O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 12
Capítulo 12


Notas iniciais do capítulo

Perdoe-me por possíveis erros de português.



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"Nunca mostre suas feridas a quem você não confia. O sangue atrai tubarões." - autor desconhecido. 

 

Tinha algo estranho. Estranho do tipo que não é normal – se é que existe outro tipo de estranho. Normal do tipo costumeiro em que estamos habituados a determinado comportamento ou paisagem. Como explicado anteriormente o pátio da escola se enchia com uma massa cinzenta de alunos uniformizados falando ao mesmo tempo preenchendo o ambiente com um som típico de uma feira de domingo onde escutamos tudo e não entendemos nada.

Era estranho por causa da muretinha sob o imenso pé de manga. Aqueles pequenos tijolos que cercam as raízes da árvore no meio do pátio são uma espécie de banco de celebridades ou só um tapete mágico onde todos querem se sentar para aproveitar o frescor da sombra enquanto conversam, comem e bebem. Assim, era lógico que em todas as manhãs de aula a mureta estava totalmente ocupada como crianças brincando de ciranda-cirandinha ao redor do tronco. Em compensação havia as escadas que subiam aos blocos de prédios com as salas.

Ninguém gostava de sentar lá por que a todo instante uma pessoas ou várias subiam e desciam perturbando a “aura” tranquila que todos querem para comer ou conversar, sem mencionar é claro, que também quando você está sentado em um degrau e alguém aparece você fica parecendo hierarquicamente inferior como se o estranho fosse melhor do que você o olhando de cima.

Alexandre, no entanto, havia perdido esse ego sem noção que causa a inferioridade – mesmo que ela não exista – e sempre sentou-se nos degraus solitários do bloco B que agora encontravam-se um tanto... cheio.

Como um gato que vê uma reunião de ratos, Alexandre se aproximou devagar com sua lata de coca gelada. Não tinha exatamente medo daquelas pessoas, só era diferente. Ratos juntos não fazem um gato fugir, mas o deixam com os bigodes em alerta. O local de sempre em que o rapaz se senta estava vago e ele seguiu para ali tentando não prestar atenção no povo estranho que se esparramava pelos outros degraus da escada conversando a esmo.

Dez segundos após se sentar uma garota desce parando de pé a sua frente.

— Acho que... eu te devo um obrigado pelo outro dia.  

Alexandre olha atentamente para a fêmea de sua espécie, era bonitinha com cabelos castanhos curtos num penteado que lembra uma francesa. Com um rosto pequeno e branco, havia um pouco de sardas polvilhando as bochechas magras sob os olhos verdes opacos.

— E você é?

A pergunta foi tão impactante que a moça perdeu a compostura e a pouca coragem que tinha reunido para falar com ele.

— Está brincando, né?

— Não tenho mais tanto senso de humor assim. Acredite. Nos conhecemos?

A garota pisca várias vezes até puxar do pescoço sob a blusa do uniforme e mostrar o colar com uma pedrinha azul.

— Ah. – Alexandre lembrava... mais ou menos – a chorona.

— Lia.

— Aham. – ele abre a coca – o que houve? Não acho que deva ter problemas com aquele cara de novo.

— O namorado da Val contou para ela... é verdade mesmo?

— O quê?

— Você mandou aquele cara para o hospital junto com mais dez amigos?

— Dez? Sei lá, não contei. Só quebrei a tíbia deles para garantir que não encham o saco por alguns meses.

A chorona ficou sem reação esperando que fosse uma piada. Os machucados de Alexandre estavam sarando rápido, mas as manchas da briga ainda se mostravam presente em seu rosto juntamente com o corte na sobrancelha.

— Por que fez aquilo? Digo... – ela ficou corada – sou imensamente grata pelo que fez... mas por quê? Nem nos conhecemos.

Alexandre deu de ombros.

— Sua choradeira me deu nos nervos. As memórias felizes de sua mãe estão armazenadas em seu cérebro e no seu coração; não nessa pedrinha estúpida, e por tê-la perdido você esbanjou sentimentos ruins como se não houvesse mais esperança em lugar nenhum. Quando morremos não levamos nada para a cova, quando pessoas queridas nos deixam os objetos que ficam não são nada, o que realmente conta são os momentos que nos proporcionaram em vida e o que nos ensinaram.

Lágrimas ameaçaram se formar nos olhos de Lia, mas ela se controlou.

— Sim. Eu pensei muito no que me disse aquele dia... e tem razão – ela engole seco e sorri – você é estranho.

Alexandre ergueu a lata de coca.

— Um brinde a isso. – e toma um gole.

Lia juntas as mãos nas costas balançando nos calcanhares e sua face fica ainda mais vermelha.

— É... hã... então... meu cunhado é cantor de sertanejo e vai fazer uma apresentação acústica num barzinho bem legal nesse sábado... e...

De repente Catarina surge por trás de Lia e senta bruscamente ao lado de Alexandre.

— Francamente viu – disse ela para o garoto – pensei ter dito para me encontrar no piso perto do portão.

— E eu pensei ter dito que já acabei com você. Nosso assunto morreu.

Catarina pega a coca da mão de Alexandre e toma um generoso gole.  

— E você ingenuamente acha que vou obedecê-lo?

— Se tiver algum juízo nessa cabeça oca, sim. – ele toma a lata de volta – você babou no meu refri.

— Considere um beijo indireto, deveria estar pulando de alegria.

— Beijo indireto? Quanto anos você tem? Nove?

Catarina dá de ombros quando finalmente percebe uma Lia chocada e frustrada ainda de pé a frente dos dois.

— Ah... desculpe – disse Catarina – atrapalhei a conversa de vocês?

É interessante como funciona a autoestima. É sempre um conceito. Uma afirmação que parte da própria pessoa ou de terceiros.

Lia praticamente tinha se apaixonado por seu “herói-negro”. Junto com as amigas deu uma rápida pesquisada descobrindo os boatos péssimos a respeito do garoto. Como o falatório não condizia com o ato que os fizeram se conhecer, a moça pensou o lógico: fofocas nunca são verdadeiras, sempre aumentam e pioram a imagem de alguém.

Reunindo coragem junto com as opiniões controversas das companheiras Lia havia chegado a conclusão que deveria esperar Alexandre se manifestar. Ele a tinha salvado, sangrado para recuperar seu colar, era obvio que tinha sentimentos por Lia. Infelizmente os dias foram passando e ele não moveu um dedo.

Tímido? Talvez. Estava tudo bem, ninguém seria tão doido de se meter em uma briga daquelas se não tivesse algum interesse na menina. Lia tinha sua autoestima garantida e protegida, por isso iria chama-lo para sair, afinal tinha descoberto que ele era solteiro e praticamente nenhuma garota do colégio o queria por perto. Lia não era feia, podia dizer que era bonitinha, um pouco acima da média.

Como dito acima,  sua autoestima vinha da opinião própria. Ela era bonita, ninguém mais queria Alexandre – o que elimina opiniões de terceiros ou efeitos de comparação – o rapaz também não parecia gostar de nenhuma moça que não fosse ela.

Dois mais dois são quatro. Pronto.

Mas quando uma das garotas mais bonitas do colégio de repente surge mostrando uma intimidade bizarra com alguém que deveria estar isolado, a autoestima muda. Vem sempre o fator comparação, uma dinâmica supérflua que homens e mulheres não conseguem abandonar.

Sou mais bonita que ela? Magra? Interessante?

Como Lia poderia parear com Catarina?

— Você dizia? – perguntou Alexandre bebendo o refrigerante.

Lia engoliu seco. Sua autoestima sumiu, sua confiança evaporou. O medo veio, a dúvida. Eles estão saindo? Ela gosta dele? Não tem como Alexandre recusar uma mulher como Catarina. Será que ele é gay?

— Não... não é nada não. – e derrotada se retirou sem nem ao menos entrar na luta.

Através pensamentos ruins vem o derrotismo mental, a mente se enfraquece com a dúvida e chances são perdidas sem nem ao menos terem sido tentadas. Alexandre enxergou tudo isso, foi claro como o dia para ele o que acabara de acontecer.

— Por que fez isso? – pergunto o rapaz olhando para Lia que se afastava.

— Quis poupá-la – responde Catarina – uma mulher apaixonada seria terrivelmente arrasada por esse seu senso azedo de ver as coisas.

Alexandre a olha.

— Senso “azedo”?

Catarina respira fundo.

— Tinha razão em tudo o que disse naquela tarde na lanchonete. Me senti sendo violada ao ter meus receios tão facilmente interpretados por alguém que nem me conhece direito. Não sei como faz o que faz, mas é incrível e igualmente um incômodo.

— Por que as pessoas não querem olhar para sua própria escuridão? Por que não querem ver o horror que elas mesmas estão se tornando por suas próprias ações e pensamentos?

Um casal que passava por ali acenou para Catarina olhando de soslaio para Alexandre. A garota cumprimentou com um aceno e respondeu:

— Sim. Ignorância é uma benção.

Um ódio latente emergiu de Alexandre tão rápido e voraz pelas palavras da garota que ele não pôde conter a torrente. Com a mão direita apanhou o rosto de Catarina a aproximando o máximo possível do seu para então sussurrar:

Ignorância é uma escolha— sua ira estava contida em seu timbre de voz – as pessoas preferem se machucar sempre pelos mesmos meios invés  de entender o que machuca para não se torturarem mais. Tudo isso porque tem medo de olhar para o vazio em suas almas, tem medo de encarar a escuridão que elas mesmas criaram. Um abismo que esconde os quão pequenos e patéticos são.

A mão veio de lugar nenhum, apanhou Alexandre pelo pescoço o forçando a se levantar do degrau onde estava. No reflexo, o neto de Gertrudes se ergueu de supetão amassando a lata de coca parcialmente cheia contra a cabeça do agressor. Aegon quase tombou de lado chocando-se com a parede externa tendo seus cabelos loiros molhados pelo líquido açucarado.

Tomado ainda pela raiva, Alexandre não parou. Os dois iniciaram um embate ali mesmo no pátio do colégio com todos os demais alunos abrindo uma bolha em meio a assovios e gritos de incentivo pelo evento inesperado que afastava a monotonia de uma terça feira de aula.

Aegon era treinado em jiu-jitsu de modo que ao recuperar o equilíbrio da latada conduziu a luta de maneira eficaz acertando golpes onde queria em Alexandre. No entanto havia algo errado. Na briga que tiveram no terreno baldio só precisou de três socos na região certa do abdômen para fazê-lo tombar, agora não estava funcionando. Alexandre recebia os golpes e não hesitava em momento algum como se não os sentisse. O tempo de “ surpresa e dúvida ” de Aegon foi sua derrota. Alexandre segurou o braço do jovem com uma mão enquanto a outra apanhava o soco que mirava em sua cara. Com o garoto loiro imobilizado, veio a sequencia de cabeçadas.

Uma, duas, três, quatro, cinco. Alexandre moeu o nariz do oponente fazendo seu belo rosto virar uma massa estranha de sangue e ossos quebrados. Não satisfeito, soltou Aegon, levou a mão em seu pescoço e começou uma repetição de socos de direita.

Quando os amigos de Aegon perfuraram a multidão para ajudá-lo, os professores e serventes da escola chegaram ao mesmo tempo pondo fim a briga. Assim que Alexandre soltou o oponente, ele foi ao chão inconsciente com uma face toda machucada e suja de sangue trazendo com sua derrota um silêncio sepulcral na multidão que não acreditava no que via e gravava – sim, muitos celulares estavam a postos.

***

 Lucérius ao lado de Anita observava o corpo carbonizado ir se dissolvendo lentamente em cinzas. Mais uma falha.

Anita suspirou coçando a cabeça. Já era o vigésimo que ela escolhia e terminava igual. Lucérius por sua vez analisava o cadáver ir se tornando um monte de poeira irreconhecível enquanto ponderava as implicações de sua empreitada, além do tempo a mais necessário para concluí-la se ficasse tendo tantos fracassos assim.

— Creio que seja melhor deixar Amélia escolher o próximo.

Anita arfou e olhou para trás onde Amélia estava. Tinha conseguido achar uma árvore e sentara-se debaixo dela com os olhos pregados na tela do celular, os fones em cada orelha com música no último volume, e mesmo sendo dia com um calor de quase trinta graus ela não largava mão do suéter negro com capuz erguido.

— Está brincando né? – perguntou Anita para Lucérius.

O sujeito a fitou com uma expressão séria.

— Amélia escolheu só um candidato até agora e deu certo.

— Ah não, calma lá. – a mulher ruiva ergueu o indicador com veemência – dos dezoito que eu escolhi dois também passaram pelo primeiro estágio.

— E meses depois não vingaram. E não foi dezoito Anita, foram vinte.

— Não importa. Vai levar meses pro moleque que ela escolheu amadurecer.

— Ainda sim é um bom percentual. Eu mesmo falhei centenas de vezes para recolher duas dúzias, por isso achei que vocês talvez tivessem mais sorte. Agora acho que de nós três Amélia é a mais indicada.

Anita apontou direto para a moça envolta no suéter.

— Ela não desgruda os olhos do celular, ou está jogando ou está navegando na internet. Nunca a vi tirar os malditos fones. E pelo que é mais sagrado, essa desgraçada sabe falar? Tudo que ela faz é mover os olhos e apontar. Três anos viajando juntos e nunca ouvi sua voz.

Lucérius suspirou. Se Amélia era introvertida, Anita era uma extrovertida com E maior.

— Ela sabe falar sim, só acha problemático.

— O que diabos isso quer dizer?! – Anita berrou.  

De repente Amélia se levantou e caminhou até eles, a ruiva já estava puta por causa do novo fracasso além da inveja que sentia por que a companheira tinha só apontado o maldito dedo para um garoto e pronto, ele seria o escolhido e não o loiro gatíssimo que Anita passara semanas analisando. Naquela noite em que Lucérius abordou o jovem na estrada sobre a floresta tudo terminou inacreditavelmente bem.

Pelo menos a princípio.

Amélia indicou a tela do celular para Lucérius. O mesmo o apanhou e começou a assistir um vídeo curto de dois minutos... mas nesses dois minutos a expressão de desanimo pelo fracasso fora substituída por uma de espanto.

— O que foi? – perguntou Anita.

Lucérius largou o celular balançando a cabeça na negativa, absorto com o choque.

— Temos que voltar.

— Hã?

— Pra última cidade, temos que voltar imediatamente.

— Por quê?

 Anita pareou com Amélia para ver o vídeo que rodava. Era uma gravação amadora da briga de dois colegiais, nele um adolescente acertava seguidas cabeçadas para depois uma sequencia de socos destroçando o inimigo.

— O que tem demai-

Finalmente Anita percebeu quem era o vencedor da briga.

— Hei... hei... hei... não deveria levar meses para ele amadurecer? Faz duas semanas que estivemos lá.  

— Vamos voltar agora. Se aqueles malditos o acharem antes de nós, vão matá-lo.  


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