Prelúdios Etéreos I: A Ascensão escrita por Raffs


Capítulo 17
Capítulo 16




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As noites estreladas eram as favoritas de Dan.

Infelizmente, elas não eram tão visíveis ali. As luzes da metrópole ofuscavam o brilho dos corpos celestes. Mesmo assim, a imensidão azul-escura era uma visão bem melhor que um teto amarelado de concreto. Dan cogitava pintar todas as paredes de seu quarto com hyelits, os símbolos kalari que remetiam à natureza. Mas não sabia se isto era permitido.

A brisa noturna soprou fria em seu rosto. Detestava ter o campo de visão limitado por aqueles gigantescos muros. Sentiu vontade de retornar à torre para onde Thidas o levara duas semanas antes.

Ao pensar na torre, lembrou-se subitamente de Atis.

Só então se deu conta, afinal, de que ela estava alguns metros à sua esquerda, seguindo o mesmo ritual de contemplação do céu noturno. Talvez fosse um hábito intrínseco ao seu povo.

Não conseguia ter certeza se a situação era suficientemente confortável para permitir alguma comunicação entre os dois. Mas sentia-se compelido a isso. Por bem ou por mal, Atis era um poço de mistérios, e Dan tinha em mãos a chance de ouro para desvendá-los.

Aproximou-se dela, que no momento murmurava algumas preces. Eram kalari. Ela não abandonara os costumes nos anos que passou longe.

— Atis?

Ela pareceu incomodada, mas abriu os olhos.

Após alguns longos segundos de profundo silêncio, respondeu:

— Bons tempos em que o trânsito de alunos à noite era proibido.

— Acho que já existem restrições demais aqui. Ou não estaríamos ambos no terraço do Habitares, observando o céu ao invés de descansar. Mas… não cabe a nós decidirmos estas coisas. Certo?

Ela suspirou.

Bons tempos em que me cabia. Agora tenho que correr atrás dos erros alheios, corrigindo imperfeições em que nunca me envolvi.

— Como com o professor Volgard?

Quase que exclusivamente com ele. O que faz aqui, garoto? – ela estremeceu. Calafrios eram normais naquela época do ano – O inverno ainda

não acabou. E você não parece muito bem preparado para proteger-se do frio.

Danyel não gostava das roupas de frio, por mais que os kalari fossem conhecidos pela maestria na produção destas. Os casacos de pele faziam-no sentir-se preso. E já bastava estar numa prisão circular do tamanho de uma cidade.

— Quer saber? Não responda. Cada pessoa vem aqui com seus próprios motivos. E com aqui, não me refiro só ao terraço.

— Não tenho o que esconder. Só não sinto sono. Acho que são os problemas de adaptação aos quais pensei estar imune nos primeiros dias aqui. – apesar de Atis estar coberta por casacos e de luvas, seu pescoço estava nu. Não havia dyalits, mas dele despontava um colar de quartzo roxo – Bonito ashkut. Você que o fez?

Atis pareceu nervosa, pela primeira vez naquele diálogo.

Não. – respondeu da forma mais seca possível, apesar dos olhos arregalados – É um… presente. É coisa do seu povo, não é? Os kalari tem um artesanato riquíssimo.

— Sabe o que o ashkut representa?

— Proteção. Foi o que… foi o que a pessoa que me entregou isto disse.

— Correto. Um ashkut não existe sem outro ashkut. Ele possui este formato de olho, pois representa a promessa de que o dono de um sempre estará observando o dono do outro. E que ele virá para ajudar, caso seu irmão precise.

— Belo. Muito belo. Quase lírico, como a maioria dos mitos kalari. – ela parecia, à sua própria maneira, mais animada. O interesse na conversa havia sido evocado no momento em que Danyel citou o colar.

— Você se engana. Não são mitos. Imagino que a pessoa que lhe entregou isto— pôs o dedo no colar – tenha dito o mesmo. Nunca são só mitos.

— Eu nunca disse que duvidei, Dany… – fez uma pausa desconcertada – Como eu devo chamá-lo?

— Só Dan está ótimo. É como pessoas próximas me chamam.

— Ser o príncipe dos kalari não é uma tarefa fácil, não é? Eu odiaria ser chamada por pronomes de tratamento o tempo todo. Soa tão… artificial. E os kalari repudiam o que é falso.

— Você poderia muito bem ser uma de nós.

— Não fui feita para isso.

— Acho que não funciona assim, mas…

— Olhe. Ulfte está em seu apogeu – ela apontou para o céu, mais especificamente para uma constelação com forma de lobo – É uma marca do fim do inverno.

Preferindo ignorar a mudança brusca de assunto, Dan retrucou:

— Então não precisarei me preocupar com o frio, segundo o que você disse.

Ela não estava muito disposta a rir.

— Sabe o que significa o fim do inverno?

Huh, não exatamente.

— As feras saem de seu sono profundo. É o início da temporada de caça. E os pobres animais menores… bem, é hora deles se esconderem. – disse, serena.

— Isto não se aplica a todas as feras. Os lobos, por exemplo, estão sempre caçando.

— Lembra dos animais menores? Então…

Os minutos seguintes foram de silêncio. Não tão confortáveis quanto Dan gostaria, não tão torturantes como esperava. Atis não parecia disposta a abrir o jogo. E Dan sentia-se estúpido por cogitar que ela fosse mostrar alguma disposição para tal.

Imaginou o que Atis teria feito para chegar ali.

Naquele posto, naquele lugar.

Não deve ter sido fácil ascender a um cargo de tamanha relevância dentro da mais respeitada fundação de todo o Império, quando anos antes ela não era nada além de uma indígena fugitiva.

Mas ela sempre fora esperta. Caso contrário, não teria conseguido fugir.

— Nos meus primeiros dias aqui… muitas pessoas perguntaram o… o porquê de eu estar aqui. E a minha resposta sempre tem algo a ver com uma missão, uma obrigação, um dever como príncipe. Às vezes sinto um pouco de inveja das pessoas que estão aqui por escolha própria. Não que eu não aprecie a experiência de um lugar novo, uma cultura nova, mas eu…

— Você inveja a simples sensação. O poder de escolha. Não se sinta culpado. É mais comum do que parece. A Academia é um lugar para a elite, e você não é o primeiro nobre a tornar-se um acadêmico por razões familiares.

— Bom saber que alguém me entenda.

— Não é exatamente um conhecimento empírico… é mais intuitivo. Quando você tem acesso ao registro histórico deste local, se surpreende com as

personalidades que passaram por aqui.

Era a chance de que Dan precisava.

— Está dizendo, então, que veio aqui por escolha própria?

Sim e não. – sua expressão se fechou novamente – Eu precisava de um lugar, e escolhi a Academia como meu lar. Bem, não foi questão de escolha. Escute, acho que está ficando tarde e frio demais. Melhor seria se voltássemos aos nossos quartos.

Foi quando Dan ouviu a pequena porta gradeada do terraço ranger atrás deles.

Era a garota feciter que ele socorrera dias antes. Dan sabia que já ouvira seu nome, mas simplesmente não conseguia se lembrar do mesmo. Fora um momento de tensão, afinal.

Ele esperou que ela fosse manifestar-se para as duas pessoas presentes, mas, apesar de claramente perceber Dan e Atis no local, ela permaneceu em silêncio e seguiu direto para a sacada, onde debruçou-se, pensativa.

Os dois kalari se entreolharam, silenciosos.

— Mais alguns minutos e o Habitares inteiro estará aqui. – resmungou Atis. – Vocês combinaram de vir para cá ou algo assim?

— Acho que, seja quem for que venha para cá, vem essencialmente pelo mesmo – Dan disse – Um pouco de paz, um tempo para respirar.

— Paz que, aparentemente, não estamos nos dando ao trabalho de conseguir enquanto conversamos. Além do mais, não há tempo para respirar dentro da Academia. Este lugar nunca dorme.

Dan fitou o espaço abaixo de si. Quase nenhuma luz, apenas guardas rondando o território dos muros.

— Parece dormir o bastante para mim.

— Seus sentidos lupinos foram enfraquecidos pelas semanas longe? Ouça.

Um pouco ofendido pela pergunta, Dan concentrou-se em ouvir, embora sequer soubesse ao que ela se referia. Conseguiu ouvir um turbilhão de coisas: o seu batimento cardíaco, o batimento das duas pessoas também presentes, passos, máquinas, algumas palavras, estas distantes demais. Apesar de ter certeza de que eram quase gritadas, à distância soavam como murmúrios.

— E então? Ouviu?

Atis tinha razão. Por fora, o complexo parecia um túmulo. Mas havia ali um organismo vivo. Em especial, no prédio a que chamavam Elareum.

— O que tanto fazem a esta hora por aqui?

Atis sorriu com tamanho desdém que quase pareceu cinismo.

— Às vezes, mais do que durante o dia. Pesquisas, análises, reuniões...Já ouviu falar nos eventos? – Dan permaneceu em silêncio curioso, ao passo em que ela prosseguiu – São organizados geralmente por alunos sem senso algum de ordem. Um eufemismo para festas. Espalham a ideia discretamente como uma faísca, e em duas noites conseguem um verdadeiro incêndio. Uma hora ou outra você será chamado, eu acho. Eles costumam batizar— havia um característico desprezo nesta palavra – os calouros.

— E você não vê problema nisso? Do ponto de vista de uma Oficial?

— O meu trabalho é me preocupar com os problemas dos Oficiais. Os problemas dos alunos ficam para Darkas e seus monitores.

Uma brisa mais fria do que o comum soprou.

— Escute – disse Atis, trêmula – acho melhor você entrar. Ao menos, é o que farei. – de fato, Dan começava a sentir frio – Não pense que estou agradecida por ter me feito companhia – ela se dirigia à porta – Tivemos uma conversa interessante, e foi só isso. – fez questão de frisar as últimas palavras pausadamente.

Danyel ouviu, mais uma vez, a porta ranger.

Diferentemente de como fora com Atis, o silêncio que instaurou-se entre ele e a feciter foi aterrador. Pelo canto do olho, viu que ela rabiscava em algumas folhas de papel. Só não conseguia entender por que alguém deixaria o conforto do seu quarto para desenhar num lugar frio e com ventania.

Resolvido de que já tivera sua cota de incômodo naquela noite, decidiu entrar.

Enquanto caminhava até a porta, porém, ouviu algo.

— Espere.

Danyel olhou para trás.

— Disse alguma coisa? – a pergunta era sincera. Nas semanas em que estiveram ali dentro, foi possível tirar conclusões sobre alguns colegas, e aquela garota parecia muda às vezes.

— Eu só queria… – ela pareceu não saber o que dizer. Seu tom de voz era baixo – Huh, obrigada. Por… por me ajudar no corredor. Algum tempo atrás. Eu não tive tempo para falar sobre isso, e nem você, pelo jeito… Não estava a fim de

atrapalhar você e sua… amiga.

Oh, não se preocupe. – Dan esboçou um sorriso tímido – Não precisava

ter agradecido. Era meu dever. Qualquer um teria tentado ajudar. E aquela… não é bem uma amiga. Mas eu entendo, se tiver… parecido.

— Foi um chute. Ela não soou muito amistosa. – ela parou de desenhar por um instante. Analisou Danyel de cima a baixo.

— Não é uma novidade. Bem, qual o seu nome? Acho que mesmo com quase um mês aqui, ainda não fomos propriamente apresentados.

— Eu já disse. Sophie. Sophie Norne. Você é o… Danyel, não é? – Dan percebeu certo incômodo da parte dela em revelar seu nome.

— Isto. Danyel Kadrach. – Dan poupou-se de estender aquele diálogo com discursos prontos sobre sua linhagem. Percebeu, nos últimos dias, que aquilo era um pouco maçante. – Acho que… acho que vou para o meu quarto. Você também devia. Esta madrugada será bem fria.

— Eu vou ficar bem. Ao menos, melhor do que ultimamente. Obrigada. – ela voltou suas atenções para o papel. Em seguida, olhou para a paisagem ao redor deles. Parecia comparar algo em sua mente.

Resolveu entrar. Apesar de não sentir sono, sabia que o melhor a se fazer era tentar dormir. A aula de Princípios da Diplomacia seria longa, e o professor Amaddeus conseguia ser mais rebuscado que Arulus Valet.

Quando fechava a porta, porém, viu algo que certamente não esperava.

Apesar de manter seu silêncio, Dan arregalou os olhos, afinal, não é todo dia que se vê um projétil de fogo subir aos céus, mais alto mesmo que os muros da Academia, e explodir em diversas cores.


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