O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 10
Capítulo 10




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“Não importa onde seu corpo vive, seus pensamentos é que sempre serão sua casa.” – autor desconhecido.

 

Alexandre estava no meio da floresta de cinzas, – a parte central onde acreditam que começou o incêndio. – de pé ele observava o arredor preto e branco  com árvores mortas que mais pareciam desenhos em 3D de carvão  num universo sombrio de desenhos animados. De fato, o cenário parecia mesmo desolador.

O neto de Gertrudes andava de um ponto a outro tentando se recordar do que havia acontecido, mas as memórias não lhe vinham, pior, quanto mais se esforçava mais sentia que a cabeça queria doer. É mais do que obvio que alguma coisa aconteceu com ele e que havia começado exatamente naquele ponto, ainda sim Alexandre não se importava nem um pouco.

— Então? – perguntou Catarina a alguns metros de distancia.

— Não. Não me lembro de ter estado aqui, talvez fosse o fogo ou a fumaça... só que esse lugar não me é nada familiar.

Desde que contou a história de salvamento Catarina tem se mostrado um verdadeiro pé no saco de Alexandre. Ela insistia em querer saber o que havia acontecido. Seu tio, irmão de sua mãe, fazia parte da policia ambiental e após uma grande discussão concordou em participar da investigação sobre o incêndio. A mãe de Catarina estava enfurecida como nunca por que a casa não tinha seguro contra queimadas – a floresta da princesa em toda a história nunca havia sofrido um incêndio – por isso além de perder uma bela e cara casa, suas três filhas quase morreram.

Depois que seu irmão contou que talvez o fogo tenha sido criminoso a mulher virou um bicho querendo a cabeça dos responsáveis. Enquanto Catarina ouvia os argumentos e xingamentos a mesmo que a mulher fazia, ela ponderava sobre essa possibilidade.

E se foi Alexandre quem botou fogo na floresta?

— Se foi você... – perguntou ela – me diria a verdade?

O rapaz ergueu a cabeça na direção dela enquanto pegava uma pedrinha escura.

— É claro. Se fui eu quem provocou isto quer dizer que há um motivo válido para tê-las salvado, a questão é – ele se levanta – se não fui eu, o que estava fazendo aqui?

— Sério que nunca quis ir atrás disso?

— Não. No dia em que despertei no mar de fogo e fumaça havia um cadáver ao meu lado. E até hoje nem dei bola para saber mais sobre ele.

A nova revelação pegou Catarina de surpresa. A moça correu para perto dele.

— O que disse?

— Aparentemente há uma vitima fatal – ele abre os braços – e ela e eu fomos encontrados aqui mesmo, lado a lado.

Agora o choque de Catarina se fez mais evidente.

— E você não está nem aí pra TUDO isso?

— Estou curioso se é o que quer saber, mas não tão curioso a ponto de ficar enchendo o saco dos outros como está fazendo comigo.

— Escuta aqui, se foi você quem causou o incêndio quer dizer que quase matou a mim e as minhas irmãs... se for verdade não vou hesitar em denunciá-lo. Entendeu?  

Alexandre sorriu, foi um sorriso estranho de orelha a orelha. Ele começou a andar para trás devagar fitando Catarina no olhar.

— Não acho que você faria isso comigo.

Incrédula, a moça só balançou a cabeça na negativa.

— Você tem problemas mentais garoto.

O sorriso de Alexandre não diminuiu, depois de certa distância parou de andar e cruzou os braços.

— E você está adorando isso.

— O quê?

Alexandre começou a andar em círculos grandes ao redor de Catarina, sua postura serena incitava que ele ponderava várias coisas das quais começou a expor para a adolescente.

— Confesso que no começo estava confuso contigo, suas emoções negativas são instáveis demais, mas aos poucos fui juntando as peças. Por que a garota mais bonita do colégio simplesmente deu o fora em todos que tentaram “chegar” nela? Dispensou até o jovial Aegon.

Catarina começou a girar o corpo para não perder Alexandre de vista.

— Por quê? Acho que por que o casamento de seus pais foi um fracasso, juntamente com o casamento de um monte de gente que deve conhecer, você, como uma pessoa inteligente entende que relacionamento são superestimados, são ilusórios, exibem um romantismo inadequado para os dias de hoje. Afinal, a realidade sempre termina ruim. A fidelidade, o amor, o “felizes para sempre” são conceitos teóricos que não se aplicam no mundo real.

Alexandre aponta para ela.

— Só que você ama ler. Nos livros, os autores são deuses, eles criam o universo e os personagens e lá, é possível um final feliz. Um homem fiel, uma esposa satisfeita, uma família feliz e unida.

Alexandre volta a cruzar os braços seguindo sua caminhada ao redor de Catarina.

— Porém, como você mesma já percebeu: a realidade não chega aos pés da fantasia e da ficção. Por isso há uma descrença sólida em você a respeito do amor de pessoas de carne e osso, assim como os conceitos tediosos desta vida cercada de limitações.

Catarina escutava atentamente tentando encontrar uma brecha que pudesse responder a ele que estava errado. Mas não conseguia. Alexandre para de andar em círculos e começava a se aproximar da colega de classe.

— Sua alma anseia por uma aventura irreal, por um evento incrível que não possa ser facilmente explicado. Parte de sua mente deseja com todas as forças que exista elementos sobrenaturais enquanto sua inteligência entende que isso não existe, que há uma resposta clara para tudo. Afinal, a realidade é sempre tediosa.

Alexandre para bem perto da moça. Catarina engole seco, de repente sentia uma estranha dominação ou presença no colega de classe, como se ele fosse perigoso ou poderoso.

— Por isso um dia de repente você se vê em meio a um conto bizarro cercado de mistérios com um protagonista enigmático; decidi se aproximar dele por que sua inteligência quer a verdade e seu desejo por uma história incrível quer sentir mais dessa emoção surreal... um medo bem vindo, como aquele frio na barriga ao pular de um lugar alto.

Ela olha no fundo de seus olhos castanhos, Alexandre estava tão perto que era possível sentir seu hálito frio com cheiro de hortelã.  

— Você quer a verdade, Catarina? – sua pergunta soa quase como uma ameaça – bem... eu não a tenho. Você quer estar em um conto de fantasia em ficção? Precisa ter cuidado com o que deseja...

Foi quando a moça viu. Pela gola da camisa de Alexandre subiu veias negras por debaixo da pele, serpenteando o pescoço indo para o queixo e se ramificando por parte do lado esquerdo da face como uma tatuagem tribal.

O choque foi tamanho que tudo o que Catarina pôde fazer foi recuar um passo colocando as mãos sobre a boca.

— Precisa ter cuidado com o que deseja... – repetiu ele – o conto em que você está pode ser de terror.

***

O exterminador do futuro seguiu a passos largos entrando no hospital particular da cidade que recebi o nome um ex-médico que fora prefeito de lá por três mandatos até que subitamente morreu baleado pela amante. Um caso notório na época já que a pessoa mais indicada para fazer a cirurgia era o próprio doutor.

A ligação que tinha recebido há uma hora o tirou de um quase sono após alguns comprimidos estarem começando a fazer efeito. O homem de jaqueta de couro cara não dormia direito há uma semana desde que recebeu as ordens. Ele tinha uma missão, uma da qual falhar não é opção.

Por isso entupindo-se de café com uísque para anular os medicamentos, o estranho passou pelos corredores brancos tortuosos até encontrar uma enfermeira que pudesse indica-lo corretamente o caminho. Não foi difícil, já que a doutora Tereza estava escorada na porta de entrada de um dos quartos checando o celular a todo momento. Ótimo. O exterminador conhecia a mulher: ambos trabalhavam pro mesmo grupo e fora ela quem o chamou.

— Sou Lorenzo. – disse ele parando rente a mulher de roupa branca.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Jaqueta nesse calor?

— Sem conversa fiada, você é Tereza Sales, certo? Enviaram uma mensagem dizendo para me encontrar com você aqui mesmo.

A mulher de quase cinquenta anos com cabelos loiros pálidos, um rosto cansado com fortes olheiras  não disse nada observando o homem de cima a baixo.

— O que foi? – perguntou ele.

— Nada... é só... você é mesmo Leon Polos? “Aquele” Leon Polos?

Leon suspirou. Seu nome é conhecido apenas em pequenos círculos e o sujeito faz questão e que continue assim, pois já testemunhou do pior jeito o que uma fama inoportuna causa a alguém relapso.

— Recebeu minha ficha, não recebeu? Lá tem minha foto, assim podemos parar de perder tempo?

Tereza deu de ombros.

— Disseram que você chefiaria a operação, já encontrou o “problema”?

Leon olhou para os lados, o corredor estava vazio ainda sim ele se sentia desconfortável.

— Podemos conversar em outro lugar?

— Não. Você não disse “sem conversa fiada”? Então vamos lá, fale logo.

O exterminador do futuro entendeu que a mulher não era exatamente qualquer uma, e não esperava que fosse. Seus benfeitores são rigorosamente seletivos quanto a quem decidem ajudar.

— Peguei a investigação da polícia até o momento. Tenho nove nomes, meu pessoal já riscou quatro. Restam cinco para confirmarmos. 

— E a arcada dentária do cadáver que olhei ontem?

Leon balançou a cabeça na negativa, tinha ficado até a madrugada no telefone resolvendo isso.

— São 42 consultórios só nessa cidade, partindo do princípio que o morto é daqui e que um dos dentistas mantém os registros, vai levar algumas horas para olhar todos.

Tereza pareceu surpresa. Essa caça ao tesouro deveria levar dias pelas seguidas complicações.

— Horas?

— Contratei vinte e sete detetives particulares que estão vindo de todos os lados para ajudar na investigação. Parece que seis dentistas estão de férias, daí eles vão ter que achá-los seja lá onde estiverem enfiados e conseguir os registros. 

A médica assoviou.

— Nossa... nada como ser um multimilionário, não é?

Leon ignorou o comentário.

— Então você está fechando o cerco pelos dentistas e pelos nomes que conseguiu da polícia. Nada mal Sherlock.

— Sem piadas, doutora. Eles te contaram o que vai acontecer se aquela coisa amadurecer. Não há tempo a perder, por isso, o que estou fazendo aqui?

Tereza travou a mandíbula,  seu olhar pareceu ficar sombrio. Ela respirou fundo e relaxou os ombros.

— Eu tenho mais ou menos uma ideia do que vai acontecer. Veja isso.

A médica abriu a porta a qual estava escorada dando em um quarto amplo e bem refrigerado com o ar condicionado. Leon pousou os olhos direto na cama onde um garoto dormia tranquilamente sob os lençóis brancos de seu leito. Leon se fez a pergunta por que todos os quase todos os hospitais são revestidos de branco pra todo lado.

Desconfiado o multimilionário entrou junto com a doutora que fechou a porta.

— O nome dele é Everton, tem quinze anos. Como sabe, fui enviada para esta cidade assumindo o comando da saúde para tratar dos possíveis feridos e mortos durante essa empreitada, além de forjar falsos pareceres, transferir pacientes, mudar os nomes e tentar acobertar da melhor maneira que puder... ao menos na área médica.

Leon sabia, afinal a parte dele na missão era quase igual, mas sua pressão seria exercida sobre a política e sobre a polícia.

— Sim, enviara-me o relatório sobre você. O que houve?

— Três dias atrás uma das enfermeiras que contratei para reunir informações disse que Everton deu entrada no hospital público municipal – ela respirou fundo – disseram que ele foi torturado. Teve um dedo de cada pé cortado.

Imediatamente Leon olhou para o garoto que dormia tranquilamente com a cabeça afundada no travesseiro.

— Quando soube disso – continuou a médica – pedi que o transferissem para cá, eu o examinaria pessoalmente e cobriria todas as despesas do tratamento. Bem... pelo estado da pele rente aos pés, além da inflamação do tecido muscular, eu diria que sim, o menino foi torturado. Só que não é só isso.

Tereza foi até a cama e puxou o lençol um pouco revelando os pés do menino coberto por ataduras.  

— A pele dos dedos foi esfolada e analisando a infecção que se formava sobre os curativos mal feitos, eu arrisco dizer que ele ficou em carne viva por algum tempo.

Leon observou com cuidado depois cruzou os braços.

— Doutora... onde eu cresci um homem para evitar que a esposa o deixasse a estrangulou, cortou seu corpo em pedaços com um facão e deu aos porcos da fazenda para comerem. Eu sei muito bem até onde vai a perversidade do homem, logo pergunto: por que acha que estamos falando da mesma pessoa?

Tereza voltou a cobrir os pés do menino.

— Você não prestou atenção no que eu disse: eles foram esfolados, cortados, depois então o culpado fez um curativo rápido e mal feito trazendo o garoto imediatamente para o hospital. Por quê?

Leon estreitou o olhar.

— Está dizendo que o agressor carregou o menino para ser tratado?

— A enfermeira que me trouxe as informações disse que um sujeito carregou Everton até a porta do hospital e o deixou aos pés de uma das recepcionistas para então desaparecer.  

Finalmente a história começava a interessar Leon.

— Preste atenção riquinho – continuou a médica – um dedo de cada pé e ainda por cima o do meio. Por quê? Se o culpado estava com ódio do garoto por que não esfolar os dedos da mão, por que não arrancar um olho ou fazer um corte no rosto para deixar uma cicatriz? Por que não provocar um ferimento que faça Everton sofrer toda vez que olhar para ele? Um psicopata inteligente e sádico só precisaria cortar o polegar de cada mão para que a criança tenha uma vida cheia de limitações.

Leon voltou a olhar para os pés.

— Cortar esses dedos não vai prejudicar o menino a andar, muito menos vai restringi-lo em qualquer ação, ainda sim o ato foi violento o bastante para provocar uma severa dor na criança. Algo muito, muito forte.

— O que está dizendo? – indagou o milionário – que quem fez isso fez pensando em misericórdia?

— Acredito que sim. – ponderou ela – Everton no momento está dopado. As ondas de estresse levaram seus nervos ao limite e sua mente entrou em choque. Estamos administrando drogas poderosas para deixar o corpo relaxado enquanto esperamos que não haja danos psicológicos severos. E é onde eu tive a ideia para chamá-lo. Quem fez isso... não queria danificar o corpo da criança, queria lhe dar... muita dor. E conseguiu.

— O que quer dizer?

— O trauma foi tão forte que o atingiu a mente. O cérebro simplesmente copiou a sensação de agonia e mesmo quando administramos morfina Everton continuou chorando e se contorcendo.

Leon deu a volta na cama parando bem em frente ao rosto do menino.

— Você está dizendo que foi de propósito... que o agressor o machucou para atingi-lo profundamente.

Os olhos do riquinho se arregalaram e ele fitou a médica.

— Acha que atingiu o nível mais fundo do ser humano?

Tereza suspirou cruzando os braços.

— Depois do que nossos benfeitores nos mostraram, e pelo que eu sei de medicina... talvez. Foi direto na alma – ela sente um arrepio ao se lembrar das explicações – se for verdade então sim. Seja quem for tocou na alma dessa criança de uma maneira bem violenta. 

Leon agora já acreditava.

— Acorde o moleque.

Tereza balançou a cabeça na negativa.

— Você escutou o que eu disse? Ele está com dor, estamos ministrando remédio pesados para fazer o cérebro se esquecer da agonia, antes que isso seja possível só ouviremos gritos e choros.

Leon travou a mandíbula em frustração.

— Vou por um pessoal investigando tudo sobre esse Everton. Seus amigos, sua família, escola, namorada... tudo. Talvez nos levem ao que queremos.


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