todos os produtos, Turiel recolocou a tampa da caixa. No dia em que Anya se casasse, ela jogaria fora a bebida. Ou a daria como um presente a Adal, quem sabe ele...? Não. Ele vai me encher de perguntas sobre o porquê de uma elfa como eu ter uma bebida forte dessas.

Apagando a vela e retornando à sua cama, Turiel deitou-se sobre seu travesseiro. Fechou seus olhos. Antes de ser abraçada por seus sonhos, mentalizou mais uma vez a promessa de que se livraria da garrafa de Licor de Mahakam quando Anya se casasse. Talvez por isso tenha sonhado com um certo Comandante dos Listras Azuis, treinando espadas com Anya do lado de fora da sua casa. Nem mesmo em seus sonhos o bastardo a deixava de azucrinar.


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Notas finais do capítulo

CARAMBA!!!

Anais decidiu que vai casar!!!
E o Roche, hein? Será que leva ela para o Altar? #SQN
Que tipo de reação ele terá?

O que vocês acharam dessa decisão de Anais e Turiel, caros leitores? Elas estão certas em seguir em frente?

Próximo cap: preparem-se que o negócio vai começar a ficar muito feio... Adivinhem para quem...

Obrigada por acompanharem! Até o próximo!



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