Contos & Outras Histórias escrita por Yasmin


Capítulo 1
1. O Eterno Crocitar do Corvo


Notas iniciais do capítulo

Res: Ao abrir os olhos em meio a uma floresta escura, repousando sobre um monte de folhas secas, alguém teria pensado em correr ou gritar. Porém uma seria uma única voz capaz de fazê-lo parar... E se a voz não passasse de sussurros angelicais? E se, ao segui-los, crocitares horripilantes viessem do alto? Talvez seus próprios olhos pudessem tê-lo enxergado naquele lugar, perdido e sozinho, poderia ser um sonho ou poderia ser a travessia, não haveria como saber! A cada passo o corvo, no alto, crocitava mais e mais forte: a voz angelical ainda implorava para que a seguisse... Eis que se toma consciência sobre os pardais negros e seus ensurdecedores "pips". Eis que caem as folhas das árvores mais próximas. Os sons do corvo e dos pardais não paravam um instante sequer! Aquilo era apavorante: como fosse um mau agouro. Teriam seus próprios olhos te visto naquele lugar? Estaria alguém ouvindo suas súplicas? Estaria alguém pronto a enxugar as lágrimas que escorriam por seu rosto? Eis que os sons do corvo e dos pardais silenciam-se, e, com eles, toda a floresta. Eis que toda a floresta some e a única coisa visível é um breu. Eis que não há mais ar - há apenas uma vertigem e... nada. Eis que se ouvem vozes conhecidas, porém, antes de confortar alguém, a verdade sobre a vida martela em sua cabeça.



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Estava escuro quando abri meus olhos, mas, eu sabia, não era noite. Havia uma camada de folhas secas sob mim e notei, com uma profunda onda de tristeza, que trajava algo que, em condições normais de minha sanidade, jamais trajaria - um vestido formal em demasia para qualquer situação a que pudesse familiarizar-me. Depois de um longo suspiro, pensei ter ouvido uma voz... Específica. A voz da única pessoa que eu por demais ansiava um mero vislumbre, todavia não naquele instante, não naqueles trajes horrivelmente formais, não naquele lugar. A voz continuou a sussurrar enquanto me levantava e enquanto procurava por ela e, principalmente, por quem esse melodioso som pertencesse. Retirei algumas folhas de meus cabelos rebeldes e as joguei na camada de folhas que me servira de ninho. O melodioso som - que eu seguiria até o Hades - ainda implorava que fosse seguido. Mas segui-lo, como constatei ao dar dois passos, seria difícil. Abaixo de meus pés, descansavam altas agulhas que, ao tocarem o solo, fincaram-se à terra podre. Levou um tempo relativamente longo até que percebesse que sentia um formigamento desconfortável em meus pés.

Acima de mim, um corvo crocitava. Abaixo de mim, uma cova sibilava. Sem a certeza que queria ter, libertei meus pés do sapato e das agulhas e me arrependi ao descansá-los nesta terra pútrida - maldita terra que os queimava como se nela houvesse ácido. Tornei os pés às folhas de meu ninho e a dor, de imediato, cessou. O corvo ainda crocitava. Procurando pelo sussurro de súplica, encontrei, em meio aos arbustos mais longínquos, um par de olhos aflitos que me encaravam e que me assustavam. Eu os poderia reconhecer em qualquer lugar que os visse: eram os meus próprios! Eu mesma me encarava com grande - e insuportável - incidência de dor e ceticismo. Pisquei convulsivamente e os enormes olhos longínquos já não mais me encaravam. Tomada por nova determinação e curiosidade, puxei os sapatos que abandonara naquela pútrida terra ácida, violentamente arranquei suas temidas agulhas e os calcei. Relutante, caminhei rumo aos arbustos onde vira meus longínquos olhos. Enquanto andava, a voz doce tornou a sussurrar seu chamado. Eu não poderia, todavia, e como lamentei, segui-la naquele instante; involuntariamente reduzia a distância entre mim e o espaço vazio que servira de pilar aos meus olhos dolorosos.

O corvo ainda crocitava. Meus olhos doloridos piscaram e reapareceram, fazendo-me estancar. Eles se fecharam e jamais tornaram a se abrir. Como eu pediria que um apavorante par de olhos ficasse em um lugar como aquele? Me espantou sentir mãos em minha cintura e, mais ainda, virar-me sem conseguir ver. A voz doce que eu procurava sussurrou e a palavra "corra" era urgente. O corvo crocitava mais forte agora e, nas árvores acima, eu o podia ouvir debater-se furiosamente. Adentramos os arbustos mais distantes e enxerguei a quem a voz doce pertencia. Sussurrei e nossa fuga descomedida cessou. Observei-o virar-se para mim e sorrir, embora seu sorriso fosse tristonho. Mesmo naquele lugar sua expressão se assemelhava à face dos anjos. Seus olhos ainda me hipnotizavam e me lembraram porquê sentia falta deles... Gradativamente, enquanto eu observava, sua pele transluziu até o desaparecimento. Antes que eu pudesse tentar falar ou sussurrar, o corvo, lá trás, crocitava calmo, contudo, temi sua calma repentina, fitei o alto das árvores. Pardais negros - como a morte -, que chiavam pips, apareciam e desapareciam por entre os galhos carregados e derrubavam, graciosamente, suas folhas secas sobre mim. E tão subitamente como começaram a voar, os pardais se aquietaram e encarrapitaram-se nos galhos, agora nus. Ao meu toque, as folhas se quebravam. O corvo crocitava alegremente e sua alegria passou a me assombrar. Adentrei ainda mais a mata fechada, onde o anjo me deixara, enquanto tentava ignorar o abominável crocitar do corvo. Tentei gritar. Tentei chamar pelo anjo. Sussurrei seu nome, baixo até mesmo para que eu ouvisse. Ao olhar para o galho mais próximo a mim, contemplei o corvo em seu crocitar infinito.

Ele não fez nenhuma objeção à minha caminhada por aqueles lados de... onde quer que eu me encontrasse - e já acreditava que aquele lugar poderia ser chamado de Hades, se assim eu quisesse. Apavorada, descobri que, como o corvo, os pardais me perseguiam. Jamais pude - e jamais poderia, como pensei - livrar-me da terrível sensação de ser perseguida por um corvo e seu crocitar infinito e pardais e seus pips agudos. Considerei apedrejá-los, mas não havia pedras naquele chão. Cobri, com as mãos, os ouvidos. Os pips penetravam em minha mente. Eu estaria insana em alguns minutos! Corri. O corvo crocitava. Os pips continuavam. Minha voz me abandonara. O anjo me deixara. Meus olhos longínquos não me encaravam mais. Minhas mãos não haviam deixado meus ouvidos quando caí. Em minha mente, a voz doce me lembrava que eu precisava correr.

E os vi outra vez. Meus olhos longínquos que me antes encaravam dolorosos, agora estavam à minha frente. Pensativos. Duvidosos até. Esperançosos e tristes. Os pardais pararam seu chiar. Ainda com as mãos pressionando os ouvidos, atentei aos olhos. Não eram os meus... Se pareciam com os meus, mas não havia como serem... Enquanto via uma sombra de decisão perpassar por eles, os sussurros de súplica de meu anjo invadiam minha mente. Os olhos piscaram e desapareceram, como antes. Não cheguei nem mesmo perto de um vislumbre do anjo, apenas ouvi sua voz e os chiados dos pardais recomeçaram. O corvo recomeçou seu crocitar. Eu quis pensar, mas já havia perdido o que sobrara de minha sanidade. Ferozmente apertei as mãos aos ouvidos até que deixasse de ouvir. Quando mais nenhum som estava em minha mente, afastei, cautelosamente, as mãos de meu crânio. Amedrontei-me pois delas escorriam um negror...

As vozes em minha mente continuavam suplicando e implorando. A voz doce - que eu já seguira até o Hades! - pedia para que eu corresse. Ignorando o sangue negro que manchava minhas mãos, todavia, jamais escorria por onde - percebi aliviada - estavam minhas orelhas, levantei-me e continuei a correr. O corvo voava atrás de mim sem crocitar. Os pardais, ainda me acompanhavam sem chiar. Eu notava seus bicos batendo, sabia que o corvo continuava com seu crocitar eterno e os pardais continuavam com seus chiados. Então meus ouvidos também falhavam. Sem saber do que exatamente eu corria, parei. O anjo, somente pude senti-lo ali, estava à minha frente e tocou meu braço, onde seus dedos encostaram minha pele, pude sentir o calor. Sem que ouvisse, sua voz me dizia para correr. Fechei, com força, meus olhos e sentia as lágrimas que escorriam por eles e senti uma linha quente em meu rosto. Ao abrir os olhos, foi o mesmo que não tê-lo feito. Toda a floresta era um breu. O anjo se fora. Os olhos de alguém também se foram. O crocitar do corvo não mais seria ouvido. O terrível chiar dos pardais tampouco. Foi difícil respirar... Uma vertigem surgiu e eu não sentia mais nada.

Depois do que pareceu um longo tempo, tornei a abrir os olhos. Não deveria haver luz, mas havia e me cegava. Era noite, mas estava claro. Sem que pudesse me mover, ouvi: "Esperamos o que pudemos..." eram as vozes de meus pais e falavam ao mesmo tempo e conforme falavam, suas palavras construíam um discurso fúnebre. "Nunca admitiríamos enquanto ela vivesse que a certeza da morte era-nos pesarosamente maior." Não ouvi o resto, a luz ainda me cegava. Deveras tarde pensei que os olhos longínquos que eu vira eram deles. Caminhei lenta e arduamente ao anjo, cujo cheiro exalava até mim, que chorava e murmurava com a melodiosa voz que eu seguiria – quantas vezes fossem necessárias – até o Hades, ter, por meses, tentado fazer-me voltar. Ele ouvia a aceleração dos pips da máquina quando tocava meu corpo petrificado, sabendo que eu o sentia... Ao esticar minhas mãos para ele, a fim de reconforta-lo, algo me impedia e, ainda mais tarde, percebi que o crocitar do corvo figurava a minha morte.


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