Lemonade escrita por Kiih Linnankivi


Capítulo 1
1. Intuition


Notas iniciais do capítulo

Tradução do poema: "Eu tentei fazer de você um lar. Mas portas levam à alçapões. Uma escadaria leva à nada. Para onde você vai quando você se cala?
Você me lembra meu pai, um mágico... capaz de existir em dois lugares ao mesmo tempo. Na tradição dos homens do meu sangue, você chega em casa às três da madrugada e mente para mim. O que você está escondendo?
O passado e o futuro se fundem para nos encontrar aqui. Que sorte. Que puta maldição."

Embora o capítulo não tenha sido baseado na música correspondente ao poema (Pray you catch me), tem a ver com ela. Link: https://www.youtube.com/watch?v=IGgXGcW6_RU



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 I tried to make a home of you. But doors lead to trapdoors, a stairway leads to nothing. Unknown women wander the hallways at night. Where do you go when you go quiet? 

You remind me of my father, a magician... able to exist in two places at once. In the tradition of men in my blood, you come home at 3 a.m. and lie to me. What are you hiding? 

The past and the future merge to meet us here. What luck. What a fucking curse.  

 

Eu estava pensando em colocar um quádruplo nessa parte da música. O que você acha? 

 

Trinta segundos, fim da melodia. Mais um minuto e nenhuma palavra. A falta de resposta me leva a acreditar que Viktor está repassando mentalmente toda a coreografia, procurando alguma consequência negativa da inserção de um novo elemento no programa. Hábito típico de alguém experiente, um verdadeiro profissional. Responsável, como (quase) sempre. Não digo nada mais pois não quero atrapalhá-lo. Sei a concentração que algo assim demanda. Qualquer mínimo deslize na coreografia pode me levar ao desastre. No mais, gosto de observá-lo nesses momentos. Concentrado no trabalho, ele fica ainda mais bonito, se é que é possível. Ainda apoiado na mesa, olho para trás, porém o que vejo não é nada do que imaginei. 

 Com o passar do tempo, aprendi a decifrá-lo. Foi necessário, uma vez que conhecer seu coração não é caminho para conhecer sua alma ou mente. Viktor nunca foi o tipo extremamente atento, capaz de dizer com exatidão o espaço e tempo no qual as coisas acontecem. Não costuma prestar muita atenção no que acontece em seu entorno, a não ser que seja de seu extremo interesse. Há momentos, no entanto, nos quais essa distração é diferente. Profunda, intrínseca. Posso dizer pelo modo como seu olhar se perde, nublado. Seu corpo quase não se move, a não ser por aquilo que é natural que aconteça, quase como se não respirasse. Pelo modo como ele olha a neve cair do lado de fora sem realmente vê-la, esse definitivamente é um desses momentos. Ele não estivera prestando atenção desde o início.  

 Eu amo cada parte dele, ainda que isso implique em ter de repetir as coisas alguns pares de vezes, por mais chato que o seja. Amo sua distração, e o modo como sorri envergonhado quando eu me irrito por ter sido ignorado pelos últimos minutos. Essa falta de atenção, no entanto, costuma ser passageira, e é justamente isso que tem me preocupado. Cada vez mais essa cena é recorrente. Não a distração divertida e passageira que torna cada um dos dias ao lado dele mais divertido e aconchegante, porém aquela que o distancia - não apenas do mundo, mas de mim.  

Depois de tudo o que passamos, não quero ser aquele que cobra dele ou o incomoda. Quero ser o mais próximo do que ele sonhou para a vida, atender a toda e qualquer expectativa. Porém, a conexão que criamos é algo intenso demais para ser ameaçada apenas por um aspecto peculiar de sua personalidade. Algo está errado, grita uma voz no fundo da minha mente. 

 

 — Viktor! 

 
 

 Normalmente, ele se assustaria de um modo divertido. O susto seria seguido por bochechas rubras, um sorriso envergonhado e um pedido terno de desculpas, em um espaço curtíssimo de tempo. Mas nenhum destes veio e a resposta foi lenta. Não houve bochechas rubras ou sorriso envergonhado. Ele apenas vira a cabeça alguns graus, a expressão mantida exatamente como antes. O olhar vazio me atravessa como se eu nada fosse. De todas as possíveis situações do mundo, aquela era a menos provável. Mesmo que tivéssemos problemas, os olhos de Viktor jamais estavam vazios ao cruzar os meus. Sempre brilhavam, algo compreensível uma vez que de acordo com ele próprio, eu mudara toda a sua vida. Ele puxa um cachecol do encosto do sofá. 

 

 — Me desculpe, Yuuri. Conversamos sobre isso depois. Tenho que me encontrar com Yakov daqui a pouco. 

 

 Ele não me dá espaço para questionamentos antes de enrolar o cachecol em volta do pescoço e sair sem se despedir. Isso também está errado. Concordamos não-verbalmente em nunca sair sem nos despedir, porém cenas como esta tem sido recorrentes. De uns tempos para cá, cada vez que ele sai sozinho por aquela porta, meu coração grita. Phichit me disse que isso é intuição. Eu prefiro acreditar que estou enlouquecendo, ou desenvolvendo qualquer distúrbio que possa ser resolvido com alguns anos de terapia e visitas ao psiquiatra. Estamos nos distanciando, isso é evidente. Ainda o amo como na primeira vez que o vi competir, mais de dez anos atrás, mas não posso dizer se o sentimento que ele nutre por mim ainda é o mesmo. 

 Há três anos, deixei toda uma história para trás para viver ao lado dele. Assim como, por um tempo, ele decidiu deixar a Rússia para garantir que eu estaria ao seu lado, eu decidi deixar Hasetsu para viver o resto da minha vida ao lado dele. Há três anos, sem pensar duas vezes, troquei o certo pelo aparentemente duvidoso e vim morar em São Petersburgo. Sem família, sem amigos próximos, rodeado por uma nova cultura e um idioma do qual não entendia nem mesmo o básico, fiz de Viktor meu lar. Era onde, por fim, me sentia pleno e seguro. Em seu coração levantei morada. Com ele, aprendi que lar não é um local e sim um sentimento, e talvez por isso esteja tão inquieto agora. É difícil estar sereno quando após dedicar sua vida inteira ao seu lar, ele simplesmente se levanta e distancia de você. É difícil não se sentir vazio quando seu lar se move o tempo todo e você nem mesmo sabe para onde ele vai.  

 Anoitece. Com um turbilhão me nublando a mente, nem mesmo vi o tempo passar. Sentado no sofá, respiro fundo. Confinado em casa, afastado dos treinamentos por quase um mês devido a um estiramento do ligamento cruzado, não tenho muito o que fazer. Os médicos foram bem claros nas recomendações, e embora possa me mover, o esforço não pode ser intenso. O apartamento está limpo, Makkachin está alimentado e eu não tenho fome. Ligar a televisão é uma perda de tempo, uma vez que não posso entender muita coisa além do "Dobriy vecher" dos jornais noturnos. Dizem que uma mente vazia é oficina do diabo, mas no momento não há muito que eu possa fazer com relação a isso.  

 Cansado, caminho para a cama. São quase onze horas. Puxo o edredom sobre mim. O outono já está no final, e por mais que esteja acostumado à neve, nada se compara ao inverno da Rússia. Como de costume, puxo o celular da mesa de cabeceira. A foto tirada com Viktor em nossa lua-de-mel brilha na tela e me traz a doce lembrança de um momento em que a única preocupação que me afligia era não ter preocupações.  

 Através do Instagram, encontro meu pequeno momento de diversão. Me deparo com uma foto de Celestino dormindo de  boca aberta (tirada por Phichit, é claro); um clique ousado de Chris com uma taça de champagne na piscina de sua casa; Mila no rinque com Georgi. A última foto me prende a atenção. Ao fundo, é possível ver Lilia, Yakov, e alguns outros patinadores, apenas. Yakov parece entretido na conversa com Lilia - algo que mereceria uma atenção maior se eu me encontrasse em condições distintas. Viktor não está lá. 

 Isso pode significar qualquer coisa, mas a voz grita novamente.  

 Às três e vinte da madrugada, percebo que adormeci ao ser acordado por uma luz vinda do corredor e o ruído da porta. Ele entra vagarosamente, pisando com cuidado para não fazer qualquer barulho, mas é traído por um latido alto de Makkachin. Novamente, ele passa por mim como se eu nada fosse, e não posso conter um suspiro pesado. Ele não percebe. Não faço questão de tal. Após alguns minutos no banheiro, ele retorna ao quarto e prepara-se para deitar ao meu lado como se ali estivesse desde o início da noite. Como se pudesse me enganar. Como se ao despertar pela manhã, eu simplesmente não fosse perceber.  

 

  Aonde você estava? 

 

 Dessa vez, Viktor se assustou. Sua pele branca empalideceu como se eu fosse um fantasma. Definitivamente não esperava que estivesse acordado, e talvez este fosse o mais claro sinal de que algo estava errado desde o início. Como poderia dormir sem saber aonde ele estava? Após descobrir que não só ele poderia estar em qualquer lugar, como também estava mentindo? Isso levava minha mente à todas as coisas que Viktor já me disse, todas as promessas que já me fez. Quantas delas foram verdade, e quantas foram vazias? O aperto no peito me consumia por dentro. Ainda que tivesse feito uma pergunta, temia a resposta. Ele mentiria para mim novamente ou arriscaria me dizer a verdade, fosse ela qual fosse? 

 

  Fui me encontrar com Yakov, Yuuri. Te disse isso antes de sair. 

  Até essa hora?  

  Ele precisou de uma ajuda extra com o programa livre da Mila, só isso. Está tarde, então vamos dormir, sim? 

 

 Tudo que pude fazer foi me calar. Não tinha forças para discutir. Algo dentro de mim não me deixava soar necessitado ou mesmo desesperado, ainda que fosse claro que era assim que me sentia. Não quero um relacionamento cheio de desconfianças, nem desejo me portar como um marido ciumento e inseguro que tem a necessidade de saber cada passo do parceiro. Mas o que fazer quando algo parece errado? O quão tênue é a linha entre o apreço e a obsessão? 

 Viktor. Para onde você vai quando se cala? E o mais importante... O que você está escondendo?


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Notas finais do capítulo

Me dêem opiniões e façam críticas! Qualquer dúvida ou comentário extra que quiserem fazer, podem falar comigo no twitter (@wxngjckson) também! Espero que tenham gostado.



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