A garota de Romeu e Julieta escrita por Laura Tresmondi


Capítulo 1
Único




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Na primeira vez que cruzei aquela porta, senti medo. Na segunda, uma apreensão tomou conta do meu peito por inteiro. Na terceira, a multidão cega me empurrou para dentro. Na quarta, me escondi no banheiro por meia hora até ter coragem de voltar.

Eu cruzei aquela porta todos os dias durante quatro anos. Dia após dia, atravessei com todos os sentimentos ruins dentro de mim pesando meu espírito. Nunca os joguei fora. Jamais esqueci um dentro de casa junto com as chaves (que toda segunda-feira passavam o dia esquecidas na mesinha). Simplesmente não conseguia me livrar deles. Depois de tantos anos, eram como fantasmas incluídos na minha sombra.

Foi só naquele dia que as coisas dentro de mim mudaram.

Gostaria de poder descrever aquele dia como “uma terça-feira chuvosa de novembro”, mas mal me lembro o ano correspondente. Conforme os meses passam, minhas memórias já se esquivam cada vez mais. Os amores começam a serem misturados entre si ( os pais da Ana eram advogados, os olhos do Tiago que eram pretos, mas era a Kátia que colhia flores?).

E mesmo assim, eu ainda lembro perfeitamente da garota de Romeu e Julieta.

(Os pais dela tinham um sebo, os olhos dela eram castanhos e ela odiava flores).

A “terça-feira chuvosa de novembro” só se tornou significante por causa da Esperança – a menina nova do meio do semestre. A timidez a fazia passar despercebida numa multidão, mas o nome incomum se destacava no meio da chamada de Ensino Médio.

 Depois de Esperança ser apresentada para a turma, quando todos os meninos começaram as piadas e as meninas riam suas risadas maldosas, eu fiquei quieto. Não me orgulho disso. Mas se nos meus dias atuais morando nesse asilo posso ser considerado extremamente tímido, nos dias de ensino médio eu gostava de fingir que nem existia( e os meus colegas faziam o mesmo sem nenhum problema).

Por isso, sempre fui um observador nato. Costumava notar os detalhes despercebidos por todos os outros, guardando as informações desnecessárias numa pasta na minha cabeça(Júlio era cleptomaníaco, a garota de cabelo preto tinha problemas de bulimia e, quase certeza, a menina que sentava na minha frente apanhava em casa).

 Mas eu não fui o único a observar a cena no primeiro dia de aula. Não foi algo sutil como todos os outros detalhes que eu notava quando Julieta se levantou no meio da aula e se sentou ao lado de Esperança, de braços cruzados e um olhar que dizia:

“Com ela vocês não vão mexer”.

Os meninos cessaram as piadas e mais nenhuma menina ria. Todos na sala tinham medo de Julieta. Eu nunca entendi muito bem o porquê, mas ela parecia ter conhecimento disso e aprovava completamente o rebuliço que causava.

Ela se sentou do lado de Esperança o dia todo. E todos os dias seguintes até o final da minha história também. Lembro que, na época, eu realmente não entendia o motivo de Julieta ter enfrentado a sala toda apenas para proteger uma desconhecida. Hoje, refletindo sobre o assunto com um olhar mais maduro, só me ocorre algo como um forte sentimento de empatia. Julieta sempre foi “a estranha” da sala.

E não saber o motivo de todo aquele heroísmo fisgou minha curiosidade.

Conforme os dias foram passando, cada vez mais eu levantava a cabeça no meio da aula para espiar Julieta. Não acho que alguém notava quantas vezes o menino do canto da sala encarava a menina que sentava perto da porta. Duas vezes por dia, uma vez por aula, a cada meia hora, de cinco em cinco minutos...Eu estava me viciando.

E observando, aprendi coisas.

O cabelo dela enrolava quando chegava molhado na escola. As olheiras viviam cobertas por rímel. Esperança desenhava mandalas nas mãos dela quase todos os dias. Nunca pintava as unhas de preto ou vermelho como as outras meninas faziam. Os fones de ouvido eram rosa, roxo, azul, verde, laranja, qualquer cor que não fosse branco ou preto.

Eu já sabia dezenas de pequenas coisas, mas mesmo assim algo nela atraía meu olhar dia após dia. E dia após dia eu colecionava mais e mais pequenos detalhes que provavelmente nunca teria chance de usar a meu favor.

Eu me dizia apaixonado, louco de amor por alguém que não sabia da minha existência(essa é a frase mais adolescente que já disse em minha vida inteira). Por alguém com uma marca de nascença na nuca, que mordiscava a tampa das canetas e era a única adolescente que sabia recitar Shakespeare na aula de literatura.

E é por isso que eu a chamo de Julieta. Não, não era esse o verdadeiro nome dela infelizmente. A vida não consegue ser tão perfeita e irônica quanto são os poetas ao falarem dela.

E mesmo assim Julieta foi a coisa mais perfeita e irônica de todas as outras ao se levantar na aula de literatura, na frente de todos eles, todos eles que não entendiam – não entendiam nem um pouco, meu Deus – a beleza de morrer, e a beleza de morrer por amor, e a beleza em morrer nos braços do amor.

E ela disse:

  – O que mais é o amor? A mais discreta das loucuras, fel que sufoca, doçura que preserva.

Julieta conhecia Shakespeare.

Ela entendia tudo, então.

Ela me entendia.

Finalmente.

Algumas semanas ( duas ou três?) foi o que me custou para acumular coragem para me apresentar.

Na entrada da escola, ela sempre se atrasava. No intervalo, só conversava com Esperança. Na saída, Julieta saía tão rápido, engolida pela multidão de todos os alunos do colégio...eu sempre a perdia para eles.

A minha opção foi alcança-la na esquina seguinte ao portão do colégio. Jogando todos os materiais na mochila, quase torcendo o tornozelo descendo as escadas, consegui alcança-la.

Conforme Julieta descia a rua, desci atrás. Na esquina, com um grupo de menina paradas ao seu lado, não tive coragem de me mostrar. Apenas fui andando e andando, seguindo os passos dela, rezando para o fluxo de estudantes acabar logo. Até ser apenas eu e ela, ela e eu, só nós dois.

Depois de algumas quadras, as mesmas meninas ainda andavam por perto. Cinco minutos se passaram e, próximo a praça, os garotos do último ano assobiaram quando ela passou. Após o shopping, algumas crianças do fundamental ainda estavam por perto.

Eu simplesmente não tinha nenhuma chance de aproximação. Nenhuma. E isso não necessariamente me incomodava, não demorei a notar. Só aumentei minha coletânea de detalhes, o que seria extremamente útil no futuro, eu tinha certeza.

Ela só atravessava na faixa, mesmo que tivesse que andar mais alguns metros por causa disso. Andava com só um dos fones na orelha.Sorria carinhosamente toda vez que alguém passava caminhando com um cachorro. E a movimentação dos cabelos ao movimento era simplesmente hipnótica.

Tudo nela era hipnótico.

Foram vinte minutos de várias ruas e vários cruzamentos que finalmente a fizeram entrar num prédio. Com alguns livros expostos na vitrine e alguns idosos jogando xadrez colados a porta, a faixava dizia “Sebo A casa do Bardo”.

Como não tive coragem de segui-la para dentro do estabelecimento, e mesmo depois de dez minutos Julieta continuou lá dentro, tive que ir embora tentando relembrar por qual caminho ela tinha vindo e me contentando que teríamos de conversar em uma próxima oportunidade.

Já em casa, pesquisei sobre o local que ela entrou. “Sebo A casa do Bardo” no google não dava muitas imagens que realmente condiziam com o que eu vi, além de três satisfatórias. Uma da faixada, outra de uma pilha de livros velhos coloridos e uma foto de uma lousa verde pendurava na parece com uma citação escrita em letra caprichosa.

Clicando na terceira imagem e apertando os olhos para enxergar melhor ( os óculos estavam esquecidos na mesinha junto das chaves), eu li a mesma citação de Shakespeare que Julieta tinha falado naquela aula de literatura.

“O que mais é o amor? A mais discreta das loucuras, fel que sufoca, doçura que preserva.”

Franzi o cenho, me perguntando o quanto daquilo tudo poderia ser coincidência.

O amor dela por Romeu e Julieta, a citação na parede, o nome do sebo...tudo se remetia tanto, se interligava, como se o próprio Shakespeare tivesse escrito nossa história.

Aquela altura do campeonato, eu já estava convencido que tudo – absolutamente tudo – que acontecia entre nós não era menos que o destino intervindo na vida sem nenhuma vergonha de ser descoberto. Destino. Feitos um para o outro. Nascido para ser.

E assim, nós próximos dias, eu andava atrás dela todo o caminho da escola até o sebo. De vez em quando, ainda sentava num banquinho por perto. Todos esses dias, tentei reunir a coragem dentro de mim para ir falar com Julieta. Só de imaginar sua voz suave sendo dirigida a mim já me encontrava em puro êxtase, um abraço entre nós seria minha perdição.

Seguindo essa rotina, um dia ela olhou para trás pela primeira vez. Minhas mãos suaram, meu coração batia tão forte que imaginei se não era possível que ele rasgasse a pele do meu peito. Tentei sorrir para ela. Claro, estava tão nervoso que meu sorriso deveria estar horroroso, parecendo o de um vilão de um filme de terror. Mesmo assim, após o meu sorriso, ela simplesmente apertou o passo e começou a olhar para trás de cinco e cinco minutos. Cada vez eu sorria de novo (um pouco menos nervoso, pelo menos) e toda vez ela acelerava um pouco mais o ritmo da caminhada.

Nenhuma vez ela sorriu de volta. E isso quebrou o meu coração mais do que qualquer noite solitária tinha quebrado antes.

Naquele dia, me decidi por não ficar a esperando na frente do sebo. Simplesmente fui para casa. Naquela altura, eu conhecia o caminho tão bem quanto conhecia a palma da minha mão. Ouvi Paramore, a banda favorita de Julieta segundo uma pesquisa que eu havia feito recentemente( ou seja, uma rápida olhada no seu Spotify quando ela esqueceu o celular em cima da mesa desbloqueado).

Tudo isso aconteceu numa sexta-feira. Me lembro disso por também me lembrar de ter passado o final de semana inteiro no parquinho abandonado perto de casa, imaginando o que teria passado pela cabeça dela quando me viu. Curiosidade, talvez? A chance dela se apaixonar por mim tão rápido era muito remota. Eu não era tão interessante quanto Julieta.

E na segunda-feira posterior foi quando tudo desabou e a minha história de amor, aos poucos, começou a se transformar em uma tragédia. Exatamente como em Romeu e Julieta.

Eu notei os olhares dela em mim o dia todo. E não eram olhares bons. Piorou mais tarde, quando a vi beijando Esperança num canto perto do bebedouro e depois as duas passaram a me encarar o resto do dia.

Ela foi embora mais cedo aquele dia, junto de Esperança. Pela primeira vez em meses andei direto para minha casa, sozinho. Sem a companhia dos passos de de Julieta comigo. Senti um vazio por dentro naquela caminhada que nem a ver beijando outra me fez sentir antes. Uma dor no estomago, aperto no coração, como se o universo estivesse tentando me dizer que algo muito, muito errado estava prestes a acontecer.

E foi quando eu vi a viatura da polícia na frente da minha casa que eu percebi o que realmente estava errado.

E minha mãe chorando na escada do quinta. E meu pai pálido conversando com os policiais. E todas as minhas versões de Romeu e Julieta, sublinhadas, grifadas e rabiscadas; e todas as fotos impressas que eu havia tirado da minha Julieta; e todos os meus poemas destinados à ela; e todas as caixinhas dos remédios escondidas debaixo do meu colchão – tudo isso estava espalhado em cima da mesa, sendo analisado pela doutora com um ar de decepção já comum entre nós dois.

Nenhuma dessas coisas fez o meu coração parar.

O que fez realmente o sangue do meu corpo realmente parar de circular foi ver Julieta, parada do outro lado da rua, segurando a mão de Esperança e com o rosto inchado e o rímel borrado pelas lágrimas. Seu pai e sua mãe – que eu sempre observava lá dentro do sebo – conversando com um outro policial, parecendo assustados e zangados ao mesmo tempo. Por um momento, sua mãe parecia até com falta de ar.

Foi a última vez que eu a vi. Tenho a memória clara na minha cabeça como se tudo não tivesse passado de um sonho sonhado na noite passada. Consigo até sentir o cheiro do perfume de Margaridas quando passei uma última vez ao seu lado enquanto me empurravam para dentro daquele carro.

Ela foi embora, tirada, amassada de mim como um pedaço de papel esquecido, jogado no lixo. O meu próprio veneno mortífero.

Eu não quero falar como os próximos anos foram. Já disse, tudo parece turvo, esquecido em alguma parte da minha mente, todas as lembranças foram entrelaçadas entre si. As pessoas que passaram por mim, os amores que vivi, os corações que quebrei e aqueles que quebraram o meu de novo e de novo e de novo.

Só esse amor eu nunca, nunca, nunca pude esquecer.Nenhum remédio, nenhum auxilio, hospital, outro homem ou mulher me fez esquecer. Todo meu coração pulsava e ainda pulsa, diariamente, por ela. A minha Julieta.


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