Contos de Aurora escrita por Wi Fi


Capítulo 10
Conto Dez: De volta ao lar.


Notas iniciais do capítulo

Olá! Por alguma razão, imagem desse capítulo está com essa bordinha colorida irritante, então finjam que eu planejei isso e que faz parte da imagem.
Neste capítulo, vão conhecer um pouquinho mais das famílias dos personagens!



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Mais um dia abafado e chuvoso em Auano. Era uma tarde nublada na cidade dos pântanos. Ma Nevaeh acenava para seu último cliente, enquanto este se afastava pela estradinha de terra que saia da casa dela e ia em direção ao centro da cidade.

— Adeuzinho, senhor Tobias! Espero ter curado suas dores espirituais! – exclamou ela, acenando.

Só então a mulher notou uma carta caída no chão, próxima à porta. O carteiro passava pelas casas logo de manhã, mas ela não havia notado a carta ali antes. Depois de se abaixar com um pouco de dificuldade e dores nas costas, Ma Nevaeh teve que trazer a carta para perto de seu rosto, para que pudesse enxergar o que estava escrito nela. A carta dizia:

“Para a família Cassandra – Melina, Nevaeh, Corina, Enoch e Alma:

A rainha Fallon, dos anões de Athelisa, os convida para seu casamento com Talila Owen e Aidan Roth”

As frases eram seguidas de data, horário e local. Nevaeh ficou confusa. Ela nunca tinha ido para Athelisa na vida, e só encontrara a rainha Fallon uma vez, mas muitos anos antes, quando ela havia visitado Auano. Nevaeh guardou a carta em um dos bolsos de seu casaco e voltou para dentro de sua casa, ainda tentando entender o convite.

A entrada da casa levava diretamente à sala onde Nevaeh atendia seus pacientes. Ela cobrava pelas consultas, mas se algum deles não pudesse pagar o valor pedido, ela não se incomodava e os atendia de graça, ou aceitando comida e tecidos como pagamento, desde que isso não fizesse falta para eles. Ajudava as pessoas conversando com elas e as aconselhando sobre seus problemas e angústias.

Nevaeh acendeu uma lâmpada de óleo e sentou-se no sofá. Tirou seus grossos óculos e fechou os olhos, se concentrando. Sentiu uma aura conhecida nas redondezas, se aproximando. Uma aura forte e pacífica. Sua esposa.

A mulher imediatamente recolocou seus óculos e andou rapidamente até a outra extremidade da casa, saindo para o píer. Uma canoa de madeira se aproximava, sendo trazida por uma mulher alta e com os cabelos ondulados presos em uma faixa vermelha. A esposa de Nevaeh se encostou no píer e subiu para a plataforma de madeira.

— Olá, querida -  disse ela, se aproximando de Nevaeh – Algo de errado aconteceu? Você não costuma me esperar aqui fora.

— Não exatamente errado. Melina, você por acaso ainda tem contato com a rainha Fallon?

— A anã? De Athelisa?

— A própria.

— Não, não falo com ela há anos, desde que ela veio aqui quando as crianças eram pequenas. Por que a pergunta?

— Veja só isso.

Nevaeh entregou o convite de casamento para Melina. A mulher o releu várias vezes, virando-o de um lado para o outro, e por fim, o colocou contra o sol para examinar seu papel.

— Não parece ser falsificado – Melina disse – Bom, muita consideração da parte dela nos convidar. Seria uma honra. Precisamos de roupas bonitas, se formos.

— Você não acha que as crianças estão metidas nisso? – perguntou Nevaeh – Com os três viajando, quem sabe o que eles podem ter aprontado?

Melina deu de ombros. Seus três filhos adotivos estavam longe de casa. Alma foi embora na primavera, e já era outono. Enoch partira fazia cerca de quatro anos, e Corina, cinco. Os dois vinham visitar algumas vezes por ano, mas não ficavam muito. A caçula seria a primeira a voltar, ela deveria estar em casa antes do inverno chegar. Já os outros dois, elas não tinham como saber.

— Consegue senti-los? – Melina perguntou.

Nevaeh tirou os óculos novamente e fechou os olhos. Seu peito se aqueceu com carinho e preocupação de mãe. Ela tinha o poder de sentir a aura das pessoas que estavam próximas, mas os filhos eram os únicos cujas auras ela conseguia sentir mesmo sem os ver.

Ela havia perdido a visão gradualmente na infância, já que passava as noites a ler grossos livros de lendas fantásticas, acompanhada apenas pela luz fraca de uma vela. Depois disso, Nevaeh precisava dos óculos o tempo todo, ou então trombaria em qualquer obstáculo à sua frente.

A aura de Corina foi a que ela sentiu primeiro. Ela estava mais perto de Auano que os outros filhos. Sua aura era fraca, translúcida, efêmera – sempre foi assim - mas definitivamente estava se aproximando de casa.

Enoch e Alma estavam juntos. Nevaeh sentiu suas almas ao mesmo tempo. A aura da filha mais nova era pacífica, calma, quente. Nevaeh não conseguia sentir sua própria aura, mas sempre imaginou que a de Alma fosse parecida com a dela. Já Enoch foi uma surpresa. A aura dele costumava ser inquieta, efervescente, como se estivesse sempre em movimento, mudando de uma forma para a outra, mas agora sua aura estava diferente. Não estava calma, mas não se mexia da mesma maneira. Parecia estar hesitante, amedrontada.

— E então? – perguntou Melina, delicadamente, para não atrapalhar a outra.

— Eles estão bem. Corina está perto daqui, parece estar vindo para Auano. Alma e Enoch estão juntos e... – sua fala acabou, pairando no ar.

— O que houve? Sentiu algo ruim?

— Enoch está mudado. Alguma coisa aconteceu com ele. Ele me parece triste. A aura dele está...confusa. Se move como um pêndulo.

— Bom, Alma está junto dele, não está? – Melina disse, com um suspiro – Tenho certeza que ela vai cuidar disso.

— É o que eu espero...

Ela segurou as mãos de Melina e abaixou a cabeça. Enoch sempre dera mais trabalho que suas irmãs, mas quando Nevaeh e Melina decidiram adotar as três crianças amaldiçoadas com poderes sobrenaturais, elas sabiam que teriam que lidar com esse tipo de situação. Os três eram especiais. Eles eram mais sensíveis a diferentes aspectos do mundo, e isso os expunha a maiores perigos e maiores sofrimentos.

— Vamos entrar, já está ficando escuro e vai esfriar – Melina disse, tentando parecer mais alegre – Como foi seu dia?

Enquanto Nevaeh contava sobre seus pacientes do dia, ela não pôde parar de pensar nos filhos, e tudo o que desejava era que voltassem logo para casa, para que os pudesse abraçar e proteger.

***

Nanna já tinha suas malas fechadas e estava se preparando para chegar em Ethea em poucos dias. De verdade, ela não queria inteiramente voltar para casa. Sentia falta de seus pais e das outras crianças da cidade com quem frequentava a escola, mas ela sabia que sentiria ainda mais falta de estar no barco com o tio.

O mar sempre a acompanhou. Ela sempre morou em Ethea, então sempre ia à praia com Orion e Eli, mas navegar era totalmente diferente. Quando Nanna ficava de pé na proa do Bela Dona, ela sentia algo que nunca sentira antes. O vento batendo em seu rosto, as ondas se arrebentando contra o casco do navio, o subir e descer da água abaixo dela, tudo lhe parecia natural. Ela tinha vontade de mergulhar na água fria e salgada e nadar com os peixes, tartarugas, tubarões e quaisquer outros monstros marinhos que encontrasse. Nanna pertencia ao mar.

As palavras do menino druida não saíram de sua cabeça. O massacre dos povos druidas era um evento recente, e Nanna não aprendia sobre isso na escola porque o assunto ainda gerava muita polêmica. Ela nunca se importou muito, e também nunca perguntou nada sobre os druidas para nenhum adulto. Mas agora, Nanna não parava de ficar imaginando coisas sobre os druidas. Os de Murmus não foram muito bons como exemplo, mas e se ela fosse como eles?

— Ei, Nanna! – Alma chamou, empurrando a rede dela e a tirando de seus devaneios – Estamos chegando em Agristan. Os meninos já vão ir embora. Vamos dar tchau para eles!

Nanna ficou de pé rapidamente e correu com Alma para a proa do navio. Hugo e Sébastien estavam parados, sentados em cima de suas próprias malas. Eles conversavam e Hugo balançava os pés. Nanna sorriu um pouquinho quando chegou perto dele e seu coração bateu mais rápido. Ela tinha certeza que isso devia ser alguma doença, mas achava engraçado os sintomas só aparecerem quando ela estava perto de Hugo. Seria algum tipo de alergia a lobisomens?

— Olha ali – Hugo apontou para a frente, onde uma cidade grande e cheia de casas e pequenos prédios se aproximava – A prefeitura é aquele prédio em formato de caracol. Minha irmã trabalha lá.

— Você tem uma irmã em cada canto da cidade, eu imagino – Alma brincou.

— Pois é. Depois de alguns anos eu comecei a me perguntar com que frequência meus pais ficavam entediados para terem nove filhos – murmurou ele. Alma e Sébastien deram risada.

— Eu não entendi – Nanna disse, confusa.

— Deixa quieto - Sébastien interrompeu antes que Hugo pudesse começar a explicar a piada – Besteiras, Nanna. Você é uma garotinha, não devia ouvir esse tipo de coisa.

— Eu não sou criança! – protestou a menina.

— Mais respeito com a madame, por favor! – Alma defendeu – Nanna é mais madura que muitos de nós.

— Mais madura do que um de nós, especificamente – Bastien comentou, indicando Hugo com um gesto de cabeça.

— Eu não sei se entendi o que você quis dizer com isso, meu amigo dentuço.

Os dois rapazes riram de novo, mesmo que Hugo estivesse se fingindo de irritado. Alma e Nanna se entreolharam. Durante as últimas semanas elas haviam discutido novamente as teorias de que os dois seriam um casal – Nanna se recusava a acreditar, mas admitia que Alma poderia estar certa.

— Vocês dois formam um lindo casal – Alma observou, como se lesse os pensamentos de sua amiga. O que, por acaso, não era impossível – Muito bonitinhos.

O lobisomem e o vampiro se entreolharam e fizeram caretas.

— Eca, não – Sébastien disse – Não somos um casal. Ele é meu melhor amigo, isso é estranho.

— E eu não gosto de garotos – Hugo completou – Não vai acontecer, sinto muito Alma.

— Só estava provocando vocês, calma – Alma deu uma piscadinha para Nanna, que suspirou aliviada – Mas se algum dia isso mudar, eu quero ser a madrinha do casamento.

Hugo revirou os olhos e Sébastien riu, mandando beijinhos para o amigo.

***

Hugo e Sébastien desceram do navio e caminharam pelo ancoradouro de Agristan. Outras pessoas da cidade também saíram do Bela Dona e se espalhavam pela área.

A família de Hugo não foi difícil de encontrar. Quatro meninas – uma criança e três de idade próxima dos vinte anos – andando em uma única massa de acenos e sorrisinhos. A mais nova foi a primeira a notar o irmão.

— Hugo!

As quatro meninas saíram correndo em direção ao lobisomem e o cercaram, empurrando Sébastien. Melanie, Emília, Filomena e Lorena falavam todas ao mesmo tempo, fazendo dúzias de perguntas ao irmão.

— Você trouxe lembranças?

— Beijou muitas meninas?

— Comeu comidas estranhas?

— Viu algum monstro marinho?

— Você nadou no mar?

Os pais de Hugo vieram logo depois da ninhada de filhas. Eles já tinham certa idade e o senhor Raye precisava de uma bengala para andar. Foram os únicos a lembrar da existência de Sébastien.

— Bastien, querido! – disse a sra. Raye, contornando os filhos eufóricos e dando um abraço carinhoso no jovem vampiro – Como foram de viagem?

— Muito bem, dona Gloria, obrigado! – o vampiro respondeu, sorrindo – Só estou um pouco cansado. Entrar em tantos lugares sem ter sido convidado é um pouco difícil.

— Eu imagino. São restrições terríveis para vocês, não é? Mas me parece até que você pegou um bronzeado!

Sébastien deu risadas altas, o que atraiu a atenção da irmã Raye mais nova, Melanie. A menina saiu do aglomerado familiar e parou ao lado de Bastien, o encarando com grandes olhos castanhos curiosos.

— Oi Bastien! – ela exclamou, acenando – Pode me emprestar sua cartola? Eu acho ela muito bonita.

— Eu não posso tirar ela durante o dia, Mels – Bastien respondeu, se abaixando para ficar próximo da menina – Sinto muito. Mas eu prometo te dar uma no meu aniversário.

— Papai, você ouviu? Vou ganhar uma cartola no meu aniversário!

— Maravilhoso, querida – respondeu o senhor Raye – Ei, Sébastien, seus pais já chegaram de viagem.

— Meus pais? – repetiu o vampiro, confuso – Eles só deveriam estar de volta no próximo verão.

— Aparentemente, o tratamento foi mais rápido do que eles esperavam. Berenice foi quem me contou tudo, ela está com eles, esperando você em casa.

Sébastien sorriu de canto a canto do rosto e se despediu rapidamente dos Raye. Ele correu por Agristan inteira até chegar em casa.

***

Sébastien bateu várias vezes na porta de sua casa, ansiosamente esperando. Berenice foi quem a abriu, e logo envolveu seu irmão em um abraço apertado.

— Ei! Você está de volta! – ela disse, enquanto puxava Bastien para dentro – Eu ia te buscar no porto, mas estava esperando o sol diminuir um pouco. Você se queimou?

— Não, estou bem – Sébastien respondeu, se soltando de Berenice e olhando ao redor – Mamãe e papai estão aqui?

— Sim, estão! Os medicamentos chegaram mais cedo e eles voltaram semana passada. Mamãe está descansando no quarto deles, vai lá! Eles estão com saudades.

O garoto sorriu e atravessou a sala de jantar rapidamente e largou suas malas no meio do corredor. Entrou no primeiro quarto da esquerda e lá estavam seus pais. Monsieur Gilbert estava sentado ao lado da cama, lendo um livro de capa negra. Já Madame Gilbert estava deitada na cama, embaixo de cobertores delicados. As janelas, bem fechadas e cobertas por cortinas, deixavam pouca luz entrar. Madame Gilbert sorriu e se ergueu dos travesseiros quando Sébastien apareceu.

— Bastien! – ela exclamou, com a voz fraca – Como você cresceu!

Sébastien sentou-se na cama ao lado da mãe, sem dizer uma palavra, e a abraçou. Monsieur Gilbert também se moveu e parou ao lado do filho, com uma mão no ombro do garoto.

— Bem-vindo de volta, filho – disse o pai – Como foi sua viagem?

— Foi incrível, pai. Hugo e eu vimos coisas estranhas e fizemos amigos mais estranhos ainda.

— Esse é o melhor tipo de companhia – respondeu Madame Gilbert – Pelas minhas estrelas, Bastien, não te vejo faz quase um ano e você está quase um adulto.

— Mãe, eu tenho dezesseis anos, não é nada comparado a vocês. Estou longe de ser adulto.

— Não é disso que sua mãe está falando – disse Monsieur Gilbert – Você está parecendo um adulto. Está até com a barba crescendo...

Ele passou a mão pelo queixo do filho, que deu risada. Sébastien estava longe de ter uma barba aparente, mas seus pais estavam viajando havia muito tempo. A mudança em sua aparência deveria ser muito mais perceptível para eles.

O garoto permaneceu na cama com a mãe enquanto contava tudo o que aconteceu na viagem – incluindo o encontro desagradável em Tepes. Enquanto conversavam, Bastien não desgrudou de sua mãe, sentindo-se extremamente feliz por ela estar ali.

Desde que Bastien se lembra, Madame Gilbert sofria de uma doença terrível que existia entre os vampiros – hemoalergia, a alergia a sangue.

Era uma doença que vinha em temporadas, ninguém sabia o que a causava, mas um dia, aleatoriamente, o corpo de Madame Gilbert passava a rejeitar o alimento dos vampiros. Manchas escuras surgiam em sua pele, ela tinha dores de estômago e sua pele ficava da cor da neve, mais pálida do que já era. O mais característico era a cor dos lábios – eles ficavam negros, assim como as pálpebras. Era assustador. Toda vez que a doença atingia a mãe, Sébastien tinha medo de estar prestes a ver seu último suspiro.

Quando os pais partiram naquela última vez, Sébastien ficou extremamente preocupado. Não queria sair de casa, sempre esperando cartas dando notícias sobre o tratamento de sua mãe – que só poderia ser realizado nas Terras Altas, com os bruxos, o que costumava ser demorado.

Berenice foi quem o convenceu a participar da expedição de Narciso. Ela prometeu que tomaria conta de tudo em sua ausência.

Agora Sébastien estava de volta, Berenice estava em casa, seus pais também.

E sua mãe estava com os lábios rosados, e não negros.

***

A mesa de jantar da mansão Blom era suntuosa e estava sempre cheia de comida, além de receber muitos visitantes com frequência.

Não era o caso daquela noite. O conde Gustaf Blom sentava-se à ponta da mesa, jantando em silêncio. Seu filho, Eric, estava à sua esquerda, e sua esposa, Florencia Castiblanco, à direita. Os três ocupavam uma pequena fração da mesa. Uma pessoa estava claramente ausente. Seu prato havia sido colocado, mas o lugar estava vazio.

— Já é outono – observou Gustaf, sem nenhum toque de emoção na voz – Onde está seu filho, Florencia? Com o monge?

— Não – respondeu Florencia, secamente – Ele não voltará esse ano.

— Como é? – perguntou Eric, expressando um misto de surpresa e raiva – Crispin está bem?

— Está, não se preocupe. Mas ele vai para o Refúgio de Yltaris.

— Yltaris? A feiticeira? – repetiu Gustaf – Aquela velha louca se interessou pelo bastardo?

— Sim. Ela disse que Crispin é inteligente e sua habilidade com magia poderia ser incentivada se estudasse com ela.

Silêncio novamente. Os criados da mansão estavam parados solenemente, olhando fixamente para o chão como eram instruídos, mas Eric tinha certeza que estavam ouvindo atentamente a conversa. Eles eram todos amigos de Crispin, afinal. Eric sabia que a simpatia de seu meio-irmão era bem lembrada entre os empregados, enquanto ele era tratado como o filho do homem que podia enforcar todos quando bem quisesse.

— E o pai de Crispin concordou com isso? -perguntou Gustaf, agora com a raiva e ressentimento em sua voz transparecendo – Ele não queria que o filho fosse monge como ele?

— Pelo contrário. Augustus está muito feliz por Crispin, acha que ele deveria seguir seu talento – Florencia respondeu com ar de superioridade – Você sabe muito bem que Augustus não é mais monge, e que também não deseja que Crispin siga esse caminho.

Gustaf deu de ombros e largou os talheres. Ele apoiou a cabeça nas mãos como quem reza, mas Eric conhecia seu pai o suficiente para saber que ele estava irritado e preparando uma maneira de humilhar Florencia e seu filho bastardo – mesmo que Crispin não tivesse feito nada de errado e não estivesse ali para se defender.

— Bom, todos sabemos que o Refúgio de Yltaris é uma coleção de aberrações. Quem sabe talvez o garoto pareça ser normal lá – Gustaf disse, seguindo a frase com uma risada grave e ressonante. Eric detestava aquela risada – Talvez Crispin volte sem magia e agindo como um jovem comum. Pode ser um choque de início, mas será para o bem dele, não é, Eric?

— Se o senhor acha, pai – murmurou o garoto, dando de ombros e desviando o olhar. Não queria ver a raiva da mãe nem o repúdio do pai – Ele não vai vir aqui antes de seguir para o Refúgio?

— Não, ele terá tudo o que precisa lá – respondeu Florencia, sua expressão se suavizando ao falar com o filho – Mas eu queria que ele voltasse. Faz tempo que não o vejo.

— Eu também. Não o vejo desde nosso aniversário.

Seu aniversário, você quis dizer – corrigiu Gustaf – A festa que fizemos aqui foi para você.

Florencia chutou Eric por debaixo da mesa. O garoto trocou um olhar rápido com a mãe. Gustaf não sabia do aniversário conjunto que havia ocorrido para Eric e Crispin na terra de sua mãe. O conde reparou no silêncio e hesitação e falou com firmeza:

— Quando foi a última vez que viu Crispin, Eric?

— No nosso aniversário, em Laecia. Nossos tios fizeram uma festa para nós dois no dia do aniversário do Crispin e eu fui lá, para me encontrar com ele. Depois disso, Crispin foi para a casa do pai dele e então partiu em viagem de navio com o Capitão Lothbrok.

— Você foi para Laecia sem minha permissão?

— Ele estava junto de mim, Gustaf. Fomos para a casa de meu irmão, não é nada de preocupante – Florencia murmurou – Já tivemos essa conversa. Eric é bem-vindo em Laecia, ele é meu filho, e meus irmãos são tão tios dele quanto de Crispin.

— Eric, você não estava examinando as tropas no sul da fronteira no dia do aniversário de Crispin? – perguntou Gustaf, com ainda mais rispidez. Seu olhar ameaçador se fixou no filho.

— Eu realmente fui para o sul com as tropas, senhor. Mas antes disso eu estive em Laecia, na casa dos meus tios. Eu não posso visitá-los? São minha família tanto quanto o senhor.

— Mentiu para mim, foi para Laecia sem minha permissão, ainda mais para ficar junto daquele bastardo do seu irmão...

— Foi minha ideia – Florencia mentiu, interrompendo-o – Eu que pedi para Eric vir comigo.

— Não, não foi – Eric disse – Ela está mentindo para me proteger. Sim, é verdade que eu não lhe disse onde estava indo, senhor, mas eu não acredito ter feito nada de errado.

Pela primeira vez, Eric não desviou o olhar depois de confrontar o pai. Ele sentia suas mãos tremerem, e a ansiedade lhe mordia a barriga causando calafrios, mas Eric se sentia pronto para enfrentar Gustaf.

O conde de Saltvik se levantou da cadeira, afastando-se da mesa e deixando a comida abandonada em cima do prato. Ele saiu da sala de jantar com passos fortes e raivosos, como uma tempestade ambulante. Eric suspirou e revirou os olhos, também sem apetite. Cutucou seu jantar com o garfo antes de encarar o lugar vazio ao lado de sua mãe.

Florencia acompanhou o olhar do filho. Crispin não estava ali.

Por mais que Eric e seu meio-irmão bastardo – que era exatamente trezentos e sessenta e seis dias mais velho do que ele – não fossem próximos, a presença de Crispin era sentida com facilidade, fosse em seus hábitos solitários ou em sua calma e educação.

— Ele está melhor longe daqui, Eric – disse Florencia, simplesmente – É o que eu sempre quis para ele. Crispin vai ficar bem no Refúgio.

— Eu sei disso – respondeu o garoto – Só queria que tivéssemos conversado melhor antes dele partir.

Florencia assentiu e depois se levantou, também deixando a comida de lado. Ela deu um beijo na testa de Eric, bagunçando seu cabelo escuro, e então se retirou da sala também, seguindo o caminho oposto de seu marido.

Eric suspirou novamente. Seu olhar recaiu sobre uma criada que, ao contrário de seus colegas, estava observando a cena que se desenrolava através de olhares rápidos. A menina corou e abaixou a cabeça quando viu que havia sido descoberta.

— Vocês não querem comer também? Devem estar famintos – perguntou Eric – E eu detesto jantar sozinho. Peguem pratos e sentem comigo, por favor.

Os criados trocaram olhares hesitantes, mas eventualmente obedeceram. A mesa estava agora um pouco mais ocupada, e Eric sentiu seu ânimo melhorar.

Ninguém ousou sentar-se na cadeira da ponta. Era como se a fúria de Gustaf se apoderasse dela.

***

Enoch e Alma estavam sentados confortavelmente no sofá da sala da casa deles em Auano. Os dois haviam sido abraçados com muito vigor e carinho pelas duas mães, além de receberem várias perguntas.

Alma era uma boa garota, e nunca mentiria para suas mães. Por isso, quando questionaram sobre como haviam se encontrado, ela não pediu permissão para o irmão e contou tudo o que acontecera na ilha de Tepes. Ao final, Melina e Nevaeh se entreolharam, ainda tentando absorver os acontecimentos narrados.

— Enoch, como você foi parar naquele lugar? – perguntou Melina, falando com severidade – Você não está arrumando intrigas, está? Não se meteu com assassinos de aluguel ou grupos de magia negra?

— Não, mãe. Eu não fiz nada de errado, eu te prometo. Juro pela minha vida que posso explicar – disse o rapaz, rapidamente tentando se defender – Eu simplesmente ajudei uma princesa. Os inimigos dela não gostaram disso e me capturaram.

— Por que capturaram você e não ela? – perguntou Nevaeh, mais preocupada do que brava.

— Nós não estávamos juntos. Ela tinha se escondido em uma terra amiga e segura, enquanto eu segui outro caminho. Meu trabalho já tinha acabado, mas eu caí numa emboscada. Ela não ficou sabendo de nada, para ser sincero.

— Explique-se melhor – Melina pressionou.

Antes que Enoch conseguisse começar sua história, os quatro ouviram batidas ritmadas na porta. Nevaeh se levantou e sorriu, já sabendo quem era, e correu para abrir a porta. Melina, por mais tensa que estivesse com as aventuras de Enoch e Alma, conseguiu se distrair também.

A porta foi aberta e um cachorro entrou. Ele arfava e latia animadamente, e depois pulou diretamente para o colo de Melina, enchendo a mulher de lambidas carinhosas.

— Fortunato! Olha só você, garotão! – disse ela, brincando com o cachorro.

Enoch e Alma olharam para a porta ao mesmo tempo e lá estava sua irmã, abraçando Nevaeh com força. Assim que Corina abriu os olhos ao soltar a mãe, ela deu um gritinho e foi de encontro aos irmãos, pulando no sofá e se posicionando entre os dois, assim como seu cachorro havia feito com Melina.

— Olá, meus queridos! – Corina exclamou. Ela primeiro apertou Alma entre seus braços e depois se virou para Enoch, dando um beijo em seu rosto – Meus irmãozinhos, eu senti tanta saudade de vocês dois. Alma, você cresceu!

— É o que acontece quando você some por cinco anos – murmurou o rapaz.

— Ei, ranzinza. Eu fiquei sabendo de suas andanças, e de seu novo pseudônimo. Dot. Que nome mais estranho, quem é que te chama assim?

— Amigos – respondeu ele – Mas vocês são minha família. Para vocês, eu posso ser Enoch.

— Enoch é um nome lindo, você não deveria escondê-lo -disse Ma Nevaeh, fechando a porta e tomando novamente seu lugar ao lado da esposa – Dot é um nome druida, não é?

— Não – murmurou o rapaz, ansioso para mudar de assunto – Corina, mamãe encontrou uma carta estranha alguns dias atrás.

— Ei, por que uma carta estranha necessariamente tem a ver comigo?

— Você é nossa irmã estranha! – Alma respondeu – Aceite esse cargo.

— Tudo bem, tudo bem. Que carta?

— Um convite de casamento – respondeu Melina – Entre a rainha Fallon, de Athelisa, e seus noivos, Talila e Aiden.

— Ah é, tem isso! – Corina exclamou – Eu totalmente esqueci de contar para vocês! A rainha Fallon pediu minha ajuda com um assunto sobrenatural. Ela ficou tão contente que decidiu nos convidar para o casamento, como forma de agradecer.

— Um casamento triplo – comentou Nevaeh – Eu nunca fui em um desses.

— Você tem que ter muita sorte para encontrar duas pessoas que te amam desse jeito – Enoch acrescentou.

— Ah, Fallon tem mesmo sorte. É uma longa história, eu posso contar para vocês, se quiserem.

— Adoraremos ouvir – Melina disse, mas então assumiu novamente um ar severo – Mas antes disso, seu irmão tem que se esclarecer um pouquinho sobre alguns assuntos. Ele aprontou com uma princesa.

— Não foi uma princesa, foi a princesa Fayza Zaman, de Yaehiora – Corina interrompeu – A rainha Fallon me contou sobre isso. É uma ótima história, vocês vão adorar. E não se preocupem, ele não fez nada de errado.

As duas mães olharam de Corina para Enoch algumas vezes, tentando decidir se confiavam mais no garoto por causa da palavra da filha mais velha.

Tendo ficado tanto tempo sem ver Corina, Enoch havia esquecido o quão estranha ela era. O cabelo curto e escuro parecia ter sido cortado por uma criança com uma tesoura cega. Ela usava várias camadas de roupas escuras – seu vestido, dois casacos e um sobretudo, embora o friozinho de outono não justificasse tal precaução. Era totalmente diferente de alma e suas saias longas e coloridas.

— Bem, já que vocês dois estão dizendo que não foi nada demais, nós acreditamos – disse Melina, enfim – Mas gostaríamos de ouvir a sua explicação, Enoch.

Corina deu uma piscadinha de cumplicidade para o irmão, e Alma riu. Fortunato latiu e correu até o colo de sua dona, lambendo as mãos da necromante em um pedido de carinho.

— Muito bem – Enoch começou, depois de respirar fundo – Tudo começou quando eu fui parar no deserto...

***

Quando Nanna chegou em Ethea, seus pais a esperavam na areia. Ela saiu correndo e pulou nos braços de Eli, que a apertou contra si, rindo.

— Olá, querida! – disse o homem – Bem-vinda de volta.

— Estou morrendo de fome, Papa!

— Então é assim, nada de “oi Dada, como está?” ou “como foram os meses sem mim, Papa?” – Orion provocou, cruzando os braços.

— Desculpa, Dada – respondeu Nanna, rindo e então abraçou o outro pai – Mas eu estou faminta.

— Que ótimo, porque o almoço te espera em casa - Eli respondeu – Está com tudo em mãos? Suas malas estão todas aí?

— Sim, senhor!

— Então vamos.

Enquanto Eli e Nanna se viravam de costas para o navio e caminhavam pela praia, Orion parou no meio do caminho. Narciso estava acenando para ele e gritando seu nome.

— Acho que tio Ciço está te chamando – Nanna observou.

— E ele é tão discreto – Orion disse, e se virou de volta para os dois – Vou ver o que meu irmão quer comigo. Já volto para casa, guardem um prato para mim.

Orion se aproximou do Bela Dona e subiu as escadas que levavam para dentro do navio. Eli deu de ombros e seguiu o caminho para fora de praia, de mãos dadas com a filha e puxando sua bagagem.

O céu estava num tom de puro azul, e o sol iluminava o dia em sua totalidade, mas sem que estivesse quente demais para suportar. Enquanto atravessavam a cidade, Nanna contava agitadamente sobre seus amigos, sobre os lugares que vira e as pessoas que conheceu.

Subiram a colina onde ficava sua casa, mas nada de Orion ser visto vindo. Eli se perguntou o que diabos Narciso estava aprontando agora.

Nanna pulou a pequena cerca de madeira e entrou na cozinha de casa, imediatamente encontrando as panelas e pratos e se servindo. Ela sentou na mesa e só parou de falar para comer.

— Minha nossa, parece que ficou sem comer no Bela Dona – Eli disse, sentando ao lado dela.

— Pelo contrário, eu comi do bom e do melhor. Mas nada é melhor que comida de casa.

— Lembre de deixar um pouco para o seu pai. Você vai comer a panela inteira.

— Tio Ciço disse que estou em fase de crescimento.

— Se essa é a desculpa que ele tem, então Narciso e seu pai estão em fase de crescimento há trinta anos.

Nanna deu risada e continuou a refeição em silêncio. A casa não havia mudado em nada. Pela porta da cozinha, ela conseguia ver os sofás da sala e a parede cheia de livros. Os livros de Eli costumavam ser maiores e velhos, muitos deles com páginas faltando e anotações por todo lado, afinal seu trabalho era traduzir e corrigir livros antigos. Os livros de Orion também eram longos, mas suas capas eram coloridas e traziam histórias de ficção. Nanna os preferia, e gostava de guardar seus três preferidos no criado mudo de seu quarto.

Ela sentiu saudades de casa. Queria subir para seu quarto e pular em sua cama, depois correr pela grama e pegar frutas no pomar da tia Maya, que morava no pé da colina.

Uma coisa ainda estava implícita no ambiente, e Nanna tinha medo de trazer o assunto à tona, mas pensou que talvez fosse melhor que ela o fizesse.

— Papa, vocês ainda estão bravos comigo? – perguntou Nanna, em voz baixa, encarando seu almoço como se os legumes fossem lhe dar uma resposta – Por causa do que aconteceu na ilha dos vampiros?

Eli ficou em silêncio um pouco antes de responder. Ele desviou o olhar várias vezes, pensando em como responder, mas Nanna queria que ele falasse de uma vez.

— Eu fiquei bravo sim, Nanna. Orion também. Mas além disso, ficamos preocupadíssimos – disse Eli – Deixamos você ir navegar porque confiamos em você, e isso quer dizer que sabíamos que você não iria entrar em confusão.

— Não quis entrar em confusão... eu não sabia que... – Nanna não conseguia terminar as frases e então soltou uma série de resmungos.

— Me conte a história de novo. Parte por parte.

Nanna respirou fundo e começou a contar tudo. A tempestade, o sonambulismo de Alma e o plano de Dot, os vampiros com feitiços contra magia, até o escape deles com a ajuda de Hugo. Eli ouviu silenciosamente, de vez em quando assentindo e murmurando.

— Eu não podia deixar a Alma ficar sozinha, entende? – justificou Nanna – Não estava pensando direito, mas se eu deixasse minha amiga seguir aquela névoa, assustada e desprotegida, não iria me perdoar. Quis fazer o bem.

— Você podia ter morrido.

— Eu sei disso, mas só percebi depois o quanto era perigoso. Na hora, parecia a única coisa lógica a fazer, eu estava só seguindo meu instinto. Quando fui trancada na cela dos vampiros eu tive tanto medo, eu não conseguia acreditar na enrascada em que eu tinha me metido...

Nanna suspirou, segurando as lágrimas. Eli segurou uma das mãos da filha até que ela se acalmasse.

— Desculpe, Papa, desculpe... eu sou tão burra...

— Não, você não é burra. Nunca diga isso de novo – Eli interrompeu com frieza – Nanna, você agiu com o coração. Não é errado. Mas você tem que se lembrar que tem só treze anos, e não tem que proteger todo mundo. Você tem que cuidar de si mesma antes. Não consegue fazer tudo sozinha. Entendido?

A menina assentiu e enxugou as lágrimas com as costas da mão. Eli se levantou para abraçá-la e lhe deu um beijo na testa.

— Você parece demais com seu. Impulsiva.

— Isso é ruim? – Nanna perguntou.

— É claro que não. Você é corajosa. Mas vocês dois vão me deixar louco algum dia.

Nanna riu e voltou a comer. Eli se afastou em direção ao jardim, mas antes que ele saísse da cozinha, a garota perguntou:

— Então eu não estou de castigo?

— Claro que não. Não poderá sair de casa sem estar acompanhada de alguém, seja eu, Orion ou Maya. E não vai navegar tão cedo – Eli respondeu, simplesmente, como se não fosse nada de importante – Mas filha minha não fica de castigo sem almoçar primeiro.


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Notas finais do capítulo

Aviso: preparem seus lencinhos para o próximo capítulo. Vai ser triste.



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