Contos de Aurora escrita por Wi Fi


Capítulo 9
Conto Nove: No ar


Notas iniciais do capítulo

Ainda estou aqui, postando capítulos esporadicamente.
Nesse aqui, que está pronto há séculos na verdade, eu introduzo um personagem novo e também muito querido, além de contar sobre a maior história de amor de Aurora: Narciso e seu navio.
Espero que gostem!



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Narciso se lembrava do dia em que conheceu o Bela Dona. Foi provavelmente o mais perto que ele chegou de amor à primeira vista.

A noite em si não havia sido muito boa até então. Narciso havia brigado com Orion, como era de costume, e saído para o vilarejo próximo ao Refúgio, esperando afogar as mágoas com álcool.

No cais, barcos estavam ancorados, recém-roubados de alguma marinha de alguma realeza humana. Os preços estavam baixos, já que o homem que os anunciava queria se livrar deles antes que alguém viesse levar os barcos de volta para seus donos originais.

O barco mais barato tinha uma estátua de uma sereia sorrindo, na proa. Isso já chamou a atenção de Narciso. Seu carinho por sereias vinha de sua mãe, e ele detestava as estátuas destas criaturas que eram colocadas nos barcos, seminuas e aos berros.

Narciso assobiou ao vê-lo e parou de braços cruzados no piso de madeira. As estrelas e a lua eram luz o suficiente para admirar o tamanho do barco e a qualidade de sua madeira, além das grandes e delicadas velas que ele ostentava.

Pensando bem naquela noite, Narciso se perguntou se tinha titica na cabeça. Não tinha mais que vinte e três anos de uma vida conturbada, um punhado de dinheiro acumulado e herdado, um espírito inquieto e algum vestígio de código moral e senso de perigo. Se realmente conseguisse comprar um navio ali, tinha apenas algumas regras para seguir.

Primeira regra: Não sujar as mãos de sangue além do necessário.

Segunda regra: Roubar o que merece ser roubado, de quem merecer ser roubado.

Terceira regra: Respeitar a sua tripulação como se respeitaria sua família.

Quarta regra: Não ter medo de enfrentar ninguém. Ninguém.

Era só isso que Narciso havia decidido para seu futuro. Iria sair pelos mares, com um bando de desconhecidos que recrutaria apenas algumas noites mais tarde e com sua curiosidade. Com o passar dos anos, seu código de conduta mudou. Depois de alguns encontros infelizes, decidiu que matar alguém era impensável para um membro de sua tripulação e, após ser recrutado por Yltaris, Narciso teve que prometer que pararia de roubar.

Para ser justo consigo próprio, Narciso nunca foi um pirata como os outros. Eles saqueavam cidades, matavam pessoas para conseguir dinheiro, ou só para passar o tempo. Mas a tripulação de Narciso nunca faria isso. Eles eram justiceiros. Encontrariam as piores pessoas dos mares e lhes dariam uma lição – eventualmente, ficando com seus bens, especialmente seu ouro.

O navio não era um navio pirata. Servia para comércio entre humanos, levando caixas grandes e pouca tripulação, de forma que seu casco possuía cômodos amplos e vazios para carregar mercadoria, e não pessoas. De qualquer forma, eles virariam os quartos de seus companheiros. As insígnias de seu dono original foram arrancadas e cobertas por tinta, mas para um bom observador, os resquícios da imagem de um brasão podiam ser encontrados no casco do navio. Seu nome também não era conhecido, e isso era o mais importante -pois aquele que nomear o navio é quem dita suas regras.

Bem, Narciso não tinha o dinheiro necessário para comprar o navio naquela noite. Tentou barganhar com o vendedor, mas obteve pouco sucesso. Ele não desistiu. Tinha que sair do Refúgio, ele não suportava mais a vida monótona e acadêmica. Orion e Narciso viviam mudando de cidade para cidade, de porto para porto, onde quer que seus pais conseguissem trabalhar. Nunca tiveram uma casa, muito menos frequentaram boas escolas, e agora o Refúgio servia como os dois. Narciso não gostava nada de estar preso àquela rotina de vida boa. O mar lhe chamava de volta.

Comprar um navio roubado e se tornar seu capitão pirata implicava uma vida na marginalidade, mas ele não se importava, desde que pudesse ter sua independência das pessoas que deixava em terra firme. Iria navegar até o meio do mar, encontrar os familiares de sua mãe – os tritões e sereias que ele nunca pôde conhecer, tendo nascido sem guelras com duas pernas.

Narciso não sabia ainda se iria sair do Refúgio furtivamente, se contaria para seu irmão, se pediria desculpas, se manteria contato. Orion nunca aprovaria o caráter ilegal de seu futuro, muito menos gostaria de fazer parte dele – especialmente agora que tinha Eli ao seu lado. Pensar em se separar do irmão enchia Narciso de culpa e tristeza, mas ele era orgulhoso demais para admitir.

Mas todos esses pensamentos e planos para o futuro não teriam dado certo se Mathilda Belacqua não estivesse naquele mesmo porto, naquela mesma noite.

Depois de ter sua barganha rejeitada, Narciso andou a esmo pelo cais, esperando alguma inspiração divina para lhe ajudar. Eis que encontrou Tilda, discutindo com outro vendedor de barcos.

— Mathilda Belacqua – disse Narciso, quando se aproximou dela, assim que a mulher parou de discutir com o vendedor – O que uma garota bonita como você faz num lugar como esse?

— Eu ia te perguntar a mesma coisa – ela respondeu com grosseria – Está tentando fugir, não é? Eli me disse que os irmãos Golias estavam discutindo de novo.

— Cachos de Mel é um tremendo linguarudo – resmungou o rapaz – Eu não estou tentando fugir. Eu vou fugir, Tilda. Não tem nada para mim aqui. Não vou sentar na biblioteca e estudar até apodrecer.

— Eu também não. Mas meus problemas vão além disso.

— O que quer dizer?

— Meus pais vão vir para cá em um mês. Querem que eu me case e siga o trabalho da família.

Tilda desviou o olhar de volta para o horizonte, para o mar. Narciso fez o mesmo e sentiu pena de sua colega. Nos últimos três anos que passara no Refúgio eles tiveram interações limitadas e não muito profundas. Como tinham a mesma idade, tiveram muitas das mesmas aulas, mas as conversas nunca foram o suficiente para se conhecerem bem.

Ainda assim, Narciso sabia que Mathilda Belacqua era parte da elite. Ela era mais gorducha que o resto das garotas, o que denunciava que nunca passara fome em sua vida, e seu sobrenome anunciava que tinha do bom e do melhor. Os Belacqua fabricavam e vendiam perfumes e sabonetes para toda Aurora, eles literalmente cheiravam a dinheiro. Tilda era filha única, era sua responsabilidade tomar conta do negócio da família.

Mas Narciso reconhecia o olhar de esperança dela ao encarar o mar. Uma vontade inexplicável de correr para a água e pular, partir sem rumo. Uma ideia surgiu em sua cabeça.

— Tilda, você já navegou antes? – perguntou ele.

— Mas é claro. Meu pai levava os produtos caros pessoalmente e eu ia junto. E você? Sabe navegar?

— Minha mãe era uma sereia, por favor, é claro que eu sei navegar. E tem dinheiro com você?

— Tenho – ela puxou a frente de seu casaco, revelando uma bolsa de pano pendurada em seu ombro – Mas não é o suficiente para comprar um barco. Eu iria pagar alguém para deixar eu me esconder na tripulação até conseguir arranjar mais.

— E conhece mais gente que gostaria de navegar?

— Mais gente que quer fugir do Refúgio? Sim. E aposto que conseguimos vinte pessoas no bar – Tilda disse, começando a entender onde Narciso queria chegar com a conversa - Qual dos barcos está em sua mente?

Narciso puxou Tilda pela mão e a levou até o outro lado do cais, onde o navio da sereia sorrindo estava ancorado. O mesmo homem de antes estava lá, ainda tentando anunciá-lo. Mathilda assobiou, impressionada.

— Nada mal – ela murmurou e se virou para encarar Narciso – Nada mal mesmo. Se eu voltar para o Refúgio agora e começar minhas negociações, podemos zarpar em uma semana.

O rapaz sorriu de orelha a orelha, e colocou uma mão no ombro da mulher. Com a outra mão, afastou os curtos cabelos ruivos do rosto de Tilda, os prendendo atrás de sua orelha.

— Sabe, Tilda – ele disse, empolgado – Você é a segunda coisa mais linda que eu vi hoje.

***

O convés do Bela Dona estava ocupado por cerca de doze tripulantes. O turno da noite era o que tinha menos gente trabalhando no navio. Hugo e Nanna estavam sentados no chão, remendando roupas da tripulação e conversando entre bocejos. Parte do castigo aplicado a eles por causa do incidente com os vampiros de Tepes era participar daquele turno e fazer quaisquer atividades que seus colegas achassem necessário.

Capitã Tilda Belacqua estava no timão, garantindo que não sairiam de rumo novamente. Seu próximo destino era a ilha Remo, terra dos magos primitivos. Seria uma de suas últimas paradas antes de voltarem para o ponto inicial da viagem, e devolver seus jovens tripulantes a suas terras natais.

Tentando evitar cair no sono, Nanna e o jovem lobisomem conversavam sobre sua vida comum em suas respectivas casas.

— Minhas duas irmãs mais velhas não moram mais com a gente. Abigail está casada faz uns dois anos, e ela vai ter um filho nesse inverno – Hugo estava contando para Nanna, enquanto remendava um furo na camisa de alguém – Leonor se mudou para estudar em outro reino. Emilia, Evita e Filomena estão estudando e trabalhando em Agristan, então moram em casa, elas dividem o quarto do porão.

— E você é o único menino na família? – Nanna perguntou, impressionada – Meus deuses, deve ser divertido.

— Não, não é nada divertido. Quando eu era pequeno, Emilia, Filomena e Lorena ficavam me usando nas brincadeiras delas. Eu era sempre o cachorro.

— Isso é maldade! – a menina exclamou, rindo.

— Nem me fale. Como se ser o único menino em uma ninhada de garotas não fosse ruim o suficiente, ser o oitavo filho depois de sete meninas é a pior sina possível.

— O que quer dizer? – Nanna perguntou.

— Diz a lenda que quando nascem sete filhas e depois nasce um menino, ele é um lobisomem – Hugo explicou, dando de ombros – Meus pais achavam que era lenda. Até eu acontecer.

— Então nunca foi mordido?

— Nunquinha. Nasci assim, mas é a vida.

Nanna assentiu, em silêncio, e ficou pensativa. Ela escorregou no chão para ficar mais próxima de Hugo, mas ele estava tão sonolento que nem percebeu.

Não muito tempo depois, algo muito estranho aconteceu. O vento parou, e com ele, o Bela Dona parou também. A tripulação pareceu confusa e começaram a zanzar pelas bordas do navio tentando descobrir o que havia acontecido.

Então, sem nenhum aviso, o barco começou a flutuar, acima da água, devagar. O vento voltou, mas ele parecia contornar o barco a ajudar a levantá-lo para o céu. Isso Hugo notou, e piscou algumas vezes para tentar espantar o sono e verificar se estava sonhando ou não.

— Estamos....subindo? – perguntou ele, olhando ao redor.

Nanna esticou os braços sobre a parede da amurada, tentando se segurar ao navio, mesmo que não estivesse subindo rapidamente. Capitão Narciso logo apareceu no convés e foi ao encontro de Tilda. Ele ainda usava pijama e seu cabelo parecia um furacão.

— Certo, o que diabos está acontecendo? – ele disse para a colega – O Bela Dona não voa.

— Aparentemente, voa sim. Jogar a âncora seria inútil – Tilda comentou – Não alcançaremos o mar com a âncora e o peso dela não nos prenderia a nada. O ar está nos puxando... mas por quê?

Narciso começou a andar de um lado para o outro e pareceu ter uma revelação. Ele tateou o corpo, institivamente a procura dos bolsos de seu velho casaco, mas logo se lembrou que não o estava usando.

— Tilda, me dê um mapa. Rápido!

A capitã tirou um pedaço de papel velho, amarelado e dobrado de dentro de um dos bolsos de seu casaco e entregou para Narciso. O capitão olhou pelas linhas desenhadas no mapa, indicações dos lugares por onde passaram e o último porto de onde saíram.

— Devemos estar próximos da Baía de Ossos agora, já que saímos de Porto Rosa dois dias atrás – observou Narciso – O que quer dizer que estamos em território druida. Ou seja, logo acima de nós está...

— Murmus! – exclamou Tilda – Oh deuses, o que Murmus quer com a gente? Narciso, isso é coisa sua?

— Quem é Murmus? – Nanna se levantou corajosamente e correu até o tio – Por que ele está colocando a gente no ar?

— Murmus não é uma pessoa, maruja – respondeu o Capitão – É uma cidade. A cidade dos druidas do ar.

A garota assobiou impressionada e olhou para cima, assim como os dois capitães do navio. A noite escura não deixava quase nada para ser visto, mas uma nuvem gigante pairava acima do Bela Dona.

Tilda começou a circular pelo convés, mandando todo mundo ir para o interior do navio. Certamente os druidas haviam lançado alguma forma de proteção para que eles subissem tranquilamente até a cidade, mas era melhor se prevenirem.

***

O navio estava voando.

A cidade de Murmus se erguia ao redor da tripulação. Sobre as nuvens, passarelas de madeira se intercruzavam, casas flutuantes de pedra estavam ali paradas, sólidas, sem nada que as sustentasse além da magia druida. Barcos eram usados para o transporte, atravessando as faixas de nuvens como se fossem rios.

Murmus estava acordando quando a tripulação do Bela Dona saiu para o convés para receber algum tipo de explicação do que estava acontecendo. O navio estava voando ao lado de uma plataforma comprida, com as placas de madeira que compunham o chão com pequenos espaços vazios entre si. Alguns cidadãos já podiam ser observados à distância, caminhando entre as plataformas e realizando suas atividades rotineiras.

Nanna mal podia esperar para sair do navio. Ela ficou ao lado de Narciso desde o momento em que ele decidiu sair do quarto e observar o que estava acontecendo em Murmus. Ouvira cada uma de suas observações e reclamações.

— Faz décadas que eu não venho para Murmus. A primeira vez foi com meu pai, quando era pequeno – disse Narciso, enquanto o navio se acomodava entre as nuvens – E na última eu ainda era pirata. Nunca mais voltei, mas eu me lembro de algumas pessoas que conheci aqui.

— Eu nunca vi druidas antes – Nanna exclamou, agitada – Eles estão chegando para falar com a gente?

A garota apontou para um grupo de pessoas usando longas capas com capuzes, andando pela passarela. Alma, Hugo e Sébastien se juntaram a Nanna ao lado do capitão e também observavam o movimento ao redor.

— É a rainha deles? Ou uma princesa, ou coisa do tipo? – perguntou Hugo, se debruçando mais para tentar ver melhor.

— Druidas não têm reis ou rainhas, muito menos príncipes e princesas – Sébastien respondeu com certa impaciência – Eles não têm distinção de classe. Cada pessoa tem seu papel na cidade e cada pessoa tem uma ligação espiritual com a natureza. São incrivelmente pacíficos.

— Uma vez os druidas já foram grandes sábios. Líderes das sociedades mágicas, bons líderes – Narciso completou, com certo pesar na voz – Mas agora...

— Agora eles estão se escondendo e recorrendo a proteção de terceiros para ter seu estilo de vida de volta. Tudo isso porque nós, humanos, decidimos que era hora de acabar com a influência dos druidas no mundo que deveria ser dominado por nós.

Os cinco observadores viraram as cabeças para trás para ver quem estava falando. Era Dot, e ninguém até então havia notado sua presença, mas ele podia muito bem ter estado em uma forma animal até então. A aparência do rapaz havia melhorado bastante nos últimos dias que havia passado no navio – suas olheiras diminuíram, ele havia se barbeado e Alma cuidou de seus machucados, ganhados depois de um longo período de tempo na casa dos vampiros. Mas, novamente, isso podia ser só mais uma de suas ilusões.

Entretanto, naquela manhã, ele parecia não ter dormido nada bem, tomando por base seu humor. A voz de Dot era carregada de amargor ao falar dos druidas. Mais de uma vez Alma se pegou tentando ler as memórias ou os sonhos do irmão para descobrir exatamente o que ele tinha com os druidas, já que ele certamente não falaria sobre o assunto.

— Bom dia, Dot – disse Hugo – Parece que dormiu com o inferno essa noite.

— Foi mais ou menos isso. Pesadelos.

— Eu ouvi você resmungando de noite – Sébastien comentou – Mas não queria te acordar.

Dot deu de ombros e foi parar ao lado de sua irmã. Uma brisa leve e gelada causava arrepios na tripulação e balançava as bandeiras. A Capitã Tilda logo puxou Narciso para o meio do convés e eles começaram a discutir em voz baixa, deixando os adolescentes curiosos sozinhos.

— O que será que os druidas querem com a gente? – perguntou Alma – Nanna, eles conhecem seu tio, não é?

— Dos antigos tempos de pirataria, sim. Mas eles são um povo pacífico, certamente não têm nenhum amargor com tio Ciço. E eu duvido que ele fosse fazer mal a algum povo como os druidas – respondeu a garota – O avô dele e do meu pai, meu bisavô, era um druida das florestas. E as sereias são descendentes de uma linhagem antiga de poderosos druidas dos mares, sem falar que o Refúgio de Yltaris fazia missões para proteger esses povos.

— Yltaris tem a ver com esse imprevisto, será? – perguntou Sébastien – Ninguém mais iria interferir na nossa viagem, nem saberia onde estaríamos exatamente.

— Eu só quero ir para casa – Dot resmungou, bufando um pouco – Ei, parece que a realeza está vindo até aqui.

***

O grupo de pessoas encapuzadas simplesmente flutuou até o convés, antes mesmo que Narciso pudesse jogar a escada de madeira para baixo para que eles subissem. Alguns tripulantes ficaram parados, olhando em choque e admiração.

Quase simultaneamente, as cinco pessoas tiraram seus capuzes. Eram três homens e duas mulheres de cabelos prateados e pele de tons coloridos – uma das mulheres e dois rapazes tinham a pele de um azul muito claro, enquanto os outros dois druidas tinham a pele amarelada. A de pele azul, que usava um adereço de ramos de madeira e flores na cabeça, deu um passo à frente e falou:

— Gostaríamos de falar com o capitão deste navio. Fomos enviados pela feiticeira Yltaris – sua voz era calma e doce, mas ressoou nos ouvidos de toda a tripulação sem que ela tivesse que gritar.

— Esse navio tem dois capitães, madame – Tilda respondeu prontamente, erguendo a mão – Eu sou Tilda Coração-Bom e este é Narciso, o Louco.

— Narciso, o Louco – repetiu a druida, claramente tentando segurar o riso – Eu o conheço por outro nome, Narciso Golias. Ou Narciso Egeu, como eu acredito que esteja se chamando agora.

Todos os olhares se voltaram para o capitão, que apertava suas mãos uma contra a outra, nervosamente. Ele então se aproximou dos druidas e fez uma reverência.

— É um prazer revê-la, senhorita Rhys. Não esperava que se lembrasse de mim.

— Nós druidas nos lembramos de tudo, Narciso – ela respondeu, com um sorriso amigável – Meu pai, o guardião de Murmus, deseja falar com o responsável por essa embarcação.

— Bela Dona – Tilda resmungou, já que Narciso parecia paralisado, encarando os druidas – O nome do barco é Bela Dona e eu já disse que tem dois capitães. Vai ter que falar com nós dois.

— Como um barco com dois capitães funciona? – perguntou o druida de pele amarela.

— Muito bem, obrigada. Por acaso Yltaris está aqui?

— Não, não está – disse senhorita Rhys – Mas temos uma mensagem transmitida por ela para meu pai. Por favor, nos acompanhem, capitães.

Tilda trocou um olhar desconfiado com Narciso. Ela não parecia estar empolgada com aquela situação, mas o capitão claramente já tinha algum conhecimento dos hábitos druidas. Ele puxou um rapaz chamado Lou, que já era marujo havia alguns anos, e o deixou no comando do navio, enquanto ele e Tilda iam até o pai de Rhys para receber a mensagem.

***

A casa para onde Narciso e Tilda foram conduzidos não era diferente de nenhuma das outras, tirando o fato de ser um pouco maior – mas isso era devido ao número de membros na família, não por causa da posição social de senhorita Rhys e sua família. O interior era tão acolhedor quanto o exterior: as casas eram iluminadas pelas grandes janelas com vitrais coloridos, e os móveis de madeira feitos com cuidado e delicadeza pareciam absurdos para os dois piratas. Um homem com uma longa capa branca e cabelos cor de cobre se sentava em uma poltrona no centro da sala de entrada. Sua pele era azul celeste, mais escura que o de sua filha.

— Aisling, vejo que trouxe nossos convidados – disse o senhor Rhys – Capitão Narciso, eu lamento nunca tê-lo conhecido pessoalmente. Berach Rhys, é um prazer receber sua tripulação em Murmus.

Nossa tripulação – Tilda interrompeu – Eu sou Capitã do navio junto de Narciso. Mathilda Belacqua, Tilda Coração-Bom.

— Yltaris me contou muito sobre você, Capitã – respondeu Berach Rhys com calma e paciência, apesar do tom defensivo de Tilda – Sei muito bem das capacidades dos dois.

— Se tornaram muito célebres entre os viajantes – Aisling Rhys concordou, olhando rapidamente para Narciso – Não é comum piratas deixarem de lado a vida de liberdade e roubo para apoiar causas beneficentes.

— Bom, nós dois devemos muito a Yltaris – Narciso disse – Não seria justo negar o pedido de ajuda dela, depois de tudo que fez por nós.

Enquanto falavam, os dois druidas, senhor e senhorita Rhys, zanzavam pela sala em movimentos rápidos, puxando cadeiras para que os capitães se sentassem. Narciso aceitou o gesto rapidamente, mas Tilda relutou e ficou de pé por algum tempo antes de ceder. Os Rhys sentaram-se de frente para os dois, e repousaram as mãos sobre as pernas, simultaneamente. Foi Aisling quem continuou a conversa:

— Madame Yltaris é orgulhosa de sua recente missão com os jovens. Ela fica feliz que esteja ajudando tanto os adolescentes com espíritos inquietos quanto aqueles que já foram adolescentes inquietos.

— Que belos exemplos nós somos! – suspirou Narciso, olhando para sua colega. Tilda não parecia nem um pouco à vontade ali – Na última vez em que estive aqui, estava arrumando encrenca. Lembra-se disso, senhorita Rhys?

— Mas é claro. Não esquecemos nada, Capitão. Você estava quase morto quando chegou nesta mesma sala...

A druida e o pirata olharam para o chão, se lembrando do dia em que se conheceram. Aisling tinha um leve sorriso nos lábios, como se achasse a situação toda divertida, mas Narciso não estava nenhum pouco orgulhoso daquela lembrança.

— Se me permite perguntar, Capitã Tilda, por que a senhorita não estava no Bela Dona naquela época? – perguntou Aisling Rhys.

— Eu e Narciso havíamos tido um desentendimento meses antes – respondeu Tilda, com frieza – Além do mais, eu tinha uma bebê recém-nascida para cuidar. Não podia me dar ao luxo de me aventurar e colocá-la em perigo.

— E por que vocês dividem o posto de Capitão do navio?- perguntou Berach.

— Por que nós dois o compramos – Narciso disse – Eu paguei dois terços do preço e Tilda pagou a parte que faltava. Tecnicamente, ela é dona de um terço do Bela Dona.

— Se insistir nisso, eu vou usar meu um terço da tripulação e te mandar andar pela prancha.

Os druidas deram risada, mas Narciso sabia muito bem que ela não estava brincando totalmente. Aisling se levantou sem dizer nada e foi até os fundos da casa. O capitão não conseguiu evitar o ato de segui-la com o olhar. Sua aparência não mudara nada desde a primeira vez em que se viram, ela continuava muito bonita. E lembrar o quão ridículo ele estava quando se conheceram só o deixou mais acanhado.

Para resumir brevemente os acontecimentos daquele dia: Narciso e a tripulação estavam sendo perseguidos por um outro grupo de piratas mal-humorados. O capitão avistou Murmus enquanto navegavam e soltou fogos de artifício como pedido de socorro. Os druidas trouxeram o navio para cima, mas, no meio do processo, os outros piratas os alcançaram e começaram a entrar no Bela Dona, lutando contra a tripulação. Narciso levou um tiro na barriga e uns belos socos. Cambaleou até a porta de Aisling e implorou por ajuda.

O Bela Dona passou alguns dias atracado no céu e depois de tudo, Narciso estava loucamente apaixonado pela bela druida que havia cuidado dele. Trocaram cartas por meses, mas eventualmente, Narciso desistiu de ter algum romance com ela. Tilda sabia de toda essa história e provavelmente estava chamando-o de idiota por ter seguido e confiado em Aisling tão rapidamente.

Bem, ele era um idiota, isso era certo. Mas a reputação pacífica dos druidas era sagrada, então essa era uma boa desculpa.

Quando a druida voltou, ela tinha em suas mãos um pergaminho enrolado, e um garoto jovem ao seu lado, de cabelos incrivelmente cacheados e rebeldes.

— Este é Crispin Castiblanco – Aisling disse – E Yltaris o mandou aqui.

— Como assim? – perguntou Tilda, erguendo uma sobrancelha.

— Yltaris esteve conosco cerca de um mês atrás. Ela nos deixou este pergaminho e, cerca de dois dias depois, Crispin apareceu para nós – Berach explicou, levantando e parando ao lado da filha, deixando o rapaz sentar em seu lugar – O pergaminho estava endereçado ao navio Bela Dona, e quando Crispin chegou, disse que deveria esperar por um navio com esse mesmo nome vir buscá-lo.

— Nós...viemos buscar um garoto? Tudo bem, então – Narciso repetiu, devagar, e encarou Crispin – Bem-vindo à tripulação, eu acho. De onde é, rapaz?

— Moro em Saltvik, senhor, no Reino das Luzes.

— Do Norte então. Bom lugar, conde terrível.

— Eu sei bem, senhor. Ele é meu padrasto.

— Puxa vida, mas que sorte a sua! – Tilda disse, acenando com a cabeça – Passem esse pergaminho para cá.

Aisling lhe entregou o pergaminho. Tilda e Narciso se aproximaram e desdobraram o papel. A mensagem era:

“Queridos Narciso e Mathilda,

Vocês são de longe meus capitães preferidos. Eu estive vigiando sua tripulação durante meus sonhos, em visitas astrais, e vejo que sua missão está sendo um sucesso. Os jovens recrutados estão satisfeitos e felizes, e as ilhas que vocês exploraram trouxeram boas aprendizagens para todos.

Infelizmente, nem todos os outros capitães que se juntaram a mim nesta missão foram tão sortudos quanto vocês. Capitão Lothbrok, que se encarregou das terras do Norte, trouxe como recrutado um jovem chamado Crispin Castiblanco. Ele é o filho bastardo de Florencia Castiblanco, a famosa general do Norte de Laecia. Como sua mãe é casada com o conde de Saltvik, ele cresceu lá, mas tratado como uma aberração.

Crispin não é bem quisto na região, e o navio de exploração no qual embarcou está cheio de gente de Saltvik. O garoto não está sendo bem tratado, assim como era maltratado no condado. Tive a permissão de seus pais e eu agora vou trazê-lo para o Refúgio. Para mim, ele tem fortes indícios ser aquilo que eu mais estava buscando com esta missão de exploração: um poderoso bruxo nascido humano.

Não tenho certeza disso ainda, e ninguém mais sabe além de vocês dois e a mãe dele. Peço que acolham este menino no Bela Dona e o tragam para cá o mais rápido possível. Muitos podem se interessar em seus poderes escondidos – até mesmo seus anfitriões.

Com carinho,

Yltaris”

Os dois capitães se entreolharam por alguns segundos, sem saber como reagir, mas concordando silenciosamente em não dizer uma palavra sobre a mensagem aos druidas, e levar Crispin para o navio o mais cedo possível.

— Sinto muito que tenha tido uma vida difícil, garoto – Tilda finalmente disse, quebrando o silêncio – Terá um bom lugar para morar no Refúgio, e será tratado como família. Faremos o mesmo no Bela Dona.

— Muito obrigado, senhora – agradeceu o menino, com timidez.

— Busque suas malas, Crispin. Você é nosso, agora – Narciso anunciou.

Ele e Tilda tentaram parecer animados, mas a apreensão em seus rostos ainda era perceptível. Aquele garoto era a carga mais preciosa que já tiveram em suas vidas.

***

Crispin foi rapidamente mandado para o navio. Muitos viraram para encará-lo com surpresa e curiosidade quando chegou – especialmente graças à estranha marca que tinha em seu pescoço - mas ninguém teve coragem de ir falar com o recém-chegado de olhar assustado.

Ninguém além de Nanna, é claro.

— Você é um druida? – perguntou a menina, seguindo-o silenciosamente até o quarto dos meninos, onde Crispin estava indo arrumar uma rede para si.

— Não, eu só fui acolhido aqui. Sou humano.

— Ah, legal! Eu também sou, me chamo Nanna. Tenho bons amigos aqui, eles podem te ajudar a se enturmar.

— Obrigado. Minha antiga tripulação não foi muito gentil comigo, então isso seria ótimo.

Crispin se sentou na primeira rede vazia que encontrou, e largou suas malas ao seu lado. Hugo, Sébastien e Alma, que estavam ali por perto, notaram a chegada do estranho e da amiga, então foram atrás deles. Dot, que dormia na rede ao lado deles, abriu um olho, com curiosidade.

— Esses são meus amigos. Pessoal, esse é o recém-chegado! – Nanna disse, apontando para o rapaz – Eu...esqueci de perguntar seu nome, desculpe.

As apresentações foram feitas por Hugo, que citou o nome de todos e apresentou Alma como “nossa amiga esquisita”. Depois de levar um tapa no braço, o rapaz começou a puxar assunto com Crispin, tentando deixá-lo mais à vontade. O recém-chegado parecia extremamente nervoso ao falar, como se tivesse medo deles. Dot silenciosamente se juntou ao grupo, sentando ao lado de Alma e apoiando a cabeça na irmã, ainda sonolento. Ele não dizia nada, apenas olhava para Crispin de vez em quando e resmungava. Os dois tinham idades próximas.

Depois de alguns minutos de conversa, Nanna e Alma foram chamadas para seus deveres do dia – ajudar na preparação do almoço.

Enquanto subiam as escadas, Alma cochichou:

— Nanna, você notou que Hugo e Sébastien estão bem próximos esses dias?

— Do que está falando?

— Eu não sei. Desde Tepes parece que eles estão o tempo todo juntos.

— Isso deve ser impressão sua, Alma. Eles são amigos, isso é normal, não é?

— Pode ser. Mas eu acho que os dois estão namorando em segredo.

Nanna parou de andar se supetão, e Alma trombou nela. A menina mais nova parecia estar calculando e reavaliando todos os últimos momentos que passara com os dois rapazes e pensando em uma resposta para a fala de Alma.

— Fala sério, Nanna. Faria sentido!

— Você está louca, Alma. Eles são amigos, é tudo.

Alma cruzou os braços e bufou. Nanna ainda estava em negação. Ela adorava Sébastien, ele era muito gentil e inteligente, mas a ideia de Hugo estar apaixonado por alguém deixava Nanna com uma sensação estranha, uma espécie de aperto no coração e frio na barriga ao mesmo tempo. Ela não fazia ideia do que era aquilo e começou a se perguntar se estava doente.

***

De noite, foi permitido que os tripulantes do Bela Dona visitassem a cidade flutuante, depois que todas as tarefas do navio foram cumpridas. Nanna foi a primeira a pular e desembarcar, sendo seguida por Hugo, Sébastien, Alma, Dot e Crispin logo em seguida.

Eles seguiram a passarela de madeira e foram até o centro de Murmus, onde pequenos restaurantes e feiras funcionavam, iluminados por velas e pela noite cintilante ao seu redor. Um grande jardim formava uma praça, e várias crianças e adolescentes brincavam por lá.

As flores brilhavam no escuro em tons de azul pálido, branco e amarelo. Murmus era uma cidade fria, e os tripulantes do Bela Dona haviam se agasalhado com todas as roupas que tinham, enquanto os druidas usavam vestidos e camisas abertas.

Os adolescentes se sentaram na amurada que cercava uma pequena fonte. Alma e Nanna ficaram juntinhas para tentar se aquecer através de contato físico.

— Esse lugar me dá vertigem - disse Alma – Não tenho medo de altura, mas olhar lá para baixo me dá nos nervos. É muito embaixo.

— Querida, acho que essa é a definição de medo de altura – Dot disse, rindo – Acho que alguém está em negação de suas fobias.

— Não é medo de altura, Dot, é totalmente diferente.

— Aham. Como quiser. Nanna, concorda comigo que a Alma está em negação?

— Nah – a menina disse – Eu entendi o que ela quis dizer.

— Está vendo? – Alma mostrou a língua para seu irmão – Uma criança de treze anos me entendeu e você não.

— Ela só está falando isso para te apoiar, é favoritismo! – protestou Dot. Ele colocou a mão no ombro de Crispin e disse: – Aposto que nosso novo amigo concorda com isso.

— Eu não vou me meter na briga! – respondeu o rapaz, erguendo as mãos para se livrar de qualquer culpa – O que vocês me dizem, Hugo e Sébastien?

Todos se viraram para o lobisomem, aguardando uma resposta. Ele não estava prestando atenção no que acontecia e disparou:

— Ei, será que a água da chuva é na verdade a água que cai de cidades como essa? – Hugo perguntou, distraído.

— Ah meus deuses – Bastien grunhiu e tampou a boca de Hugo com sua mão – Ignorem meu amigo, ele é retardado. E se quiserem saber, eu entendi o que a Alma quis dizer. A vertigem dela não tem a ver com o medo de cair. Não é fobia de altura, e sim uma resposta biológica à estímulos externos.

— Exato! – Alma exclamou, apontando para o amigo em concordância – Você é um gênio, Bastien.

— Você parece meu tio falando – Crispin comentou – Não entendemos metade do que ele diz, mas parece inteligente.

— Parece que fui derrotado, então – Dot bufou – Ei, Alma. Isso é uma resposta biológica à estímulos externos?

Dot se abaixou e começou a fazer cócegas na barriga da irmã, que deu gritinhos e pediu para que ele parasse. Alma involuntariamente empurrou Nanna, que escorregou para trás. Ela teria caído na fonte, mas assim que suas mãos tocaram a superfície gelada da água, o líquido se afastou dela, e Nanna tocou no azulejo do fundo, seco.

— Meus deuses, o que foi isso?— Dot perguntou – Nanna, foi você?

— N-não – a menina murmurou, enquanto Hugo a ajudava a se levantar de novo – Eu não fiz nada. Estava com medo de me molhar e ficar doente por causa do frio...

— A água desviou de você – Alma murmurou.

Todos ficaram em silêncio. Nanna estava ofegante, assustada com o que acabara de acontecer.

— Bem, isso foi estranho – Crispin murmurou.

Ninguém além deles pareceu notar o acontecido. Nanna começou a gaguejar, tentando se explicar, jurando que não tinha feito nada. Hugo a abraçou e disse que estava tudo bem.

— Ela é uma druida também, não é?

Um rapaz de Murmus estava parado ao lado do grupo, apontando para Nanna. Ele tinha a pele alaranjada e cabelos vermelhos.

— O que disse? – perguntou Sébastien, se colocando entre o druida e Hugo.

— A menina. Ela claramente controlou a água da fonte. Só druidas têm esse tipo de poder sobre a natureza – respondeu ele.

— Eu não sou uma druida – Nanna respondeu, assustada – Eu sou humana, de Ethea.

— Bem, então parece que você repele água, porque não vejo outra explicação.

— Se ela está dizendo que não é druida, ela não é druida – Dot respondeu, um tanto irritado – Deixe-nos em paz, cara.

— Só estava constatando o óbvio – murmurou o rapaz – Se eu fosse você, garota, buscaria saber a verdade.

— Não acho que ela precise de seus conselhos, seja lá quem você for – Hugo respondeu, igualmente ríspido.

— Meu nome é Fáelán. E a garota deveria falar por si mesma.

Todos olharam para Nanna. Ela aproveitou mais alguns gloriosos segundos de seu abraço com Hugo e depois se colocou de pé, parando de frente com Fáelán.

— Você disse ser de Ethea – disse o rapaz – E não tem druidas em Ethea?

— Não. Morei lá minha vida inteira e nunca vi nenhum.

— E sua mãe? Druidas costumam passar seus genes e poderes pelo lado materno.

— Eu...não tenho mãe – Nanna respondeu, hesitante – Eu tenho dois pais.

— Ah, você é adotada, então.

— Sou. O avô de um de meus pais era druida, mas isso não passou para ele...

— Isso não importa – Fáelan interrompeu, gesticulando – Seus pais biológicos. Quem eram eles?

Nanna ficou calada por alguns instantes. Orion e Eli eram seus pais, e ponto final. Ela sabia que era adotada, é claro, afinal os dois eram homens, mas nunca pensou em quem eram seus outros pais.

— Eu não sei – murmurou a menina – Eu nunca perguntei.

— Sabe de onde seus pais eram?

— Eu já disse que meus pais não são druidas.

— Não esses pais, quero saber dos seus pais de verdade.

— Eles são meus pais de verdade.

— Bom, você é uma druida e eles não – Fáelán repetiu devagar, como se estivesse explicando algo para uma criança – Não sei você, mas algo parece errado aí. Como podem ser seus pais de verdade?

— Você está sendo simplesmente grosseiro – Alma disse, se levantando e parando atrás de Nanna – Eu e meu irmão temos duas mães. Elas são nossa família de verdade. Não importa que raças compõem os integrantes dela.

— Só estou dizendo que, pela lógica, você tem que ser da mesma raça que seus pais. É assim que funciona com as famílias normais.

O olhar de fúria de Nanna era o mais ameaçador que uma garota de treze anos conseguiria produzir.  Fáelán não a levou a sério e isso foi um erro.

No segundo seguinte, o punho de Nanna estava no rosto do druida.

Alma e Sébastien foram os primeiros a reagir, puxando a amiga para trás pelos ombros e se colocando entre ela e Fáelán. Hugo e Dot começaram a rir, e até mesmo Crispin sorriu.

Alguns outros druidas olharam para a cena, alguns chocados, e começaram a sussurrar. Nanna se sentiu um pouco envergonhada, mas não muito. Sua mão doía e o nariz de Fáelán estava sangrando.

— Eu estava tentando ajudar – resmungou o druida, cobrindo o nariz com as mãos – Mas acho que você tem a cabeça dura demais para entender, como todos os druidas da água. Aberração.

Então ele se afastou, caminhando com o peito estufado e as roupas esvoaçando com a brisa. Nanna bufou e revirou os olhos, irritada.

— Eu vou socar ele de novo – ela disse, pisando com força no chão.

— Calma aí, baixinha – Dot respondeu, colocando as mãos no ombro dela – Não queremos arrumar confusão aqui. Mas devo admitir que você fez bem.

— Aquele babaca merecia mais – Sébastien concordou.

— Na próxima vez, Nanna, chute onde dói. Socos no rosto são elegantes e humilhantes – Hugo disse – Mas um bom pontapé no meio das pernas vai ensinar ele a não ser grosseiro.

— Violência não é a resposta – Alma protestou, cruzando os braços – Não ouça eles.

— Vocês poderiam parar de me falar o que fazer, por favor? – a menina pediu, com ar cansado.

Ela se sentou no chão, e cobriu o rosto com as mãos. Sentiu seu rosto ficar quente e lágrimas escorreram. Não sabia dizer se eram de raiva ou mágoa, ou uma mistura dos dois. Seus amigos murmuraram desculpas e ficaram se entreolhando, tentando pensar no que fazer. Crispin foi quem agiu. Ele sentou-se ao lado de Nanna.

— Sinto muito por você ter que ouvir aquilo, Nanna. Pessoas podem ser horríveis às vezes – disse ele, simplesmente – Não dê ouvidos ao que ele falou. Sua família é sua família, e nada pode mudar isso.

— Obrigada.

Alma segurou a mão de seu irmão. Ambos sabiam o que era ter a família questionada, mas já eram experientes o suficiente para não se importar. Dot sorriu para Crispin, sentindo surgir certo carinho pelo novo tripulante.

— Isso tudo porque os druidas deveriam ser pacíficos— Hugo comentou – Bela reputação.

— Bom, para sermos justos, eu soquei ele – Nanna murmurou.

— Violência não é só física, mas também verbal – Sébastien disse – Muitas vezes a força das palavras é pior que a dos punhos.

— Ah, cala a boca, Bastien. Você fica decorando essas frases feitas no seu tempo livre? - Hugo revirou os olhos.

Isso conseguiu arrancar uma risada de Nanna. Crispin se levantou e ela o seguiu, limpando as lágrimas com as costas da mão.

— Vamos voltar para o Bela Dona – Alma disse – Acho que já tivemos contato demais com esses druidas.


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Notas finais do capítulo

Holy plot twists! Nanna é uma druida? Será? Serááá??
Logo saberão mais.



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