the darkest sounds escrita por SomeKilljoy


Capítulo 1
Unique: you can't Choose what Stays and what Fades away


Notas iniciais do capítulo

1. As partes em itálico significam cenas do passado, intercaladas com as cenas da atualidade, que aparecem de uma forma não-linear temporalmente. Ou seja, elas não são cronológicas: por exemplo, a primeira cena em itálico acontece pode ter acontecido de fato depois da segunda, ou até da última. Na verdade, todas elas estão bem embaralhadas, servindo do propósito de apenas mostrar o contraste entre o passado e o presente em relação a algum aspecto. Quis deixar de uma forma que o leitor interpretasse quando exatamente cada uma acontece, mais ou menos, mas, caso haja muitas dúvidas, me avisem e eu esclareço pra vocês ♥
2. As cenas comuns (sem itálico) separadas por # # # também não acontecem imediatamente depois umas das outras: não necessariamente acontece no dia seguinte à outra cena, às vezes pode ter um espaçamento temporal maior entre elas.
3. Coloquei Drogas e Violência nos avisos porque não sabia se devia ou não, mas esses dois elementos são apenas mencionados num trecho da história e não são tão relevantes assim owo

Espero que gostem da história! Penei bastante pra escrevê-la :'D Boa leitura~



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Brenda encarou a parede cheia de falhas na tintura defronte a ela, chacoalhando a lata de grafite na mão. Aproximou o orifício da lata para perto dela, pronta para adorná-la com cores mais vivas, mas nenhuma figura para retratar lhe veio à mente.

Ela suspirou, abaixando a mão destra e afrouxando o aperto, quase permitindo que a lata se chocasse contra a calçada. Desfez o coque improvisado, retirando o lápis que sustentava o cabelo, e deixou com que o objeto precipitasse no chão. Era um lápis comum, inutilizado por estar sem ponta, de qualquer forma.

— Tá com bloqueio criativo, é? — perguntou Bernardo num tom de gracejo. A linguagem corporal de Brenda provavelmente evidenciava sua frustração, então ela nem se preocupou em responder. — Relaxa, você tá muito tensa. Assim você não vai criar nada, mesmo.

Para ele era fácil falar. No relance que ela dera à porção do muro destinada à arte de Bernardo, vira-o retratando flores fantasiosas e psicodélicas numa fluidez de fazê-la fervilhar de inveja. E ele estava ali há menos tempo que ela.

— Tanto faz, Berna. Vou pra casa. Preciso ler os textos da faculdade ainda. — Desamarrou a blusa de flanela da cintura, agasalhando-se com ela. Agarrou a mochila que havia deixado encostada contra a parede, enfiou as latas de grafite que havia separado para o uso e enganchou uma das alças em um dos seu ombros, de forma relapsa e prejudicial à coluna.

— Você tampou as latas? Não vai querer acabar manchando suas coisas, hein — perguntou o amigo.

— Claro, claro. Tô indo agora. Até depois.

— Vai estar aqui amanhã nesse horário?

— Acho que não. Vou dar um tempo até sentir inspiração de novo — respondeu, dando um sorriso desanimado e apologético a ele, pronta para ir à pé pra casa. — Foi mal.

— Ah, ok... — Ele pareceu minguar. Sabia que não gostava de ser deixado sozinho, mesmo se fosse com duas coisas que amasse: música e arte urbana. Preocupado, ele diminuiu o volume do som que seu aparelho, no chão, emitia. — Aconteceu alguma coisa? Você e o Arthur brigaram ou algo assim? — Bernardo franziu o cenho, e brandiu a lata de grafite que segurava como quem desembainha uma arma ameaçadoramente. — Quer que eu espirre tinta nos olhos dele?

— Nah. Não se preocupe. — Sorriu de novo, apaziguadora dessa vez. — Até mais. Chama a Clara pra te fazer companhia.

Ele concordou com um gesto da cabeça e um sorriso discreto, acenou amplamente como despedida e então deu meia volta e tornou a focar em seu trabalho.

O trajeto pra casa foi curto, porém penoso. Brenda havia esquecido os fones de ouvido, o que implicava num silêncio doloroso durante os quinze minutos que levava para percorrer o caminho até o prédio, cumprimentar o recepcionista na guarita, esperar a ascensão do elevador e finalmente estar à porta do apartamento que dividia com o namorado.

Quando girou a maçaneta e impeliu seu corpo contra a porta, notou que ela estava aberta e entrou no apartamento.

— Amor? — chamou, deixando a mochila encostada ao batente da porta e ouvindo as costas estalarem ao endireitá-las. Arthur estava espraiado no sofá menor da sala de estar, as pernas cruzadas sobre o braço do sofá. Afastou a papelada que estava lendo para poder vê-la entrando.

— Ah, oi, Brenn. Onde você tava? Já são sete horas — inquiriu, mas logo seus olhos estavam focalizando as palavras dos papéis novamente, em vez de recaírem nela.

— Pintando. Ou tentando. O que você tá lendo? — disse, num tom curioso, sentando-se na poltrona perpendicular ao sofá que ele ocupava.

— Marcos pediu pra eu dar uma olhada na letra de uma música que ele está compondo... — respondeu, torcendo o nariz em um trejeito cômico. Ela riu.

— Não está muita boa, está?

Ele balançou a cabeça, olhou para ela de esguelha e soltou um riso seco.

— Não mesmo. Não sei nem o que vou falar pra ele.

— Seja sincero — aconselhou, deslizando os dedos nos cabelos castanhos, compridos e despenteados de Arthur e levantando-se para preparar algo que pudesse encher seu estômago. — Então, como foi seu dia?

— Normal — murmurou em resposta, indiferente.

Esperou por um “e o seu?” ou um “você parece cansada, tá tudo bem?”, mas as expectativas de Brenda morreram assim que o silêncio começou a germinar.

Suprimindo outro suspiro, distraiu-se montando um sanduíche como fazia de praxe: pão integral, peito de peru, mussarela e tomate seco.

— Quer um pra você, Art? — ofereceu.

—  Não, valeu. — Sua voz soou abafada. Provavelmente estava com os papéis na cara de novo.

— Tem certeza? É seu preferido.

— Tenho.

— Então tá... — Talvez o mau-humor que havia se infiltrado nela durante o dia  tivesse o contagiado quando entrara no apartamento. Comeu sozinha na mesa de jantar, sem proferir mais nenhuma palavra, e o silêncio, ainda que com intervalos intermitentes, pareceu persegui-la como um energúmeno pelo resto da noite.

 

# # #

 

— Brenn? Por que está assim? — Sentiu o toque de dedos calejados nos seus pulsos, descendo até seus cotovelos apoiados na superfície da mesa, como numa solicitação silente para que parasse de ocultar o rosto com as mãos. Ela não resistiu, e revelou os olhos marejados. — O que houve?

Ela fungou e esfregou os olhos, tentando conter as lágrimas iminentes.

— Só tô cansada. Não aguento mais o ambiente lá de casa.

— Seus pais brigaram? — Ela meneou a cabeça negativamente. — Então... o que foi?

— Art. Não quero falar sobre isso. Eu só... — Exalou uma grande quantidade de ar pela boca. — Todo mundo lá contribui para que eu me sinta um lixo quando tô em casa. Não aguento mais ficar lá. Mas eu não tenho escolha.

— Hey. Claro que tem. — Arthur sorriu, inclinado pra frente, e colocou uma madeixa preta do cabelo de Brenda atrás de sua orelha. — Você está no seu futuro novo lar, se você quiser.

Ela arregalou os olhos, perscrutando ao redor como se só agora percebesse que se encontrava no apartamento do namorado.

— Desculpa, eu não quis dizer isso, não precisa, Art, sério, eu...

— Mas eu quis. Vem morar comigo.

Ela sorriu, um sorriso lacrimoso, e não conseguiu fazer com que mais nenhuma palavra de negação saísse da própria boca.

 

# # #

 

Arthur estava chegando em casa cada vez mais tarde ultimamente.

Se as coisas estivessem como antes, ele teria lhe mandado mensagens avisando que chegaria atrasado e justificaria, dizendo que ela poderia jantar sem ele e até se desculpando. Mas nos últimos 3 meses, ela mal ouvia dele até que ambos se vissem pessoalmente.

Brenda tentava se distrair conforme as horas iam passando, estudando os textos sobre História Antiga para a faculdade, relendo partes de seu livro preferido, procurando por ilustrações dos artistas digitais que a inspiravam e estudando as técnicas deles. Nessas horas, gostaria de estar pintando; era a melhor forma para permitir que os sentimentos que a incomodavam efluíssem e a libertassem, mas, ultimamente, duvidava que conseguisse criar alguma coisa, mesmo se fosse em seu simples bloco de desenhos, que jazia intocado há meses. Então ela se ocupava com seus afazeres, tentando evitar lançar olhares de relance para a entrada do apartamento muitas vezes consecutivas, às vezes com êxito, às vezes não.

Quando finalmente ouviu a porta rangendo e passos ressoando no piso da sala, ela estava no banheiro já de camisola, lavando o rosto com as mãos em concha para retirar resquícios da maquiagem. Esfregou abaixo dos olhos, crente que o lápis de olho e a sombra haviam borrado em algum momento, mas eram apenas suas olheiras. Suspirando, foi recepcionar o namorado recém-chegado.

Encaminhando-se do corredor até lá, ouviu-o percorrer o cômodo com estrépito, seguido de uma série de estrondos que sugeria algo sendo continuamente atingido, a ponto de ser degradado.  Alarmada, permaneceu atrás da dobra da parede e espiou no cômodo adjacente, onde estava Arthur, os cabelos emaranhados e a postura rígida enquanto ele desferia chutes nas plaquetas estofadas do sofá. O baixo, ao qual ele normalmente dedicava um zelo augusto, havia sido deixado com desleixo deitado no chão, sem ao menos estar encapado.

—  Arthur! O que você está fazendo? — chamou-o, alteando o som da voz para que fosse escutada. Ele virou-se para Brenda, como se saísse de um transe e percebesse o que estava fazendo. Sentou-se no sofá, que rangeu. Massageou o rosto com as duas mãos, sufocando os grunhidos que emitia e uniformizando a respiração. A parte do sofá vitimada por sua violência estava claramente danificada.

Arthur era um homem calmo, ou costumava ser. Apenas algumas vezes perdia o controle, quando as rédeas da própria situação já tivessem fugido de suas mãos.

— O que aconteceu pra te deixar assim? — indagou, sentindo-se tanto exaltada quanto assustada de se aproximar. Por mais que soubesse que Arthur jamais a alvejaria com sua agressividade, vê-lo assim era tão incomum que era como se houvesse outra pessoa em sua frente, sentada em seu sofá deteriorado, totalmente desconhecida.

— Marcos é um babaca, o Ronaldo também. A gente discutiu e só o Yuri ficou do meu lado. Essa banda tá uma merda — respondeu ele, resmungando. — E eu tô cansado de ensaiar. — Como que para ratificar seu argumento, caiu deitado sobre as almofadas do sofá.

Finalmente, encorajou a si mesma a sentar na poltrona ao lado dele.

— Mas... Vocês estão indo tão bem. Estão ficando mais conhecidos, não? Eu adoro a música de vocês. Não desanima. Vai ficar tudo bem. Seja lá o que aconteceu, você não deve desistir do que levaram tanto tempo pra criar-- — iria continuar, mas ele atalhou seus dizeres.

— Não falei que ia desistir. Só disse que tô cansado.

— Quer conversar? — convidou, embora já soubesse previamente da resposta.

— Não — dardejou, ríspido.

Ela ergueu-se da poltrona, tentando dissimular a frustração diante o comportamento dele.

— Ok, então. — Ela deu meia-volta, encaminhando-se ao quarto, mas ele a chamou e ela parou no meio do caminho.

— Onde tá indo?

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Pro quarto. Vou dormir logo.

Arthur a divisou com olhos azuis cansados, sem brilho; a julgar por seu semblante, agora que já havia dado vão ao estresse e a poeira assentara, parecia arrependido. Pela resposta ou pelo tom que usara, não saberia dizer.

— Não está com raiva de mim, está?

Não era do feitio dela esconder aquilo que a incomodava. Era uma pessoa objetiva, gostaria de discutir o que estava errado, mesmo se fosse preciso se impor. Mas, agora, sentia que devia recuar. Estava tarde. Ambos pareciam exauridos demais. Não era a melhor oportunidade para isso, por ora.

Ela o encarou, rememorando todas as mudanças que ele, como pessoa, vinha sofrendo ao longo dos últimos meses; de como sentia-se tão distante dele, de como ele havia se encapsulado numa armadura que, quando tentava se aproximar, parecia voltar as armas contra ela.

Ela o encarou, e silenciou todos os protestos e bramidos frustrados que se acumulavam e se armazenavam em seu peito, em sua garganta.

— Boa noite, Art — foi o que respondeu, retomando o percurso que seguia antes.

 

# # #

 

— Hey — chamou Clara, a sussurros. Os cabelos claros da amiga, presos em um coque mal-feito e improvisado, balançavam de um lado para o outro enquanto ela saracoteava consoante a música. Ela dançava de um jeito engraçado e contagiante, fazendo com que Brenda não quisesse ficar parada também. — Aquele ali é seu namorado? O baixista? — perguntou, apontando discretamente para um dos integrantes da banda convidada a tocar no festival. Eles estavam alguns metros delas e de Bernardo, que se entretinha com seu copo de alguma bebida, escorado na parede e aparentemente perdido naquele amontoado de pessoas.  

Brenda riu e a ombreou, como que em admoestação.

— Ele não é meu namorado. — Foi encarada por um olhar desacreditado, acompanhado de sobrancelhas arqueadas. — Por enquanto. — Lançou-lhe uma piscadela sugestiva.

— Que confiante. — Foi a vez de Clara trombar seu ombro com o dela. — Vocês combinam bastante um com o outro.

Não sabendo o que dizer, apenas bebericou o copo que também segurava, de modo que disfarçasse o sorriso irreprimível, e assistiu à performance da banda.

Havia conhecido Arthur há alguns meses, naquele mesmo festival. À época, era a primeira vez que ele estava apresentando com a banda; já para Brenda, era a primeira vez que expunha a um público específico os muros grafitados por ela, junto a outros artistas urbanos. Era uma conglomeração mensal de vários tipos de gente em uma das praças principais da cidade, que vinham patentear talentos e atraíam visitantes. Além da banda principal, havia dançarinos de rua, autores exibindo — alguns, comercializando — pinturas e esculturas, e até artistas circenses. Foodtrucks forneciam o restante para o entretenimento das pessoas, o elemento indispensável: comida.

Arthur era um cara diferente, cujas individualidades haviam se destacado no meio de toda a multidão e capturado a atenção de Brenda imediatamente. Ele era do tipo que parecia não se homogeneizava aos arredores, sempre sendo ele, e era isso que despertara nela a curiosidade de se aproximar. E, de alguma forma, vinham mantendo contato desde então.

Agora que o via tocando mais uma vez, podia identificar, em seu rosto, a expressão ao mesmo tempo compenetrada, álacre e imperturbável de quem está a fazer algo que ama, a mesma que ela sabia que detinha quando pintava. Podia perceber, pela naturalidade de sua compostura e pelo deleite que ele parecia transmitir com sua música, que ele se sentia pertencente àquele lugar intenso e vibrante, embelezado com tantas cores e formas de roupas e figuras, somados aos anéis de fumaça de cigarros, com tantos sons de vozes animadas diferentes; com aquelas pessoas todas, seus colegas de banda e seus ouvintes, todos energéticos, dançantes e exultantes.

Ela também se sentia pertencente e inclusa a todo esse mundo.

E estava feliz de tê-lo conhecido, de ser afortunada pela possível oportunidade de vir a tê-lo como amigo próximo.

 Ou, quem sabe, até algo mais.

 

# # #

 

— Brenn, você vai estar no festival desse mês? — Arthur perguntou, ainda deitado sob as cobertas, quando ela estava terminando de se arrumar de manhã para ir à faculdade. Espantou-a com a pergunta aleatória, porque, a julgar por seus olhos fechados e aparência semi-consciente, ela podia jurar que ele retornaria ao seu sono ferrenho imediatamente.

— Hmm, não sei. Não tenho exposto nada recentemente. Você vai? — quis saber, terminando de vestir o cardigã.

O namorado tirou o cabelo desgrenhado do rosto e levantou a cabeça, antes afundada no travesseiro, colocando-a sobre o braço dobrado.

— Não. Outra banda recém-formada foi convidada para apresentar lá. Além disso, não andamos sendo muito produtivos ultimamente e temos muito o que ensaiar ainda. — Estava prestes a sair, parada à soleira da porta entreaberta, mas esperou que ele desfechasse. — É que, caso fosse ir lá expor alguma coisa, eu podia te acompanhar.

Brenda sorriu, comovida pela sugestão. Fazia tempo que ele não propunha que passassem algum tempo juntos, ou fossem a algum evento juntos. Qual fora a última vez que se viram em algum outro lugar que não fosse o próprio apartamento que dividiam?

— A gente podia ir junto mesmo assim? — ela contemplou, esperançosa de não ganhar uma resposta negativa por uma vez.

Ele retribuiu seu sorriso, aquele sorriso enviesado em meio à cara de sono.

— Claro.

Uma sensação de alívio e felicidade que ela mal podia explicar se espalhou por seu peito.

Talvez as coisas estivessem voltando ao normal. Talvez tudo vá melhorar.

— Ok — respondeu, em um tom consideravelmente mais alegre. — Eu tô indo agora. Até mais, Art.

— Ok, amor, boa aula pra você — ele respondeu. Um segundo depois, estava com o rosto enterrado no travesseiro e com o corpo entocado debaixo dos cobertores de novo.

Ela riu diante do comportamento sonolento dele, sussurrou um “obrigada” e saiu do quarto, com o pressentimento de que o dia prometia ser melhor que os outros.

 

 

— Então hoje você tá inspirada, huh? Achei que você não viria de novo — comentou Bernardo, todo sorrisos e tão entusiasmado como sempre, dançando e delineando arcos amplos com o grafite, ao mesmo tempo que olhava para ela de soslaio.

Ela encolheu os ombros. Prosseguiu o tracejar cuidadoso com o grafite sobre o esboço que fizera com um claro giz de cera, o que ela planejava ser o início de uma gravura do fundo do mar, estilizada ao seu bel-prazer.

— Me senti diferente essa manhã, então resolvi vir aqui. Já estava com saudades — respondeu. Sentia-se, pela primeira vez em muito tempo, genuinamente bem. — Finalmente estou conseguindo criar alguma coisa.

Bernardo soltou um “Uhu!” comemorativo, fazendo-a rir. Ambos continuaram seus respectivos trabalhos, satisfeitos pelo ambiente musical e criativo em que estavam.

A caminho de seu prédio residencial, Brenda sentiu o celular  vibrar no bolso da calça, notificando uma mensagem. Fazia algum tempo desde a última vez em que Arthur se comunicara com ela por aquele meio; qual não foi sua surpresa, portanto, quando viu que era ele o remetente daquela em especial.

Art ♥:  Talvez eu chegue bem mais tarde em casa hoje

           Não precisa ficar preocupada

           E não me ligue

Brenn: Tá tudo bem?

Art ♥:  Vai ficar

Sentiu um gosto acre impregnar em seu paladar, e o humor positivo que havia erigido durante o dia foi capaz de desfalecer tão facilmente assim. Fez mais perguntas, procurando saber o que houve, tentando exigir amigavelmente por justificativas, mas ele havia parado de responder — provavelmente, havia silenciado as notificações.

Durante a noite, não conseguia desfitar os olhos do relógio digital, mesmo com as pálpebras pesando pela estafa emocional. Sentia o corpo enrijecido, como se só fosse capaz de relaxar e adormecer quando a porta do quarto fosse aberta e um corpo deitasse ao seu lado. Ainda melhor seria se braços a envolvessem, como não faziam há muito tempo, e se um sussurro junto à sua orelha a assegurasse de que estava tudo bem, e ela poderia se entregar à certeza de que aquilo era verdade, afugentando a insegurança que parecia erodir seu ser ultimamente.

No entanto, o alvorecer já manchava as cortinas do quarto quando ouviu a porta ranger e sentiu o peso de Arthur deitando ao seu lado na cama. Suas expectativas não foram correspondidas, e o sentimento suscitado não foi outro senão a vontade de sumir dali, de fugir daquela estranheza, e de não ter que ouvir o “desculpe” murmurado que, na verdade, sentenciava que não, não estava tudo bem.

Arthur não lhe dirigiu palavra sobre o que havia acontecido, no dia seguinte. À pura luz do dia, podia enxergá-lo melhor, e ele também não explicou por que estava com um corte no lábio, maçã do rosto escoriada e inchada e os nós dos dedos feridos, mesmo com as insistências sutis de Brenda. Não muito depois de ambos terem levantado, ele partiu, igualmente mudo.

Estava tão, tão cansada de tudo que agora não sabia o que sentir. Tanta preocupação e frustração e decepção  haviam culminado em nada mais que apatia.

Brenda recebeu mensagens de Clara por não ter ido pra faculdade, estranhando esse feito atípico e perguntando se havia acontecido alguma coisa. Ela não se viu na posição de mentir, e apenas respondeu que sim, sem maiores explicações.

 

# # #

 

— Você sabe que pode confiar em mim pra qualquer coisa, Art. — Tocou-lhe o ombro em uma súplica latente, tentando manter contato visual, mas os olhos dele pareciam desfocados, vítreos. — E contar o quer que esteja te incomodando.

Ele finalmente a encarou, e soltou um suspiro pesado. Colocou a mão sobre a dela, apertando-a levemente.

— Não sei se me sinto à vontade de falar sobre, mas obrigado pelo apoio. — Os lábios se curvaram, mas o sorriso ainda não alcançou seus olhos. — Vamos conversar sobre outras coisas? Ver um filme pra distrair, como a gente costumava fazer?

Ainda que com um sentimento agourento, ela concordou sem titubear — adorava aqueles momentos com ele, afinal.

 

# # #

 

O dia do festival no final daquele mês chegou. Brenda e Arthur não estavam se falando. De alguma forma, ela foi capaz de reunir forças para sair da cama, mas não para sair de casa.

Não foi ao festival e, devido à existência de tantas memórias ligadas a ele que pareciam estar em iminência de se estilhaçar, talvez não fosse voltar a ir por um bom tempo.

 

# # #

 

— Qual é seu problema? — exclamou Brenda, com o tom deliberadamente acusatório, quando eles por fim chegaram em casa. Deixou a bolsa sobre o sofá principal, de imediato voltando-se para ele de braços cruzados. — Você me deixa esperando por quase uma hora e, quando finalmente me encontra, age como se fosse um estorvo e que você queria estar em qualquer outro lugar. Você sabe que eu odeio indiferença.

Achou que ele fosse a encarar frente a frente, mas a cabeça de Arthur estava baixa. Ele coçou a nuca e, com o rosto ainda na penumbra, a relanceou com aquele olhar apologético, que normalmente surtia efeito instantâneo nela, mas não agora.

— E como se não bastasse, você ficou todo nervosinho quando sugeri que fôssemos pra outro lugar? — Bufou. — Só porque não era o que tínhamos planejado? Desde quando você se importa com o que é planejado?

Ele se aproximou a passos lânguidos, mas ela recuou, visando à manutenção da distância.

— Desculpa, amor, eu só tive um dia ruim hoje… — rumorejou ele.

— Bom, eu também tive, e nem por isso descontei em você.

Arthur finalmente ergueu os olhos — ela pôde perceber as olheiras realçadas ao longo dos últimos dias — e ergueu as mãos em capitulação.

— Eu sei, fui um babaca. Entendo que você esteja com raiva. Desculpa.

Ela respirou fundo, perscrutando-o com olhos analíticos. Aliviada por ter sido capaz de expor sua frustração sem causar dissensões maiores, apenas se afastou e murmurou:

— Ok, só quero ficar um pouco sozinha agora.

— Tudo bem... Desculpa ter estragado nosso dia.

— Acontece.

— Eu te amo, tá? — ouviu-o dizer, o que soou como uma confissão.

Ela assentiu com a cabeça, silenciosamente. Se não fosse por seu humor atual, teria retribuído as palavras imediatamente.

Apenas esperava que ele entendesse isso.

 

# # #

 

Depois de uma semana em que Arthur pareceu sumir de sua convivência diária sem lhe explicar o porquê, Brenda percebeu que talvez não devesse continuar correndo atrás. Vira-o pela última vez quando ela própria estava saindo do apartamento, e ele não pareceu escutá-la se despedindo e dizendo que não sabia quando voltaria; Arthur estava tocando no violão, sozinho na sacada. Era uma música triste, lúgubre, diferente daquelas que costumava tocar quando sentia-se bem.  

Havia decidido que não valia a pena resistir às investidas da amiga de se aproximar, muito menos ceder à tentação de se isolar, então resolveu vê-la. Também chamaram Bernardo, e os três passearam pela cidade, presenteando-a com a oportunidade de ter uma conversa vivaz e de se divertir em dias, e de permitir a si mesma de esquecer o resto e apenas apreciar os cenários. Depois de ele precisar partir, Brenda acompanhou Clara até sua casa e ali permaneceu, conservando a resolução de manter distância do próprio apartamento pelo máximo de tempo possível.

De alguma forma, a amiga foi perceptiva o bastante para perceber que havia algo errado — talvez Brenda estivesse mais taciturna e cabisbaixa que o normal, falando menos, a atenção mais diluída — e, a partir de então, não parava de insistir em perguntar o que houve, até que passou a querer adivinhar, e sua primeira tentativa foi a correta.

— É alguma coisa com o Arthur? Você não fica assim por qualquer coisa. Na maioria das vezes, é só ele que consegue te deixar mal  — a amiga disse em resposta ao seu prolongado silêncio anterior.

Gostaria de impedir que estivesse tão óbvio também, e gostaria de voltar a ser aquela pessoa que raramente se deixava abalar por alguma coisa — muito menos por alguém.

— Vocês estão com problemas? — Clara continuou com as interrogações, apesar da explícita vontade da amiga de mudar de assunto.

Brenda encolheu os ombros, murmurando um “talvez”.

— Você vai terminar com ele?

— Eu não queria — respondeu fracamente. — Talvez ele só esteja passando por uma fase ruim.

Clara a embalou em um abraço.

— Vai ficar tudo bem. Você tem seus amigos também. Esquece ele um pouco, ok?

— Posso dormir aqui hoje?

A amiga aceitou sem pestanejar. Apesar da vergonha de ter que pedir para ficar, sabia que era o melhor a fazer. Talvez, se ela se ausentasse também, Arthur perceberia o impacto de sua própria ausência — embora ela não o culpasse inteiramente.

Brenda passou alguns dias afastada, tentando se distrair com a companhia das outras pessoas que compunham sua vida, frequentando lugares que nunca falhavam em deixá-la melhor. E isso, de fato, a ajudou. Alguns pensamentos sobre ele ainda lhe aventavam à mente. Era inevitável. Ainda se preocupava. Também tentou manter contato, infrutiferamente. Mas, agora, estava sendo mais exitosa em não permitir se afetar tanto assim.

No terceiro dia que passaria na casa de Clara, suas mensagens a ele finalmente foram respondidas. Recebeu uma chamada de Arthur, enquanto fazia uma maratona de filmes clássicos com a amiga, que imediatamente pausou e perguntou “É ele?”.

Brenda assentiu e atendeu.

— Arthur. Oi.

Brenda, desculpa. Por tudo. A gente pode conversar?

Ela respirou fundo. Sentira falta da voz dele; mas, agora, não sabia se queria vê-lo.

— Quando?

Agora? Por favor? Você pode me encontrar na sua cafeteria preferida, perto de casa?

— Clara, eu deveria ir — voltou-se à amiga, desencostando o celular do rosto.

— Tudo bem. Quer carona? — ofereceu ela.

       

# # #

 

— Não acredito que já faz mais de um ano que estamos juntos — murmurou Arthur, numa reflexão randômica, passando um braço ao redor dos ombros de Brenda, aninhada junto a ele à borda da piscina.

— Ah, não, se vocês ficarem assim sempre, vou parar de convidar os dois. Me faz me sentir mal por não ter uma pitanguinha também — exclamou um dos amigos deles, proprietário da casa em que estavam junto com outras pessoas, respingando água neles.

— Deixa eles em paz, Rafael, os dois são um casal bonitinho — interpôs Clara, que lia uma revista em uma cadeira dobrável, rindo.

Brenda riu, ignorando-os e atentando-se às palavras de Arthur, que também aspergiu um jato de água no amigo.

— Passou muito rápido, né? — respondeu-o.

— Passou voando. Parece que o festival onde a gente se conheceu foi semana passada — brincou ele. — E que foi ontem que te levei pro Museu de Arte e te pedi em namoro.

— E ao mesmo tempo, aconteceu tanta coisa desde então — ela completou, lembrando-se de todos os momentos, os bons e os ruins, e como havia passado por todos e continuava ali, com ele. — Entendo como você se sente.

— Fico feliz por todas as memórias que temos juntos. Mesmo as ruins.

Ela sorriu irrestritamente, divisando as ondulações de luz solar na superfície cristalina da piscina, balançando os pés dentro da água morna.

— Eu também.

— Amo você, sabia? — Sentiu a mão dele acariciando-lhe sob a nuca.

— Sabia — beijou-lhe a bochecha —, mas sem melosidade em público — respondeu, tentando disfarçar a vergonha. Ele riu, e ela não se preocupou em completar a resposta, porque sabia que ele sabia da parte “também te amo”.

 

# # #

 

Era estranho estar ali, sentada em uma mesa, frente a frente com Arthur, em um lugar onde foi um de seus primeiros encontros. O cheiro pervasivo de café e pão-de-queijo recém-assado trazia memórias, que eram incongruentes com o contexto atual.

Arthur parecia inconfundível e, ao mesmo tempo, irreconhecível. As mesmas roupas grunge, a mesma barba por fazer. Mas os olhos se apresentavam sem luz e cansados,  seus cabelos estavam desgrenhados, e sua postura, encolhida, parecia carregada de remorso.

Brenda não pronunciara uma palavra desde que chegara ali; apenas o ouvia terminar sua explicação, mexendo no cappuccino comprado com uma colher de plástico. O semblante dela, sério e impassível, mascarava sua emoção subjacente.

        Arthur começou se desculpando. Então, explicou.

— Em resumo, a "banda" tem me sugado ultimamente. E estamos tendo muito desentendimentos entre nós... Marcos e Ronaldo querem se separar da gente, e não escutam o que eu e o Yuri dizemos. Para piorar, recentemente, descobrimos que o Marcos se meteu em drogas e... — Brenda ergueu as sobrancelhas. Ele suspirou. — Não dá pra explicar tudo agora. Mas, bom, a briga entre nós piorou. Foi por isso que eu fiquei com olho roxo semana passada. Isso tudo só me fazia querer me isolar.

Ela aquiesceu, e murmurou um “sinto muito”.

— Enfim... não tem como justificar como eu agi com você. Só estava pensando nos meus problemas. Não percebi que tinha te ignorado, ou esquecido da sua presença. Mas não foi minha intenção. — Ele suspirou. — Eu sempre devia ter te valorizado mais. Então, me desculpa se a machuquei. Percebi meu erro principalmente quando você não estava mais lá. Entendo que você esteja decepcionada comigo. Eu também estaria. Sei que falhei contigo. Se quer que eu vá embora, depois disso tudo... também entenderia.

— Eu faria qualquer coisa pra você ficar — admitiu ela, quando ele acabou. Sua expressão facial já não escondia o que sentia. — Mas a resolução não depende só de mim. Você precisa me ajudar, também. Não posso fazer dar certo sozinha.

O alívio substituiu a culpa no rosto de Arthur.

— Eu sei. Desculpa. Não sou sempre assim, mas...

— Você está diferente há meses, Art. Meses.

— Estou tentando melhorar nisso, de verdade. Você só precisa entender que eu andei passando por coisas difíceis, e estava as enfrentando e fugindo delas ao mesmo tempo.

— Eu entendo. E te perdoo. E peço desculpas por não ter conseguido te ajudar. Mas você não precisava fugir de mim também — desabafou ela, encarando-o nos olhos. — O que é um relacionamento se as pessoas nele não podem se apoiar?

Ele segurou com ambas as mãos a mão dela estendida sobre a mesa, com firmeza.

— Eu vou mudar. Prometo.

— Promete mesmo?

— Prometo.

Ela suspirou.

— Acredito em você.

— E desculpe não ter ido no festival com você, apesar de nós dois querermos. Ainda podemos ir no próximo, se quiser.

Brenda sorriu.

— Podemos.


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Notas finais do capítulo

AAAAAAAAAAAAAAAAAAA é isso. eu ainda to mt inseguro com essa fic mas ;w; Espero que tenham gostado e muito obrigado por lerem até aqui! Agradecimentos de antemão para qualquer pessoa legal que vá deixar um comentário, mas também gosto de vocês, fantasminhas.
Até a próxima!



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