Ondas do mar de amigo escrita por lelexc


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Espero que goste :)



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 A casa está em silêncio, as luzes estão apagadas, todos dormem. Menos eu. Fecho os olhos, acalmo a respiração, fico tranquilo, mas certo sorriso me persegue e desisto de mais uma noite de sono. 

Abro os olhos, os adesivos de lua e estrela brilham no teto e as lembranças do dia em que foram colocados surgem em minha mente. 

 

“Trevor e eu mal éramos amigos quando ele veio dormir aqui pela primeira vez. Para falar bem a verdade, eu nunca o tinha visto fora da escola antes daquilo. Mas nossos pais eram colegas de trabalho e tinham um evento para ir naquela noite, então resolveram nos deixar em minha casa sob o olhar atento de minha irmã, ou tão atento quanto o olhar de uma adolescente poderia ficar enquanto passava uma maratona de Ensino Médio Musical na televisão. Enfim, éramos dois desconhecidos tendo que lidar com a presença um do outro. 

Tínhamos nove anos na época, ou seja, a dificuldade de interação só durou até encontrarmos alguma brincadeira da qual os dois gostassem. Pensei em pega-pega ou esconde-esconde, mas ele não queria brincar na rua, ele sugeriu jogos de tabuleiro, porém nunca fui muito fã deles. A tarefa se mostrava mais difícil do que o imaginado até que passamos em meu quarto e vimos o Estação de jogos 2, e, fala sério, que menino daquela idade não curtia jogar videogame? 

Começamos a jogar depois de jantar, lá pelas nove horas, um jogo onde uma raposa tinha que pegar frutas e caixas pelo caminho e ir liberando mundos conforme se acabava com os chefões. Conforme as horas foram passando, nós morríamos com maior facilidade, bocejávamos bastante, estávamos obviamente bem cansados, mas o ponto que me mostrou que a decisão certa era dormir foi quando Trevor cochilou enquanto estava com o controle na mão e acordou assustado quando morreu. 

— É, acho que tá na hora de dormir — disse, já me aproximando da TV para desligar tudo quando fui interrompido no meio do caminho.

— Não — elevou sua voz, me assustando um pouco, — vamos passar só mais esse mundo e depois a gente dorme. 

Congelei no lugar e fiquei encarando-o, tentando entender por que ele não queria parar de jogar. Eu já havia sugerido de pararmos duas vezes e nas duas recusou, mas nessa parecia nervoso, quase como se fosse um caso de vida ou morte. Ele já tinha agido assim quando dei a ideia de brincarmos lá fora, quando sugeri de irmos até a cozinha pegar algo sem acender a luz e quando pensou que a lâmpada do banheiro tinha queimado, será que é o que estou pensando? 

— O que foi, Trev? Você tem medo do escuro? — perguntei e vi, na mesma hora, seus olhos se arregalarem, ele ajeitar a postura e me devolver:

— Claro que não! Só mariquinhas tem medo do escuro — sua voz tremia como se não estivesse tão seguro, mentir não era um dos seus pontos fortes. Mesmo assim, percebi que era importante para ele não ser visto como um mariquinhas, seja lá o que isso significava, então mudei de tática.

— Ah, sério? — fiz minha melhor cara de triste e olhei para o chão como se estivesse envergonhado. — Eu meio que tenho medo do escuro — falei com a voz um pouco mais baixa, como se não quisesse que ele ouvisse. — Será que você pode me ajudar a resolver isso? A luz do corredor pifou e vai ficar muito escuro aqui para mim conseguir dormir. 

Seu rosto se iluminou na hora e não demorou a me responder:

— Claro! Não vejo a necessidade disso, não é como se existisse monstros ou coisas assim, mas, se é o que você precisa para dormir melhor, eu ajudo, sim. 

Nessa hora, comecei a pensar em alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse espantar o escuro, mas nada me vinha a mente. Foi quando lembrei das decorações que meus pais tinham comprado para a festa de reinauguração do centro astronômico da cidade. 

Não parei para refletir se era ou não uma boa ideia, apenas saí do quarto com Trevor logo atrás de mim e, sem explicar nada, lhe entreguei uma escada e pedi para que ele a levasse para o meu quarto. Em seguida, fui até a garagem e revirei as caixas de decoração até encontrar o que precisava. 

Voltei para o quarto e ele me olhava confuso, como se não entendesse a relação entre a escada e a escuridão. Logo lhe mostrei os planetas e estrelas fluorescentes que encontrei e brilhavam no escuro e ele sorriu, finalmente entendendo minha ideia. 

Não foi fácil: tivemos que ficar mexendo a escada o tempo inteiro, eu quase caí de lá de cima, ele quase caiu, alguns adesivos acabaram grudando na gente ao invés de no lugar certo, mas, no fim, meu teto ficou parecendo um céu estrelado e nós dois estávamos orgulhosos de nosso trabalho. 

— Se ser mariquinhas é conseguir um céu dentro de casa, eu não acho que isso seja tão ruim, Trev — soltei quando já estava deitado, enquanto olhava admirado nossa obra de arte.

Olhei em sua direção e tudo que consegui ver foi o branco de seu sorriso.

— É, talvez não seja tão ruim assim, mesmo.“

 

Várias foram as vezes em que os adesivos descolaram, assim como várias foram as vezes em que eu poderia ter me livrado desse espalhamento sem sentido de planetas, satélites, estrelas e cometas, mas nunca me senti tentado a tal. A verdade é que, apesar de não ter ficado tão bonito quanto aparentava para dois meninos de nove anos, esse teto foi o início daquilo que se tornou a melhor parte da minha vida. 

Meu coração se aperta e sinto uma ardência nos olhos, preciso sair urgente daqui. Levanto, coloco um casaco e vou até a rua. Andar sem destino sempre me acalmou, mas não é esse meu objetivo no momento. Ando alguns metros até um espaço verde, deito no chão e fixo meus olhos no céu. Uma memória me atropela sem aviso.

 

“Nós tínhamos saído de uma festa num sítio e decidimos ir a pé para casa, já que não tínhamos dinheiro para um táxi. Eu estava meio bolado porque o que comprei de um dos caras não tinha batido e não via mais motivos para continuar ali. No meio do caminho, acabamos nos perdendo e foi nesse exato momento que: bateu. 

— Tá escuro, estamos sem bateria, perdidos no meio do nada e tem a porcaria de um monstro andando por aí, Arthur. Como você quer que eu fique calmo desse jeito? — meu melhor amigo gritava a plenos pulmões enquanto minha maior preocupação era tentar encontrar Órion no céu estrelado.

— Não tem monstro, Trevor, já falei que o que vimos foi Órion passando! Droga! Pra onde aquele maldito caçador foi? Ele tem as respostas de como voltar para casa. — Exaltei-me com nossa falta de sorte, ele estava tão perto, deveríamos ter pedido ajuda quando o vimos da primeira vez. 

Acabei sentindo uma pontada no pescoço pelo tempo que fiquei olhando para cima e desisti daquela posição. Resolvi me deitar na grama para facilitar meu trabalho e, alguns segundos depois, Trev fez o mesmo.

— Você tem certeza que era Órion, Art? 

— Absoluta! Eu vi seu arco. 

Não sei exatamente quanto tempo passou, mas parecia bastante para a minha mente nublada.

— Você achou? — perguntei.

— Parei de procurar. O céu está tão bonito, Art, acho que poderia passar a vida inteira olhando para ele desse jeito. Você é a melhor pessoa, Tur, se não tivesse me convencido a experimentar aquilo, eu não teria percebido a calma que o universo pode nos transmitir. 

Não posso dizer que entendi, mas sorri para ele e assenti. Acabei encontrando as três Marias, mas guardei sua localização para mim. Se ele está feliz aqui, não vejo por que sairmos.” 

 

Assim nasceu uma de nossas tradições. Não, não tem a ver com drogas. Aquela foi a primeira e última vez que usamos algo mais forte, depois disso, só coisa natural, mesmo. E só eu, também, já que Trev começou a fazer sucesso na vela logo em seguida e não queria perder competições por motivos estúpidos. Quinze anos e já pensava em fazer daquilo uma carreira, dá para acreditar? Ele sempre me encheu de orgulho. A tradição que nasceu foi a de que, sempre que nos sentíamos mal, seja por bebida ou por emoções, nos deitávamos juntos e olhávamos as estrelas. Nossa, eu sinto tanta falta disso que chega a doer.

Não consigo me sentir confortável fazendo isso sozinho. Levanto e, ao invés de voltar para casa, sigo meu caminho. 

Ando devagar, sem pressa e várias memórias rondam minha cabeça. Vejo a primeira vez que ele ganhou um troféu, o quão feliz estava e como ele abraçou aquilo como se fosse um filho. Lembro que, mesmo amando aquele prêmio, ele o deu para mim alguns meses depois, quando eu estava passando por um momento difícil: “o troféu é uma lembrança de sua colocação. Eu nunca vou esquecer que venci isso aqui, mas você se esquece sempre do quão importante é na vida dos outros, Art. Eu posso ser ótimo velejando, mas quem merece o prêmio de vela é você. Não porque você navega, nem porque atrapalha casais, mas porque você ilumina a vida dos outros, mesmo que isso acabe te consumindo — e essa, Art, é uma qualidade que eu admiro e temo em você, meu amigo. Um dia, eu ainda vou te ensinar a ser lanterna,” ele falou, e suas palavras ficaram marcadas a ferro em mim. 

Lembro de como fiquei confuso com aquela última frase e dele trazendo até mim uma vela e uma lanterna com pouca pilha acesas. “Presta atenção aqui, Art: as duas aguentaram acesas o mesmo período de tempo, não é mesmo? A vela foi-se completamente, ela não voltará a ser o que era e agora, além de não iluminar os outros, não tem mais energia para iluminar a si. Já a lanterna continua a mesma, para de funcionar quando não tem mais carga, mas volta assim que suas pilhas são trocadas. Você entendeu? Quando ela chega em seu limite, ela para e pede por pilhas novas, não há vergonha nisso, sabe?” Só tenho a agradecê-lo por esse ensinamento, eu seria pura cera derretida a essa altura se não fosse por ele. 

Depois disso, várias imagens vieram: da gente sorrindo no colégio; das festas que fomos; dos treinos dele que eu assisti; dele tentando ficar quieto enquanto eu finalizava um desenho; das nossas tentativas culinárias que quase acabavam com a cozinha; das centenas de horas que passei tentando explicar História para ele e das milhares de horas que ele retribuiu tentando enfiar Física na minha cabeça; dos jogos de videogame que zeramos, as músicas que ouvimos, filmes, séries, shows, viagens, tudo mesmo; até a noite da formatura. Quando percebi, minha visão já estava embaçada pelas lagrimas. Paro, enxugo os olhos e só então percebo onde estou. Meus pés descalços estão afundados na areia a poucos centímetros da imensidão do mar. 

Lembro de cada detalhe do seu rosto, de cada momento especial ou cotidiano que passei ao seu lado, lembro do perfume, das expressões, dos gostos, do dia exato em que eu notei que queria ele para sempre do meu lado, de quando percebi que seu sorriso era um motivo para o meu, da decisão de esperar um pouco mais para contar e a dúvida que eu tinha de essa ser uma boa escolha ou não… Bom, isso não importa agora, é tarde demais, de qualquer forma.

Faz seis meses que Trevor saiu de veleiro com o pai, faz essa mesma quantidade de tempo que uma grande tempestade os atingiu e destruiu o barco, que os restos da embarcação chegaram à praia, que seu pai fora encontrado morto em uma ilha rochosa, que Trev não aparece no mapa. 

Ondas do mar antigo, por acaso vistes meu amigo? Será que a ele verei cedo? Ondas do mar salgado, por acaso vistes meu amado? Será que trarás meu anseio? Vistes meu amigo, aquele por quem suspiro, um amor não superado? Vistes meu amado, por quem tenho grande cuidado e admiro? 

“Art, o mar é fúria, ímpeto e rebeldia, mas também é recomeço, calmaria e acolhimento. Tudo que você vive e sente, alguém já viveu e sentiu perto dele. É por isso que você pode desabafar com ele a vontade, sabe? Eu mergulho e grito lá no fundo e me sinto mais calmo na hora. É quase como receber um abraço de alguém que realmente te entende e não julga suas atitudes. Hey, não me olhe assim, nem sempre você está por perto para fazer isso, as águas são só substitutas, eu sempre vou te preferir, bobão.” Essa lembrança se repete, de novo e de novo, até consigo ouvir sua voz se me concentrar bastante. Não é só sua voz que eu quero. 

Ando até o mar, até as águas chegarem no meu pescoço, e mergulho. Envolvido pelo oceano, com o céu estrelado como testemunha, grito até não poder mais. Quase sinto sua presença aqui, mas ele não está comigo, nunca estará e abraço nenhum de ninguém vai me aliviar essa dor. 

 


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Notas finais do capítulo

A parte em itálico é uma adaptação feita da poesia escolhida para mim. Caso encontre algum erro sinta-se a vontade para me contar.



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