Tinta e Sangue escrita por Costa


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Fala gente. Vocês estão bem? Uma tentativa de um pouco de humor negro com essa one. Espero que gostem.



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Eu sempre quis ser livre. Livre no sentido de tomar minhas próprias decisões, decidir minha vida. Um pouco depois que eu nasci, meu pai largou minha mãe e ela se apegou demais em mim. Ela era quem tomava todas as minhas decisões, desde o que deveria comer até quem eu deveria namorar. Não me faltava nada, eu tinha tudo o que poderia desejar, só não tinha liberdade.  Um dos dias mais felizes de minha vida foi quando eu tinha uns 16, 17 anos, minha mãe deixou que o meu tio me contratasse para trabalhar com ele. Ele é pintor e me ensinou essa profissão. Com ele que eu comecei a aprender o gostinho da liberdade. Ele foi o primeiro que me deu uma cerveja, fez vista grossa para minhas saídas proibidas. Graças a ele que eu pude namorar pela primeira vez. Mas, tudo que é bom dura pouco. Minha mãe descobriu e me proibiu de sair mais com ele. Eu só poderia trabalhar nas casas e lojas que ela me indicasse.  Claro que eu pensei em me rebelar, fugir de casa, mas o que um garoto de 18 anos iria fazer? Eu apenas abaixei a cabeça e deixei-me ser comandado, mais uma vez.

Eu era patético, ainda sou se for sincero. Chegou um momento em que queria apenas ser livre.  Quando em completei 29 anos, decidi dar um basta nisso, mas não foi uma decisão inteiramente minha. Conheci uma mulher, Lucia. Era o amor de minha vida. Ela me fez abrir os olhos e ver que não poderia continuar como estava, que eu já era um homem barbado e estava na hora de sair debaixo das asas da mamãe. Ela tinha razão, não foi fácil, mas eu tinha que fazer o que eu tinha que fazer. Eu acabei alugando uma casa, que estava mais para um barraco, e sai de casa. Cortou meu coração devastar minha mãe, mas eu precisava tomar as rédeas de minha própria vida.

No começo foi difícil, atrasava o aluguel, tinha só o dinheiro para comer e quase não conseguia emprego já que minha mãe fez o favor de queimar minha imagem no mercado na esperança de eu não conseguir me sustentar e voltar para casa dela. Foi duro, mas eu consegui dar a volta por cima, fiz minha fama e demonstrei meu profissionalismo.

Quando eu estabilizei um pouco de vida, pedi Lucia em casamento e ela aceitou. Achei que, a partir desse ponto, minha vida seria um mar de rosas, foi nos primeiros anos, mas ela se tornou tão controladora quanto minha mãe.  Ela controlava as finanças, a casa, tudo. Fugi de uma para cair em outra. Tentei me divorciar, mas como iria fazer se a merda é que me casei em comunhão de bens e o barraquinho que compramos o idiota aqui colocou no nome dela? Larguei uma prisão por outra.

— Walmir, você vai perder a merda da hora do trabalho. Deixa de ficar aí moscoiando e vai logo. — A Lucia, demônia, me ordenou. Não posso nem mais ficar deitado no sofá que já incomoda a madame.

— O ônibus só passa daqui a meia hora.

— Não interessa. Você sabe que as contas não param de chegar e precisamos de dinheiro.

— Ajudaria se você arrumasse um trabalho.

— Eu sou mulher. Você que é o home da casa, ou eu achei que era.

— Eu também achei que era. Tá bom, Lucia, eu vou. Só não quero brigar hoje, tá?

Eu peguei minhas tralhas e fui para o ponto de ônibus. Iria mofar lá, mas era melhor que aturar a Lucia.

***

Cheguei ao local depois de mais de 40 minutos de viagem. Afastado. Um projeto de mansão do interior. A desgraça da construção tem três andares. Eu, geralmente, só costumo pegar coisas mais baixas. Odeio altura, mas o dinheiro ta apertado e é a única solução. A única vantagem é que o cara que me contratou deixou a escada para que eu pudesse usar. Pelo que entendi, ele está fazendo isso por uma mulher que conheceu, quer ajeitar a casa para eles. Bom pra ele, espero que tenha mais sorte no casamento dele que eu tive no meu.

— Amigo, eu vou sair um pouco. Você se vira aí sozinho? A casa está aberta, não tem nada ainda, mas o banheiro já funciona. — O cara me avisou.

— Pode ir tranquilo, parceiro, eu me viro aqui.

— Valeu. Não devo demorar. Mais tarde acerto com você o seu dia.

E ele meteu o pé e eu continuei aqui. Prefiro assim. Nunca fui um para ficar de papo furado com patrão, eu nem sei como ficar e papo furado, essa é a verdade.

Ajeitei minhas coisas e coloquei a escada na posição. Só tenho que arrumar uma maneira de prender a lata de tinta lá em cima. Geralmente trabalho em andaimes, mas nem sempre posso me dar a esse luxo e tenho que ser criativo. Amarrei um gancho no último degrau e, como a lata tem alça, eu posso prender lá. Não é o mais indicado, mas é o que tem.

***

— Ô, Amigo!

Tomei um susto que acabei balançando na escada. Vi tudo em câmera lenta, o balde de tinta caindo e acertando o cara na cabeça. Puta que pariu! Matei o desgraçado.

— Não, não, não... — Desci a escada o mais rápido que consegui, dado a minha tremedeira. — Não...

Eu abaixei perto dele e vi que a tinta espalhada, de azul, já estava ficando meio arroxeada. Olhei e vi um enorme corte na cabeça dele. Não, não, não, não...

— Cara, não faz isso comigo, acorda. — Pedi e mexi nele tentando acordá-lo, mas nem se mexia, nem um respiro. — Puta que pariu! Preciso de ajuda. — Sentei no chão e chorei. Não conseguiria fazer nada.

Porra, um celular! Eu não tenho, mas o cara devia ter um. Comecei a vasculhar nos bolsos dele pra ver se achava e o achei no bolso da frente da calça, estava prestes a ligar para a ambulância quando vi a Lucia parada na minha frente e me olhando com a boca aberta.

— Seu filho da puta! Por que você tinha que matar o Gustavo? — Ela perguntou enquanto corria em minha direção e me socava no peito.

— Quem é Gustavo? — Perguntei enquanto segurava os braços dela. Ela não é grande, mas tem uma força desgraçada.

— Não se faça de idiota! Você sabia que eu ia te largar, não é? Como descobriu? — Ela me largou e foi abraçar o cadáver, eu acho que o cara morreu.

— Gustavo...

Então as peças se ligaram, o Tico e Teco funcionou. Puta que pariu um milhão de vezes. Eu matei o amante, que eu não sabia que era amante, da minha mulher.

— Lucia?

— Cala a boca! Vai se foder seu desgraçado, filho da puta! — Ela saltou para cima de mim e, mais uma vez, começou a me bater. — Você não precisava ter matado ele... Eu não ia te deixar tão na merda, ia ficar com a casa, mas deixaria você levar um pouco da poupança... — Falou enquanto deixava as lágrimas rolarem.

— Você ia me deixar por ele? — Perguntei perplexo enquanto gesticulava para o cadáver do falecido.

— Claro que eu ia! O Gustavo ia me dar uma vida que você nunca seria capaz de me dar. Ele ia me levar para fora daquela espelunca que você chama de casa!

— Aquela espelunca é a mesma de quando você aceitou se casar comigo.  Você gostava dela. — Falei fracamente.

— Eu não sabia o que era bom... Eu vou ligar para a polícia e te acusar!

— Foi um acidente! A lata de tinta caiu na cabeça dele, não tive culpa.

— E você acha que os policiais irão acreditar em quem quando eu falar que o Gustavo ia ser o meu futuro marido? Que eu ia me separar de você? Eles vão ligar os pontos, Walmir, irão acreditar em mim.

Pela primeira vez na minha vida, tive uma ideia boa, talvez ousada, mas não poderia deixar me prenderem uma terceira vez, dessa vez, com a restrição da minha liberdade física.

— Me acuse e eu falo que o matei por ordem sua.

— O quê?!

— Falo que você foi a mandante. Tá na cara que o cara tinha dinheiro. Eles podem até não acreditar em mim, mas você vai querer realmente correr esse risco? Se você me foder, eu te fodo junto.

— Você não ousaria...

— Não? Eu descubro que você está me colocando os cornos na cabeça e acabo por matar, acidentalmente, o seu amante. Não me teste, Lucia, eu não vou ser preso de novo, nem por você e nem por ninguém.

Ela me deu uma fuzilada com o olhar e voltou a olhar para o cadáver. Eu não tinha ideia do que passava pela mente daquela desvairada, mas não queria descobrir. Só quero acordar desse pesadelo que estou.

— O que você falou é uma possibilidade. Se ligarmos para a polícia, eles podem achar que planejamos isso tudo. Eles irão investigar e podem me ligar com ele. Não sou ré primária. Já fui presa uma vez por porte de drogas e eu também não vou presa. Temos que nos livrar do corpo.

— O quê?! — De todas as coisas que pensei que ela iria falar, a última delas era que nos livrássemos do defunto. Porra, eu nem mesmo sei se o cara está realmente morto.  E que história é essa de porte de drogas? Ela nunca me contou isso.

— Vamos nos livrar do corpo.

— Eu não vou fazer isso!

— Você o matou, você vai me ajudar com isso.

— E como pretende que façamos? Não temos nem carro para isso!

— Tem razão. Esquartejar, talvez? Poderíamos levar em partes.

— Não! — Falei com horror. Com quem me casei? — Eu não vou despedaçar um cara que nem tenho certeza que está morto e mesmo que tiver morto.

— E como pretende se livrar dele, gênio?

— Eu não sei, mas eu não vou esquartejar isso.

— Você sempre foi um frouxo, não é?

— Não querer esquartejar alguém não é ser frouxo.

— Assim como seguir as ordens da mamãe também não é, não é Walmir? Você, antes que eu te conhecesse, nunca teria tido a coragem de sair da casa da sua mãe.

— Não meta minha mãe nisso. Ela pode não ter sido a melhor pessoa, mas ainda continua sendo a minha mãe.

— Vamos esquecer a sua mãe e nos concentrarmos aqui no que interessa.

Eu fechei os olhos um momento, na esperança de que tudo isso fosse um pesadelo, só para abri-los com um grito estridente da Lucia.  O motivo do grito era um enorme cachorro, amarelo claro e todo sujo de tinta e sangue, lambendo o defuntinho.

— Segura esse bicho, Walmir!

— Por quê? Eu sempre tive medo de cachorros.

— Ele está coberto de evidências. Se a polícia o pegar, fodeu.

Engoli o meu medo e me aproximei do animal. Ele é grande, mas parece que só tem mesmo tamanho. Até começou a abanar o rabo. Tirei o meu cinto e enrolei no pescoço dele. Aparentemente, é manso.

— O que fazemos com esse cachorro agora? — Perguntei com raiva.

— Ele é uma evidência. Temos que nos livrar dele também.

— Eu não vou matar um cachorro. É só dar um banho e tirar essa sujeira dele.

— Pra eles passarem aquela luz azul e verem que ele estava cheio de sangue? Não.

— Isso é Brasil, porra, não é igual aquelas séries que você gosta de assistir. A nossa tecnologia não é tão avançada.

— Eu não vou arriscar. Ele vem junto. O descartamos junto ao corpo. Há uma mata atrás da casa, talvez pudéssemos cavar um buraco ou queimar o corpo.

—E como sugere que o levemos para lá?

— Não dá pra carregar?

— Ele parece ser mais pesado que eu, não tenho certeza de que vou aguentar. E se arrastar?

— Pra deixar uma trilha de sangue?

— Enrolamos ele em alguma coisa. Há de ter alguma coisa na casa.

— Vá ver.

Eu, como um bom cão mandado que sempre fui, fui ver. Rodei todos os cômodos, mas a maioria estava vazio, sem móveis. Apenas um tinha um colchão inflável no chão com um cobertor e alguns pacotes de camisinha sobre ele. Que romântico! Iriam meter na própria casa que eu estava pintando. Não sei como reagir a essa descoberta, deveria ficar feliz pelo cobertor que agora tenho para enrola-lo, mas não é a melhor das sensações saber que sua esposa te trai com outro.

— Achei isso. Acho que ele estava preparando uma noitada para vocês. — Falei antes de jogar o cobertor para ela.

— Essa era a noite que comemoraríamos a compra da casa que seria nossa... Eu te odeio, Walmir!

— Estou começando a retribuir esse sentimento. Vamos fazer isso rápido.

Com a ajuda dela, enrolamos o corpo. Estava morto, tenho certeza, estava ficando gelado e meio duro. Deus, o que fiz?

— Temos que limpar essa tinta e sangue do chão. — Ela observou.

— E como acha que eu faça isso? Eu não vou cavar essa terra com a mão.

— Procure algo. Ele deve ter deixado alguma coisa que podemos usar.

— Mas não dá para deixar o corpo aqui assim jogado. Pode passar alguém. Me ajuda aí.

Enrolamos o corpo no cobertor e eu arrastei ele até a garagem.  A Lucia veio arrastando o pobre cachorro. O cara era pesado. Eu sei que não sou muito pequeno, mas ele me ganha.  Olhei em volta e vi algumas ferramentas de capinagem,  uma foice, facão, enxada e, graças aos deuses, um carrinho de mão.

— Me ajuda a colocar o defunto no carrinho. — Falei para a Lucia.

— O quê?

— O carrinho de mão. Me ajuda a colocar o seu amante ali. Eu não vou conseguir carregar isso até o meio da mata.

— Rápido.

Com esforço, colocamos o corpo ali. Seria uma cena engraçada se eu não estivesse a ponto de ter um treco.  Ele, grandalhão, ficou com as pernas para fora e um braço meio caído que tive que ajeitar.  Como minha calça estava larga e caindo, peguei um pedaço de corda que estava ali junto, amarrei no pescoço do cachorro e peguei o meu cinto de volta. A Lucia me olhava com uma cara de incredulidade, como se não acreditasse que eu estava realmente preocupado com a minha calça caindo, apenas ignorei e fechei o cinto. Eu é que deveria estar puto aqui. Matei a porra de um homem, descubro que estava sendo traído no mesmo dia e agora tenho um corpo para me livrar. A ignorando, mais uma vez, peguei a enxada e um balde e fui recolher a terra suja com sangue e tinta.

— Pelo menos você pensou em uma coisa certa. — Ela comentou com ódio enquanto eu enchia o balde.

— De que adianta sumir com o corpo e deixar o chão sujo?

Recolhida toda a evidencia, despejei o balde em cima do cadáver. Coitado, nem morreu direito e já está sendo enterrado... Enfim.

— Você leva o cachorro e a enxada. Eu não vou ser o responsável pelo que acontecer com ele e nem vou matá-lo. Já basta uma morte na minha consciência. — Alertei.

— Então admite que matou?

— Eu não admito porra nenhuma, Lucia. Foi um acidente. Você que é doentia o suficiente para querer esconder isso.  — Gesticulei para o defunto.

— Se você não tivesse matado ele, não teríamos um corpo para esconder.

— Por Deus... Podemos calar a boca e ir logo? Já é ruim o suficiente o risco e o medo de nos pegarem.

Ela soltou um bufo e fez um gesto teatral para a porta. Sempre dramática...  Antes de sair com o carrinho do defunto, olhei lá fora para ver se não tinha ninguém por perto. Tendo essa certeza, comecei a empurrar. A mata é uma coisa meio fechada e o terreno irregular, mas, por sorte, não é lamacento e dá para andar, mesmo que com dificuldade. Tem uma trilha, mas daria muito na cara enterrar o cara ali perto. Depois de um tempo de caminhada, entramos na mata fechada. Ali o carrinho já não passava e eu tive que arrastar o corpo pelo caminho. Andamos até perdemos a trilha de vista e a Lucia decidir que seria um bom lugar para desovar o defunto. Eu tenho meus princípios e não acharia bom simplesmente deixar o cara assim jogado, mesmo que ele estivesse me tacando a bola nas costas. Peguei a enxada e comecei a tentar fazer um buraco no chão da melhor forma que conseguia, não seria um exemplo de cova, daquelas que você diga “Mas que cova!”, talvez até um pouco pior que uma cova rasa, mas é melhor que apodrecer ao relento com os bichos te comendo.

— Vai demorar com isso? — A Lucia me perguntou depois de uns momentos.

— Você quer que ele fique aparecendo? Já tentou cavar uma cova com uma enxada?

— Pegasse uma pá.

— E tinha uma pá lá na casa do seu amante, não é? Não enche a porra do saco, Lucia. Deveria pelo menos me ajudar.

— Você matou, você se vira.

Bufei, mas não dei mais corda. O dia já está ruim o bastante para ouvir os reclamos dela.

Depois de mais de uma hora, eu fiz o maldito buraco. Não estava perfeito, enchi minhas mãos de bolha, mas, puta que pariu, eu estou orgulhoso de mim mesmo e minha habilidade para cavar um buraco desse tamanho com uma enxada.

— Antes de você jogar o Gustavo aí, mate o cachorro. Melhor aproveitar o buraco.

— Eu não vou matar o cachorro. Não vou fazer parte disso.

— Seja homem ao menos uma vez na vida.

— Não vou. Se você quer matar o cachorro, mate. Eu não farei.

— Frouxa. Segura ele, então.

— Pra quê?

— Você já matou algum animal na vida? Eu costumava matar coelhos para comer. Tem que dar uma porrada forte atrás da cabeça. Ele não vai me deixar fazer isso se puder correr. Segura.

Eu me abaixei e segurei a corda do pescoço dele. A Lucia pegou uma pedra enorme na mão.

— Desculpa, amigo. — Sussurrei para o cachorro e fechei os olhos. Não quero ver a cena.

Senti uma forte mordida no meu braço e soltei a corda. Ouvi um grito da Lucia e, assim que abri os olhos, vi ela caída e um enorme galho saindo da barriga dela e a camiseta, que era um rosa, estava se tornando vermelha.  O cachorro a olhava e não parava de rosnar. Peguei a corda e o amarrei em uma árvore de modo que ele não poderia alcançar ela.

— Lucia?

— Me ajuda...

Sem saber o que fazer, tentei levantar ela. O galho saiu de sua barriga, mas ela começou a cuspir sangue e se debater. Puta que pariu! Merda, merda, merda, merda, merda...

— Vamos te levar para o hospital. — Falei, tentando convencê-la e a mim mesmo. Aquilo não ia sarar.

Peguei o cobertor do defunto e tentei fazer pressão para estancar o sangramento, mas o cobertor só estava ficando empapado de sangue. Eles fazem isso parecer tão fácil nos filmes.  Não sei exatamente quanto tempo fiquei aqui escutando ela pedir por ajuda. Uma hora, os pedidos pararam e ela começou a ficar com a respiração pesada até parar por completo. Ainda levou mais um tempo para que eu me desse conta, acreditasse que agora eu tinha dois corpos ao invés de um. Entre lágrimas, alarguei o buraco e coloquei os dois lá, lado a lado, antes de jogar a terra por cima e enterrar, para sempre, a Lucia e o amante dela.

Eu já não enxergava mais nada, estava um breu. Apenas sentei em um tronco que achei apalpando o chão e chorei, chorei até não ter mais lágrimas para sair.

***

Quando eu acordei no dia seguinte, o dia já tinha amanhecido e eu tremia de frio. O cachorro ainda estava amarrado no tronco da árvore que eu deixei e a terra estava alta onde eu enterrei os corpos. Não foi um pesadelo.  Agora eu não tinha certeza do que fazer, eu não tinha certeza de mais nada, mas sabia que não mataria o cachorro. Ele não teve culpa pelo que aconteceu. Era ele ou a Lucia. Eu o soltei, mas ele apenas me olhou e sentou-se perto de mim.

— Não, amigo, vá embora. Você está livre. — Falei enquanto tentava abanar os braços para espantá-lo, mas ele apenas entendeu aquilo como uma brincadeira e começou a pular em mim e puxar os cadarços do meu sapato.

Deixei que ele se divertisse ali com os meus cadarços e voltei a me sentar no tronco. Eu teria que voltar a minha vida e, pela primeira vez desde que essa confusão começou, me senti livre. É estranho, mas é reconfortante saber que agora eu terei minha própria vida, sem a Lucia para me comandar, sem a minha mãe por perto. Uma casa que é minha, agora que a Lucia morreu. Uma vida onde eu não tenho hora para voltar para casa, não serei criticado pelas coisas que eu compro, terei meu próprio dinheiro, minha própria vontade.

— Ei, matador. — Não é o nome mais original, mas é um bom nome para esse cachorro. Eu sempre tive medo de cães, mas eu nunca tive nenhum para comprovar esse medo infundado. Olhando para esse bicho aqui eu percebo que quero tentar coisas novas. — Você quer ir para casa comigo? Eu não vou te matar, mas tenho que raspar o seu pelo. Essa tinta não vai sair com um banho, mas tenho uma velha máquina de cortar cabelos que deve servir. Não vai ser ruim. O pelo crescerá de novo. Você quer vir para casa comigo?

Eu não sei se ele me entende, mas ele me olhava com atenção. Vai ser uma longa caminhada até em casa, não posso entrar em um ônibus assim como estou, coberto de tinta e sangue e menos ainda com um cachorro, mas isso vai ser o menor dos meus problemas. Eu ainda terei que tomar um banho e ir na polícia dar queixa do desaparecimento da Lucia e torcer para ninguém desconfiar de nada. Ser um ator. Se eu tiver sorte, eu poderei manter minha liberdade e ser livre pela primeira vez na minha vida. Talvez, com o tempo, eu aprenda a conviver com o que aconteceu aqui hoje. O futuro não parece tão ruim assim como me pareceu ontem.

Fim.


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Notas finais do capítulo

Eu gostaria que, se puderem, deixem um comentário com a vossa opinião.
Agradeço por lerem.
Um forte abraço e espero que nos encontremos em outras histórias!



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