Hearts Of Sapphire escrita por Emmy Alden


Capítulo 33
¨t h i r t y - t w o¨


Notas iniciais do capítulo

mais um capítulo! E não esqueçam de comentar oq estão achando é mto importante pra mim!



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Era um dia de merda.

Estar familiarizada com velórios não queria dizer que fazia com que o processo se tornasse melhor.

Principalmente se o dia era chuvoso.

As gotas gordas e geladas caíam em todos os cantos produzindo um barulho constante como a batida de um coração saudável.

Em cima da madeira que cobria o defunto.

Pinga pinga pinga.

Sobre os poucos guarda-chuvas que protegia algumas cabeças mais afortunadas.

Pinga pinga pinga.

Por cima do discurso do líder da cerimônia.

Pinga pinga pinga.

E o mais irritante: no seu couro cabeludo. O que fazia com

que sua cabeça ficasse pesada, seu vestido grudasse no corpo, e seu rosto parecesse coberto de lágrimas.

Aquela última parte não era tão ruim.

Estava tão acostumada com enterros que o choro simplesmente não vinha mais.

Lembrava das primeiras cerimônias que participara, lembrava da sensação de soluçar incontrolavelmente.

Lembrava de ter suas lamúrias disputando com a voz do líder de cerimônias.

Mas nos últimos anos, nada.

Nem uma lágrima sequer. Nem um estremecer de ombros.

 

Nem um soluço teimando a escapar dos seus lábios.

Gostava de pensar que estava, enfim, ficando forte, mas talvez estivesse apenas se tornando insensível. Quebrada demais até para chorar.

A menina apenas olhava para frente, para um ponto específico sem realmente enxergá-lo.

Perguntava a si mesma se choraria quando seus pais partissem.

O inverno era quando as pessoas mais morriam, mas aquele inverno específico estava sendo o pior de todos.

Callandrea era bem relacionada com o povo de Fortuna, mas apesar disso, não conhecia "todo" mundo para que presenciasse todos os enterros. A menina agradecia aos Céus por isso.

Bastava apenas ouvir sobre a morte de alguém e seu estômago já embrulhava.

Diferente do que ouvira sobre outros vilarejos que eram separados por cidades, grupos, bairros, Fortuna era uma comunidade só; grande parte do vilarejo era preenchida por florestas e o espaço restante servia de "cidade" para pequena civilização. Logo, era muito difícil alguém não ficar sabendo de algo.

“Do pó veio e para o pó voltará. O seu coração cessara de ecoar, mas que suas boas obras continuem ecoando no coração do que os que o conheceram e ainda vivem.

Callandrea murmurava as palavras que eram recitadas sempre pelo líder de cerimônia—  geralmente era um posto ocupado parente ou a pessoa mais velha da família, ou às vezes até um amigo próximo.

Quando seus pais morressem, seria a tarefa de Kallien recitar o discurso, mas seu irmão não estava ali.

Não tinha certeza se seu irmão sequer voltaria e aquilo a matava mais do que qualquer tudo.

Não sabia se Corinna voltaria —se acontecesse algo com Evian, e Corinna se fosse, ela teria de recitar as palavras.

Não estava certa de que seria forte o suficiente.

Sentiu um aperto na mão esquerda, a irmã do seu mais recente e já falecido marido, se lamentava o suficiente pelas duas.

O senhor Valmet era um amigo de sua família. Um homem bom, assim como todos com quem se casara nos últimos anos.

 

Todos gostavam dela e a tratavam como uma filha, com todo o respeito do mundo e sem pedir nada em troca além do gerenciamento da casa. Estavam velhos demais, doentes demais e não queriam passar os últimos dias de sua vida em casa sozinhos. Casar-se com Callandrea apenas por convenção, para que a menina não precisasse ser submetida ao Sacrifício, era a última —às vezes, a única— demonstração de rebelião que se permitiam fazer contra o governo.

Quando era mais nova não gostava de pensar assim, rebelião era desordem, pecado, preferia pensar que eles faziam aquilo só por compaixão a ela.

No momento atual, no entanto, a garota gostava de pensar que era uma pequena desculpa para uma pequena libertação e revolta pessoal.

No princípio, quando um deles morria, ela ficava triste, mas aliviada —entraria no luto cedo e cedo sairia. Poderia logo usar seus vestidos vibrantes novamente e receber flertes de rapazes que ela nunca corresponderia.

Amava a vida, amava viver, ainda que fosse aquela vida miserável que subjugava os humanos, como se eles fossem nada mais nada menos que vermes que — já que  não poderiam ser totalmente exterminados, então — deveriam ser controlados.

“Que agora nossos superiores, ajudem a guiar o seu caminho para a terra prometida aos que praticam boas obras enquanto com vida e seguem as leis. Que seja recompensado no outro plano regido pela paz e calmaria.”

Era a parte que ela mais sentia nojo de todo o evento. Os dois deorum de cara amarrada, e sem ligação nenhuma com o falecido, se aproximavam do corpo e apoiavam as mãos na superfície que o cobria deixando que filetes de magia colorida (desta vez eram vermelha e prata) fluíssem de seus dedos inundando o interior do caixote.

Quando era pequena, acreditava que aquilo era real. Que, apesar de serem ruins durante toda a vida dos humanos, os deorum os concediam aquele único presente no fim da vida dos humanos.

A honra de ser transladado para um além-mundo sem dor e sem sofrimento.

Foi em um enterro depois de sua primeira Audição que

 

Callandrea descobrira que era só uma encenação. O corpo murcho, frio e cinza continuava enclausurado ali dentro do caixote, até depois que fosse coberto de terra. Até que se descompusesse a sete palmos. Até que os bichos roessem o que restasse, deixando os ossos como lembrança, como recordação de que aquela pessoa já teve um corpo, uma vida, uma alma...

Não existia além-mundo para ela. Se existia seria o mesmo mundo de sofrimento, lamúria, miséria e subjugação.

Se existia um lugar de calmaria para os humanos e se os deorum tinham conhecimento, eles fariam de tudo para destruir. Era só isso que os "deuses vivos" sabiam fazer.

 

Destruir.

Callandrea sentiu Ailani, noiva de Kallien, apertar sua mão direita uma e duas vezes. Era um sinal entre as duas.

Tinham se tornado bem próximas desde a partida de seu irmão para o Sacrifício. Consolara a futura cunhada quando ela chorara por Kallien, espantava seus pesadelos à noite agora que Ailani se mudara para a casa dos Steros onde a senhora sua mãe requisitava a presença de Callandrea sempre que podia. Para preencher um pouco o vazio da casa, ela alegava.

Ailani tinha um sentimento pelo seu irmão que Callandrea não esperava. Achava que ela só estava tentando se livrar do Sacrifício, mas não era apenas isso. Amava-o desde criança, dissera Ailani certa vez. E agora estava começando a amá-la também, revelou enquanto dividiam a cama se abraçando no frio.

Callandrea ficou alerta.

—Por que três?— a menina sabia muito bem sobre o que a cunhada falava. Percebera no mesmo instante que as palavras saíram da boca de Ailani.

Os velórios tinham sempre a presença de dois deorum, sem exceção. Porém, naquele dia, havia três.

Um deles não estava nem um pouco interessado em guiar o senhor Valmet para a terra prometida.

O homem alto e robusto como uma porta estava um pouco atrás do líder de cerimônia, meio escondido nas sombras de algumas árvores.

—Não sei.— Callandrea sussurrou enquanto ainda observava o homem atento a cada um dos presentes no enterro.

Discretamente, ela seguia o seu olhar feroz pousando em cada uma das garotas presentes. Suas íris tinham cores contrastantes que, da distância onde a jovem estava, pareciam um arco-íris tenebroso.

Sentiu uma raiva surgindo no seu âmago e seus pensamentos flutuaram para Corinna.

Lembrava da rispidez com que falava dos deorum, com a repulsa que sentia por eles e pelo o que eles representavam, a vontade de se opôr àquele sistema ridículo.

Também se recordava de como ia contra a melhor amiga.

 

Como mandava que Corinna falasse mas baixo ou cutucava sua costela em reprovação ou beliscava a parte interna de seu braço enquanto andavam pelo vilarejo ou até mesmo quando revirava os olhos fazendo com que a garota calasse a boca e ficasse com um olhar intenso guardando sua revolta dentro de si.

Era estranho admitir, mas a cada dia sentia entender mais Corinna.

Desde o momento em que soubera da notícia dos assassinatos, desde que mais e mais garotas estavam desaparecendo — agora não só do mesmo biotipo da sua amiga— ou sendo encontradas sangrando em algum rio.

Corpos que nunca mais voltavam a aparecer para um velório decente, corpos que apareciam mutilados, desfigurados.

Garotas que voltavam violadas, marcadas para sempre, traumatizadas. Desde tudo isso, Callandrea começava a sentir como se não só um véu de cegueira se erguesse de sua mente, mas como se a realidade fosse esfregada em seu rosto.

 

Começara a ver as coisas com um olhar diferente, na verdade, quando viu o pai de Corinna, Evian, ser chicoteado publicamente. Quando a amiga gritara com uma dor tão profunda. Quando Corinna fora arrastada para a Maré de Azar.

Aquilo não era justiça. Aquilo era punição deliberada.

E, de certa forma, Corinna já via, sentia, farejava tudo aquilo.

 

Toda aquela podridão. Todos aqueles motivos para que a vontade de se rebelar crescesse no peito sufocando a ordem de abaixar a cabeça e obedecer.

Callandrea só percebera agora. Só então, sabia que Corinna estava certa, no seu modo de agir, de pensar. Sempre esteve certa.

 

E agora estava no Setor Superior, lutando, a sua maneira, pelo que acreditava. Talvez, Callandrea nunca mais tivesse a chance de olhar nos olhos azuis expressivos da menina e dizer: "Me perdoe, eu era cega. Me perdoe por não querer lutar ao seu lado. Me perdoe. Me perdoe."

Talvez da próxima vez que ela visse sua melhor amiga,  

 

Corinna estaria num caixote como aquele a poucos metros, os olhos desfocados, o corpo massacrado. Murcha, fria, cinza.

Callandrea nunca se perdoaria.

Então, como garantia, ela se rebelava da maneira que podia.

Não era Corinna. Não era ágil nem esperta demais, contudo, se recusava a viver com medo.

Amava a vida. Amava viver.

Mas não viveria com medo.

 

Não sabia como descobriram sobre Corinna.


Na verdade, sobre os dois.


Era mais uma noite aquecendo os lençóis de Rexta e mais uma noite de interrogatórios sutis velados com uma falsa curiosidade.


A mulher estava nua dentro de uma camisola de cetim vermelha. O tecido quase transparente grudava nos lugares certos de sua pele e seus cabelos louros dourados como ouro derretido caíam em seu rosto enquanto a Governante inclinava a cabeça e circundava, com a unha do dedo indicador, a boca da taça quase vazia de vinho.


Rexta era a Simpatizante de alguns dos rapazes mais ferozes de todo o Sacrifício. Um bom número ainda estava em vantagem ou já estava classificado para a segunda etapa.


Não sabia se era efeito colateral do Sacrifício, mas Kallien se sentia menos como si mesmo a cada dia que passava, a cada noite que se deitava com Rexta.


Não que ela fosse desagradável; a mulher realmente era uma beldade — uma deusa — e sabia de uma maneira desconfortante e íntima como satisfazê-lo ao máximo.


Entretanto, cada vez que seus corpos estavam colados, cada vez que estava dentro dela, era como se sua alma se dividisse em duas.


Um Kallien parecia assistir àquilo, como de uma janela.

Aquele Kallien nunca se satisfazia, não completamente. Na verdade, era como se sentisse nojo de si mesmo; muitas vezes, assumia outro rosto, um rosto que ele sabia onde ficava cada marca, cada sarda, cada pinta.


Corinna. Com uma expressão tão enojada como se fosse a dele próprio.


Apesar disso, havia a outra parte, o outro Kallien. O que agia precisamente e com força. O que dava e esperava receber na mesma medida. O que se deliciava e se movia quase como um alucinado.


O que sempre queria mais. Egoísta. Mesquinho. O que olhava para o rosto do primeiro Kallien (ou para a visão fantasmagórica de Corinna) e dava de ombros, não se importava com pudores ou honra ou sentimentos. Apenas se importava com a sensação poderosa que sentia naquela cama.


Era quase como se estivesse sendo envenenado.


De uma maneira boa.


Se é que algo do tipo era possível.


Depois de um tempo, o Kallien descontente começava a sumir, a visão de uma Corinna ultrajada, e até mesmo magoada, começava a borrar.


E o que restava era o outro. O novo Kallien.


As perguntas de Rexta ainda continuavam e se intensificaram depois do confronto de Corinna com a menina de Amara.


"Não há nada de errado com ela?"

 

"Ela sempre agiu assim tão impulsiva?"

 

“Ela parece meio violenta."


"Não, não há nada de errado com ela."

 

"Ela é uma caçadora, só isso."

 

"Corinna nunca machucaria alguém de maneira brutal."


Essas eram algumas das questões e algumas das respostas automáticas que oferecia, mas no fundo ele conhecia Corinna bem demais para saber que algo tinha mudado profundamente na menina.


Algo estava errado. Corinna nunca foi nenhum pouco impulsiva, ela sempre analisava a situação.


E aquele olhar minutos antes de ela poupar a vida da oponente? Kallien não tinha mais certeza se não havia uma possibilidade de Corinna realmente dilacerar o pescoço da menina bem ali.


Entretanto, o fato mais impressionante era que Corinna nunca corria.


Não era do seu feitio correr.


Não era do seu feitio fugir.


E ela fizera aquilo.


Então, sim, algo estava muito errado.


Mas por algum motivo, não iria dizer isso à Rexta.


Além disso, não era como se Kallien estivesse em condições de julgar — a cada dia se afastava do garoto que chegara ali.
—Posso tomar conta da sua...amiga, sabe?— voz de Rexta era suave como a brisa que entrava da grande janela de seu quarto. —Só preciso que faça algo para mim.


Kallien piscou e se sentou na cama, os lençóis macios cobrindo sua nudez.


Imagens da expressão de horror no rosto de Corinna, quando ela se dera conta do que estava prestes a fazer naquele confronto, inundaram sua mente. Corinna tomando a decisão ainda que um pouco desnorteada, Corinna correndo de volta para o Galpão.

 

Todos observando. Todos atentos.

 

Correndo como se fugisse de si mesma. Do seu próprio corpo.


Algo errado. Errado. Errado. Muito errado.


Antes que pudesse ponderar já estava concordando com a Governante antes mesmo de saber o que ela queria em troca.
Um sorriso cresceu no canto do lábio da Senhora Rubi e Kallien percebeu o erro de cometera.


Nem o novo Kallien fora capaz de esconder a profundidade dos seus sentimentos por Corinna. O quanto se importava com a garota.


A Senhora das Chamas pareceu sentir o aumento da tensão em seus ombros pois se levantou e caminhou de volta até a cama, seus seios oscilando provocativamente durante todo o percurso.

 

Intencionalmente. Para excitá-lo. Para relaxá-lo.


Tudo que ela fazia era pensado, era uma das coisas que admirava na Governante: o modo como ela sempre conseguia o que queria apenas por agir da maneira que precisava. Da maneira certa para obter a reação desejada.


Por um momento, lembrou de Corinna nos fundos do casebre. Nua em suas mãos. Ela não precisava pensar em como agir para obter uma resposta dele. Era automático.


Quando sentiu Rexta sobre sua rigidez ainda pensava na garota que prometeu há muito tempo proteger, a todo custo, de tudo.


—Não se preocupe. —Rexta pediu enquanto tirava os fios de cabelo do rosto de Kallien, parando os dedos em seu queixo. — Não precisará fazer nada que vá lhe aborrecer. Pelo contrário, acho que vai gostar muito do processo.


A Senhora Rubi se esfregou contra ele. Kallien fechou os olhos.


Não por causa dela, mas porque queria segurar a lembrança da outra mulher que esteve em seus braços.


Por incrível que pareça, dessa vez, o Kallien antigo cuidava da parte sensorial. Fazia com que ele imaginasse outra pessoa em seus braços, outra pessoa se movimentando contra ele, gemendo aos seus ouvidos. Já o Kallien mais atual parecia cuidar da parte racional enquanto as dúvidas preenchiam sua mente.


Deveria voltar a atrás? Recusar a ajuda oferecida à Corinna?


Não.


Não sabia se a cama de Rexta fizera aquele processo se intensificar, mas era um homem agora.


Um homem feito.


Não voltaria atrás.


Continuaria com a promessa de proteger Corinna.


Ganharia aquele Sacrifício. E eles voltariam para casa juntos.

E ele consertaria as coisas. E, se tudo desse certo, a teria, nem que fosse pela última vez, em seus braços novamente. Como antes.



Como voltariam a antes se não eram mais os mesmos?


Kallien pensaria naquilo depois.



❖  

A menina pegou o caminho mais longo com Ailani ao seu lado.


Ailani tinha um jeito incomum de entender o que Callandrea queria fazer antes que precisasse dizer alguma coisa.


A cerimônia tinha acabado há alguns minutos e, no momento, as meninas seguiam discretamente o rastro do terceiro deorum que viram vigiando o enterro.


Ele era um homem pesado e não parecia se incomodar em ser sutil nas marcações de onde passava.


Porém, qual era o ponto de esconder seus passos? Que humano idiota se colocaria na posição de enfrentar um deorum?


Callandrea acreditava que aquela era uma das piores e maiores falhas deles.


Não esperar o desafio de alguém inferior.


Tinha de admitir que poderia estar muito bem levando ambas para uma armadilha —além dos deorum serem seguros de si, eles conseguiam manter bem a característica inescrupulosa ao levar os humanos para situações planejadas por eles, sem que as vítimas se dessem conta de que tudo fora previamente arquitetado.


Poderia estar a poucos passos da morte e levando Ailani junto. Embora, além de ser tarde para refletir sobre aquilo,  imaginava que nem se pedisse de joelhos a garota a deixaria seguir sozinha.


Estavam nessa juntas.


Todas as garotas do vilarejo estavam.


Talvez todas as garotas humanas de Excelsior.


Cansadas de estarem sendo assassinadas, massacradas e abusadas sem motivo aparente.


Nunca se dera o trabalho de aprender a caminhada silenciosa que Corinna tentara ensinar um dia, mas fazia o possível para não chamar muita atenção.


Andavam na primeira fileira de árvores que envolvia o vilarejo. Perto o suficiente para ver a população se mover, imersa em seus afazeres, e escondidas o suficiente para que não fossem visualizadas por quem estava de fora, a menos que chegassem perto.


Aproximavam-se cada vez mais do sul da comunidade, as árvores eram mais altas e mais velhas. Tinham troncos mais grossos e folhas mais resistentes.


Os pés de Callandrea pararam no meio de um passo quando ouviu um choro baixinho.


— P-por...favor. Eu não sabia que...— era uma jovem voz feminina. Ailani levou a mão até a boca em choque.


— É sempre divertido quando vocês imploram. — o som sussurrado, rude e malicioso, só poderia pertencer àquele terceiro deorum. —Mas preciso que admita seus pecados, gracinha.


— Eu n-não estou mentindo. Sou humana, vê? — um instante de silêncio e Callandrea se viu caminhando para mais perto da pequena casa de madeira apodrecida que mal se mantinha em pé.


Geralmente aqueles cubículos eram usados de depósitos coletivos ou — como suspeitava de ser a razão para a menina estar ali em apuros — ponto de encontro entre os jovens.


—Se quiser, volte agora. Eu seguirei em frente. — sussurrou para Ailani que abriu os olhos quase como se estivesse ultrajada com a sugestão.


—Vim até aqui, não vou dá para trás agora, Andrea.


Callandrea apenas assentiu resignada com a cabeça. Era a resposta que já esperava de qualquer forma.


—Olhos são fáceis de camuflar. Isso não significa nada, principalmente para aberrações como você.


Aberrações?

 

Callandrea já havia escutado vários tipos de insulto contra o seu povo, os mais recorrentes sendo: impuros, inferiores...

 

Mas aberração?


—Por favor, eu não sei do que está falando... Não me mate. Faço o que quiser, mas não tire minha vida.— o toque de desespero na garota era desconcertante.


Pelo riso que o monstro soltara, Callandrea soube que poupar a vida da garota não estava em questão.


—Infelizmente, minha missão é tirar a sua vida. E ainda que você não seja quem procuro, fazer isso é o único jeito de descobrir, entende, docinho? — apesar de dar a entender como se ele apenas estivesse cumprindo uma ordem, sua voz era maldosa e cruel, como se o deorum fosse aproveitar cada minuto da missão.


— Isso seria mais rápido se você admitisse de uma vez quem é, logo eu acabaria com você de uma vez. Se insistir em negar, eu terei que me certificar que o que você fala é verdade e acredite em mim quando digo que o processo é doloroso e lento.


A menina agora chorava audivelmente. Um coro de "Não, não, não" entre os soluços.


Callandrea se aproximou até chegar a uma pequena janela precária, embaçada pela sujeira e pela poeira, mas ainda assim sentiu seu coração bater forte no corpo quando viu —entre as prateleiras cheias na frente da janela —  a menina de costas para si, ajoelhada no chão, o vestido simples em frangalhos.


Se não tivesse visto com os próprios olhos Corinna ir para o Setor Superior, Callandrea poderia muito bem acreditar que ali no chão era sua melhor amiga a poucos minutos da morte.


Lentamente, passou os dedos sobre a superfície suja a fim de enxergar melhor.


Claro que as características eram bem gerais. A cor do cabelo era a mesma, mas o comprimento era um pouco menor. A cor da pele era alguns tons mais pálidos do que a de Corinna e certamente aquela infeliz moça era uns bons centímetros mais baixa que Corinna.


Ainda assim, Callandrea conseguia entender o padrão.
O deorum disse que estava numa missão de matá-la. Ou seja, os assassinatos não estavam sendo aleatórios, pelo menos não a maioria deles.


"Sou humana, vê?" a garota choramingou. O que quer estivessem procurando não era exatamente humano. Um deorum vivendo em segredo, então?


Por que um deorum escolheria viver entre os humanos?


"Terei que me certificar que o que você fala é verdade." Eles não sabiam quem ou o que estavam procurando, de fato.


No início, todas as vítimas se assemelhavam a Corinna, o que queria dizer que eles apenas tinham as características gerais.


Quem olhasse para o rosto da neta de Earle— uma das primeiras vítimas de Fortuna—, nunca a relacionaria com Corinna, apesar de terem algumas características em comum.
Estavam realmente caçando alguém.


Um arrepio passou pelo seu corpo.


Se Corinna estivesse ali, ela também estaria na mira?


Seria ela uma vítima ou a vítima em questão?


Não, não. Ela não poderia ser a procurada.


Corinna era completamente humana. Callandrea saberia.


Era filha de Evian e... não, não. Lembrava que Evian não era o pai biológico de Corinna.


Ela era filha da irmã de Evian e... também não. Os únicos Lestat de quem ouvira falar foram Evian e Corinna. Sua amiga não tinha nenhuma tia, ou melhor, mãe conhecida.


Corinna tinha lhe contado sua história, mas não conseguia se lembrar, não prestara atenção.


Seus pensamentos estavam sendo processados rápido demais e ela queria se sentar, recuperar o fôlego.


Nada fazia sentido.


Se Corinna estivesse sendo procurada pelos deorum, eles já a teriam reconhecido quando fora escolhida para o Sacrifício e…


—Não!


O grito de Ailani despertou Callandrea do transe.


Não teve o tempo que precisava para voltar a si e segurar o braço da cunhada até que esta estivesse escacarando uma das portas do depósito.


Merda!


Callandrea correu ao encontro de Ailani, esperando que por algum milagre o deorum não tivesse percebido o rompante.


Mas de nada adiantou esperar. A porta que a menina abrira ficava bem de frente para o assassino.


—Ora, ora. A quem devo a honra de receber mais duas belas donzelas aqui? Querem participar da festa?


Callandrea absorveu a cena tentando engolir a raiva.


O deorum agora tinha a menina — que, como ela suspeitara, tinha feições totalmente diferentes de Corinna— suspensa pelos cabelos enrolados no punho dele, uma faca pressionando uma veia vital contra o pescoço dela.


—Solte-a. — Callandrea se surpreendeu ao ver Ailani rosnar corajosamente para o deorum.


Ele apenas riu, afrouxando um pouco o aperto na vítima.


—Gostei da coragem de vocês e como estou num bom humor, farei uma oferta: vocês me prometem que não vão falar desse encontro para ninguém, eu deixo vocês darem o fora daqui e quem sabe envio até uns presentinhos de gratidão em suas casas.


—Liberte nós três. — Ailani retrucou instantaneamente.


— Infelizmente, essa aqui já está comprometida. — ele roçou a faca na bochecha da menina. — Não posso abrir mão dela.
—Então que tal eu sugerir um outro acordo.— Callandrea mal reconhecia sua própria voz.


Não se importava se estava quebrando alguma das regras sobre os deorum que sua mãe a fizera recitar de cor e salteado.


"Nunca fique sozinha com um deorum se não estiver em uma ocasião formal"


"Nunca os desobedeça."


"Nunca faça acordos"


"Nunca aja com insolência."


"Nunca olhe em seus olhos por muito tempo."


Era tarde demais para ponderar sobre o que não fazer naquele momento.


Seu coração pulsava nas mãos, no pescoço, nas coxas, nos pés.

O rugido do sangue soando como um grito de guerra abafado em seus ouvidos.


De repente, sentiu algo queimar em suas botas. Uma pequena faca que Corinna lhe dera há anos, quando aprendera com o pai como fazer. A primeira que fizera dera à Callandrea de presente. Quer dizer, a primeira que fizera e considerara perfeita.


"É bem bonita." disse meio sem jeito quando sua amiga lhe dera. Uma arma de presente? Só podia ser brincadeira.


"Bela e bem afiada, como você. Ou como você poderia ser, se quisesse." A menina respondeu com um sorriso.


Corinna sempre sabia dizer coisas que te deixavam com a sensação de poder ser invencível.


Talvez fosse algo que impulsionasse até ela própria.


Callandrea nunca fora muito boa com armas, mas, desde que Corinna partiu, costumava guardar aquele presente bem perto de si. Por algum motivo, tinha posto a faca em sua bota naquele dia.


—Você pode deixar todas nós sairmos daqui e como presente — ela falou a palavra no mesmo tom irônico que o deorum usara poucos minutos atrás. — Não vai ter que se mudar o inferno antes da hora.


Sentiu Ailani ficar tensa ao seu lado ainda que um toque de aprovação emanasse da menina.


—Está me ameaçando, humana?— a cólera nos olhos coloridos do deorum só não era mais atraente para Callandrea do que ver ele soltar completamente os cabelos da menina que estava jogada no chão e dar um passo em direção as duas recém-chegadas sem papas na língua.


A vítima se rastejava minimamente para longe enquanto o deorum se aproximava da porta tomado pela raiva.


Outra das maiores falhas dos deorum, era se deixar levar inteiramente pela raiva num piscar de olhos. Eles ficavam literalmente cegos de raiva.


Callandrea reuniu toda a sua coragem para levantar uma sobrancelha em desafio.


Quando o deorum fez com que a porta se fechasse em um gesto de mão e estava pronto para impor toda sua altura e robustez ao se aproximar mais de Callandrea, um baque metálico contra un osso foi ouvido e no meio de um passo o deorum caiu de joelhos no chão, surpreso e atordoado.


A menina indefesa há alguns minutos tinha acertado sua cabeça com uma espécie de pote metálico grande e pesado.


—Sua vadia.— o deorum sibilou levando a mão ao local onde fora atingido e quase se pusera a levantar novamente se não fosse por Ailani se jogando rapidamente sobre suas pernas, derrubando-o e prendendo seus membros inferiores da maneira que conseguia. —Vou matar todas vocês, cadelas.


O deorum tentou virar sua faca para Ailani, mas num movimento rápido, Callandrea chutou sua mão com força e um uivo de dor saiu da boca do infeliz. Logo, a vítima se pusera a agarrar as mãos dele deixando espaço o suficiente para que Callandrea se encaixasse entre as costelas e envolvesse seu pescoço com um braço.


O homem se debatia como um urso enjaulado, mas por alguma bênção, as garotas tinham força o suficiente para segurá-lo.


Callandrea puxou sem delicadeza seus cabelos negros e enrolados para trás a fim de que ele fosse forçado a olhá-la com seus olhos coloridos. Verdes com anéis vermelhos em volta.


—Acho que nunca imaginou que seria rendido por três garotas humanas, não é mesmo, deorum? — apesar da adrenalina correndo em suas veias, Callandrea forçou sua voz a ficar calma e suave como a de uma amante no leito de prazer. A faca que tinha na mão era o presente de Corinna.

Quente e firme contra seus dedos.


Bela e afiada.


Como ela própria.


Se ela se permitisse.


Callandrea roçou a faca nos lábios, no nariz, em volta dos olhos do deorum. Mesmo depois de tantos anos, a lâmina mantivera o fio, tão afiado que os movimentos mais leves deixavam um vergão vermelho — e até tiravam sangue — por onde passava.


O deorum não imploraria, ela sabia disso. Eram orgulhosos a esse ponto. A cólera nos olhos dele ainda tinham a mesma intensidade de antes de ser derrubado.


Ela também não hesitaria.


Ailani pediu para que Callandrea terminasse logo com aquilo pois logo alguém apareceria, mas a jovem não parecia ouvir.


—Não tem coragem suficiente para terminar, gracinha?— o deorum disse entre dentes.


Callandrea riu. De uma maneira como nunca tinha rido antes, sem afrouxar o aperto.


Bela e afiada.


Se ela se permitisse.


—Você ainda nos subestima, docinho. — ela enfiou a faca com um pouco de força na bochecha dele. Líquido vermelho se derramou. —Mas se esquece de uma coisa: vocês ainda são feitos de carne e osso como nós. "Que o osso se quebre e carne se corte, nem deorum nem humanos se livram da morte."


Quando Callandrea terminara o verso, a cantiga de infância teve um tom final adicionado: o som seco da lâmina atravessando carne, osso, veias e nervos até a base.


Então ela girou o objeto.


A imortalidade sagrada do deorum se esvaiu em forma de sangue entre seus dedos.

 

Bela e afiada.


Ela se permitiu.

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Notas finais do capítulo


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