Prelúdios Etéreos I: A Ascensão escrita por Raffs


Capítulo 1
Prólogo




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Finalmente, o salão. Um ano inteiro de espera pela escavação, e um estrondo depois, a parede que separava Diklaus daquilo que tanto procurava tornara-se pó. O teto ficava tão alto que era difícil calcular a distância até suas cabeças. Algumas estalactites haviam se formado, indicando o abandono do que antes deveria ter sido um altar ritualístico que abrigou grandiosos eventos.

Diklaus sorriu. A dúzia de homens que o acompanhavam não parecia tão empolgada quanto ele, e muito menos compreenderiam os motivos para seu largo sorriso. Apenas Despot seria capaz de acompanhar seu entusiasmo, mas ele não estava presente. Tinha suas próprias ocupações.

— Xander. – falou, ainda observando de ponta a ponta todo o salão. O espaço devia ter uns mil metros quadrados ao todo.

Xander deu um passo à frente. O rapaz ruivo era o mais confiante dos membros da expedição, sempre disposto a tomar iniciativa e se arriscar. Não era muito forte, mas ágil o suficiente; alguns golpes sofridos e devidamente superados após a última expedição mal-sucedida na Cidade no Horizonte eram provas de que ele era capaz de resistir a algum tipo de obstáculo no caminho entre eles e o final do Salão.

— Uma esfera metálica, certo?

— Pondo de maneira simples, eu diria que é. Mas antes, escute – Diklaus levantou a voz, tentando ser o mais claro possível – Não toque nela. Apenas diga se a avistou.

Xander acenou com a cabeça.

Pisou cuidadosamente nos ladrilhos gastos do salão, verificando qualquer possibilidade de um piso falso. Não parecia haver alçapões. Seguiu por mais vinte ou trinta passos, onde identificou uma alavanca escondida. Ativou-a de propósito, e um pedaço do teto com espinhos caiu a literalmente alguns centímetros de seus pés. Ele parecia zombar das armadilhas. O modo como se esquivava quase se assemelhava a uma dança.

Xander passou inteiro por uma saraivada de flechas aparentemente envenenadas. Mais alguns segundos e sumiu de vista embaixo de um arco de pedra no fim do salão.

Alguns estalos ecoaram pelo ambiente.

De repente, uma estrutura dourada semelhante a um majestoso trono ergueu-se acima do arco, de onde Xander saiu, acenando. No trono, havia uma estátua de ouro sentada.

Xander acenou e gritou algo, sorridente, mas não se fez entender. A dúvida pairou no ar entre todos por alguns instantes, até que Diklaus entendeu e apontou: uma lâmina o havia atravessado, se abrindo a partir da ponta e rasgando ainda mais seu torso ao voltar a seu lugar. Xander olhou para seu sangue manchando o chão e as vestes negras, e então caiu.

Diklaus esperava silêncio fúnebre, mas o astuto Cepheus se pronunciou antes de qualquer ação:

— Ele também desativou a última, não foi?

Talvez ele tivesse razão.

— Cepheus, você e Ronan vêm comigo. Ronan, quero que leve o corpo até Isza. A família de Xander não vai gostar se deixarmos o garoto jogado ali.

— E quanto a nós, Diklaus? – questionou Ivan. – Nos trouxe até aqui para ficar olhando?

— Ora, claro que não. Vasculhem o resto da câmara. Com cuidado. Um passo em falso, e é o fim para vocês, ou para todos nós. E nem todos aqui possuem uma família tão relevante quanto a do cadáver caído ali.

Os homens restantes abriram urnas, se enfiaram atrás de pilares de ouro caídos, derrubaram mais pilares e mataram alguns animais que haviam feito ninhos por ali. Nada muito diferente do que estavam habituados a fazer.

Diklaus se esforçou para emular cada passo dado por Xander. Dera sorte de ter chegado ao fim da câmara na primeira tentativa. Normalmente expedições perigosas como aquela tomavam três ou quatro homens por sala. O rapaz de cabelos vermelhos da casa de Argos era eficiente; faria falta no futuro.

Cepheus descobriu no caminho mais uma alavanca, e quase perdeu um braço por isso; Ronan, apesar de grandalhão, sabia ser furtivo se necessário. Mais três ou quatro minutos de absoluta concentração, e logo os três estavam aos pés do altar que parecia um trono. A lâmina ensanguentada que matara Xander minutos antes estava sendo projetada do abdômen da figura dourada.

A estátua.

Ao olhar mais de perto, Diklaus notou que a estátua sentada era muito mais complexa do que parecia a cinquenta metros de distância: oca, repleta de mecanismos e com um buraco no peito, onde deveria ser o coração. Dentro desse espaço, encontrava-se presa por uma infinidade de mecanismos dourados uma esfera com cores de ouro e cobre, com um palmo de diâmetro.

— Isso parece complicado. – comentou Ronan, puxando o corpo de Xander pelos pés.

— E é. – disse Diklaus, um pouco ansioso demais para falar mais do que duas palavras por vez. – Cepheus…

Desviando cuidadosamente da lâmina, Cepheus também se aproximou da estátua. Analisou com seu tato sensível a esfera. Interpretar ao passar os dedos pelos símbolos em alto relevo de artefatos antigos era complexo para a maioria das pessoas, mas Cepheus fora treinado pela bênção da cegueira.

— Esses símbolos são dos ladir, mas alguns são inéditos. Não sei se posso ler isso. Uma figura pode mudar todo o contexto.

— Já chegamos até aqui. Tente.

Um pouco incomodado, Cepheus passou as mãos mais uma vez pela esfera, quase sussurrando. Apesar de não ver, mantinha um olhar compenetrado.

Nav… A… doença… multidão… peste. Ariost… Luz… seres… luminares. A Peste dos Luminares. E essas duas outras palavras que não tenho a menor ideia do que dizem.

Não era importante. As duas palavras anteriores confirmavam o que era pretendido. Diklaus foi tomado por uma onda de empolgação, maravilhado com o achado.

Os mecanismos, apesar de complexos, não eram difíceis comparados ao que Diklaus sabia de outras expedições. Não foi complicado desativá-los através de cataclismas controlados. A esfera, então, caiu em sua mão. Não era pesada.

— Afinal. – olhou para os dois que o acompanhavam – Levem Xander até a saída. E os outros também. Encontro-os em breve.

O lugar, porém, pareceu discordar da decisão. Imediatamente, o teto e as paredes começaram a tremer.

Ou, se preferir, vem conosco – comentou Cepheus.

Pedregulhos enormes despencaram do teto, a poucos e perigosos metros de distância do trio. Não havia tempo para pensar em desviar de mais armadilhas, então simplesmente correram através do salão, ativando uma série de armas tão mortais que chegavam, por vezes, a ser estúpidas. A maioria, porém, foi ativada longe o suficiente deles (chegando a atrapalhar a fuga de outros homens no lado oposto da câmara) e Cepheus foi atingido por uma pequena rocha na cabeça. Ao passarem através da saída, estava um pouco tonto.

Ivan e Udyr tinham flechas cravadas em seus torsos. Pareciam prestes a vomitar, o que fizeram logo após se jogarem câmara afora. Isza teria ainda mais trabalho, e nesse caso precisaria da ajuda de Naor.

No fim das contas, todos que haviam entrado ali continuavam vivos, à exceção de Xander. E o Códice estava, após tantos anos, nas mãos da Irmandade. Diklaus não pretendia, mas estava mesmo animado com as possibilidades que aquele objeto oferecia.

Atrás deles, se ouviu o estrondo contínuo do salão desmoronando. As paredes douradas e azuis tornavam-se pó, junto com as artes e relíquias dos deuses arcaicos e suas profecias. O sítio estava perdido. Era o preço a ser pago pelo Códice.

— Espero que não tenha esquecido de nada relevante lá dentro. – riu Cepheus.

Diklaus manteve silêncio.

Após caminharem por alguns corredores perigosamente trêmulos e repletos de esqueletos de diversas eras, estavam agora de volta à câmara principal do sítio de escavação. Já descoberta há algum tempo, encontrava-se bem cuidada pelos homens que ali trabalhavam. As antigas tábuas ritualísticas eram usadas agora como mesas e prateleiras. Ninguém, no entanto, encontrava-se sentado por ali. Àquela hora do dia, o trabalho era incessante, e pessoas transitavam de fora para dentro e vice-versa, angariando informações e artefatos de possível importância.

As paredes eram adornadas com o que provavelmente um dia fora uma série de pinturas religiosas. O único símbolo reconhecível, agora, era o Disco Solar. E mesmo tão abatido pelo tempo, o Refúgio de Holygarr já parecia ser muito mais imponente e glorioso que o mais poderoso dos Templos da Ordem, a Grande Academia. Diklaus imaginou como poderiam ser os outros refúgios. Uma lástima que a maior parte deles tenha sido tomada ou destruída pelos antigos homens.

— Onde está Isza? – questionou Ronan, ainda com Xander às costas.

— No assentamento Norte. Leve Ivan, Udyr e Aurlund com você.

— Para quê o velho?

— Ele sabe lidar com gente morta muito melhor do que você, e você é ótimo carregando peso. Vão se dar bem na viagem.

Ronan pareceu incomodado com Aurlund, mas a política de evitar questionar demais ainda vigorava, mesmo que Diklaus fosse o mais brando dos Líderes.

Resolveu sentar-se numa das mesas improvisadas, tomando a primeira bebida quente que viu numa das prateleiras improvisadas. Tinha um gosto amargo.

A reluzente esfera não saía de sua mão direita, que agora repousava sobre a mesa. Uma outra mão tocou a sua.

— O Senhor Gaulle vai gostar de saber das notícias. – disse Alizz.

— Presumo que sim. Se puder fazer o favor, Alizz, diga a Gaulle que ele e o garoto podem se acalmar. Especialmente o garoto.

Ele não gosta de ser chamado de garoto.

— Ainda bem que ele não está aqui para ouvir.

Alizz sentou-se no lado oposto da mesa. Com feição séria como só ela era capaz de dissimular, falou:

— Eles irão querer provas.

— Aqui está a prova. – Diklaus ergueu a mão direita.

— Mais concretas do que isso. Uma ampulheta não pode provar o tempo, da mesma forma que…

— Ah, por favor, não complete essa frase. Isso é coisa que o seu tutor diria.

— O meu dever é agir como o Senhor Gaulle agiria.

Eu sei disso. Não precisa lembrar toda vez.

Odiava ter que fazer aquilo para Gaulle de novo. O homem era um incômodo constante em suas missões, mesmo quando não o fazia em pessoa. Preferia o tempo em que a única pessoa com quem precisaria dividir aquela descoberta era Despot.

— Agora, se quer tanto assim uma prova… – pôs o copo de bebida amarga na mesa, posicionou o Códice bem à sua frente – Se eu fosse você, fecharia os olhos. Isso pode ser mais brilhante do que você espera –  … e usou um pequeno, porém intrincado cataclisma para girar a tranca do objeto, que se abriu. Como previsto, a sala inteira se iluminou.

Alizz tentou olhar para a luz.

Nem tente. Você sabe as consequências – disse com tom grave. – Cepheus!

O sujeito se aproximou. Era assustador como ele às vezes parecia estar em todos os lugares.

— Achei que guardaria o espetáculo para si.

— Acontece que somos todos irmãos, Cepheus. Todos merecemos a dádiva. Não que esta dádiva interesse a muitos de nós.

— O que precisa que eu faça, Diklaus?

Alizz se interpôs na conversa, aparentemente apressada.

— Leia isso, Cepheus. – tinha o braço sobre o rosto, protegendo-se da luz que a esfera aberta emanava.

— Ora, mas que honra. Ou deveria ser uma. – virou-se para Diklaus – Devo… ?

— Apenas faça o que sabe fazer.

— E o que mais gosto de fazer – respondeu, quase cantarolando.

Ele pôs a mão dentro da esfera. Seus olhos brancos brilharam, o que foi surpreendente, mas não duradouro. O artefato pouco a pouco foi perdendo seu fulgor. Cepheus passou um bom tempo daquele jeito, expressando emoções estranhas à medida em que ia interpretando o que quer que estivesse ali dentro.

Murmurava algumas coisas, embora isso já fosse relativamente comum.

De súbito, parou, tirando a mão dali.

— Sinto muito, Diklaus. – disse, ainda com escárnio, porém com um pouco de frustração também.

— O que quer dizer?

— É, o que quer dizer? – questionou Alizz.

— Incompleto. Está incompleto. Isso… isso não é o todo. É como uma página.

— Mas…

— Quer testar você mesmo? Veja – num movimento rápido, Cepheus pôs o indicador na testa de Diklaus.

Visões turvas e excessivamente iluminadas de estrelas, insetos e um homem sendo devorado surgiram na sua mente. As imagens pareciam desconexas entre si.

Quando voltou ao mundo real, teve certeza de que teria uma dor de cabeça terrível pelo resto do dia.

— Não pode ser. – arregalou os olhos. – Alizz, diga a Gaulle que precisamos procurar mais. Cepheus, você vai me acompanhar até Vallerica. Eu e Parelos temos coisas a resolver por lá.

Cepheus pareceu concordar com as ordens até ouvir o nome do zwan.

— Parelos? Vou ter que aguentar o homem até Vallerica?

— A Guarda Púrpura é mais útil do que eu e Despot pensamos. Ele foi meu sentinela no caminho até aqui. Pare de reclamar.

Levantou-se e pegou a esfera. Caminhou a passos largos para fora da câmara. Cepheus, apesar de tudo, fez o que foi mandado.

Alizz os seguiu.

— Espere! Tenho mais coisas a dizer!

— Fale enquanto andamos. Ambos temos pressa. – pegou seu casaco de pele e pôs de volta suas luvas, que encontravam-se na entrada do sítio de escavação.

— O que vai fazer em Vallerica? Não pode ser visto por lá.

— Se Despot vai saber que toda essa expedição no meio do nada foi em vão, que ele saiba de minha boca. Ele não vai ficar nada feliz, mas não é nada com que eu não já tenha lidado. – disse enquanto atravessava a fileira de sentinelas na nevada floresta. Estava levando de volta seus pertences para a sela de Moonlight, seu cavalo.

— Sabe que tudo que foi visto aqui será dito ao Senhor Gaulle, não é? – ela quase gritava. O vento estava forte naquele dia.

— Pelos deuses, Alizz! Eu sei disso! Ele é um dos malditos Líderes! Se acha que eu tenho algo a esconder de qualquer um na Irmandade, por que ainda insiste em me confiar todos os segredos que Gaulle manda contar?!

— Eu só faço o que ele me manda.

O silêncio perdurou.

— Algo mais? – perguntou, montando em Moonlight. Cepheus montara Gaerûl, sua égua-guia – Vallerica é meio longe daqui.

— Na verdade, sim. Despot pediu que sua decisão fosse a definitiva numa questão. Disse que você saberia lidar com isso melhor do que ele – fez uma pausa – O que fazer sobre a garota?

— A fugida?

Ela meneou com a cabeça.

— Envie o jovem que eu indiquei para achar Gruvelhand um ano atrás. Como o caso de Gruvelhand provou, ele é eficiente. E ela não vai ser um problema; não por enquanto. Isso é tudo que você tem para me incomodar hoje?

— Espero que sim.

— Diga aos homens para desmontar esse sítio inteiro. Avise a Emeric que tente mapear novos possíveis Refúgios. Eu preciso ir, Alizz. Tenho a infeliz certeza de que nos veremos novamente.

— Boa sorte acalmando o Senhor Despot. Vai precisar. – ela acenou. Só então Diklaus notou que ela não se incomodava com o frio. Nem sequer estava de casaco ou botas. Mas isso não era digno de preocupação.

A certa distância, o sentinela Parelos aguardava Diklaus e Cepheus, já com os mantimentos na sela de seu cavalo. Ele agitou a mão que não segurava a espada, indicando pressa.

Enquanto se afastava de mais um sítio arqueológico, Diklaus deu adeus a mais uma esperança.


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