Nehav escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Nehav




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Ela estava atrasada. Outra vez.

Deixara-a sozinha por uns segundos e foi isto que aconteceu. Aryale Addams, a sua companheira de quarto, desaparecera. Elize saíra da biblioteca por poucos minutos em busca de uns cadernos de anotações e, quando voltou, nenhum sinal da sua excêntrica colega. Prometeram começar o projeto às 17:30, ela até tinha chegado adiantada. Agora, já passavam das 18:00. Para onde diabos terá ido? Aquela Aryale...

Elize Bohr e Aryale Addams eram amigas de infância. Juntas partilhavam atualmente um pequeno espaço no dormitório da universidade. Ambas estudantes de direito, viveram muitos momentos especiais juntas. Elize lembrava-se perfeitamente da última festa de Natal que organizaram e do divertido Halloween que experienciaram em comunhão.

Este era um mau hábito dela. Tinha a tendência para desaparecer de vez em quando, sabe-se lá para onde. Perdia-se em pensamentos. Era uma jovem curiosa e imaginativa. Uma sonhadora, decerto. Sempre fora assim, desde criança. Era conhecida por ter um amigo imaginário a quem chamava "Nehav". Muitos faziam troça dela, mas Elize respeitava. Afinal, era a sua melhor amiga, e todos temos os nossos defeitos, sejam eles estranhos ou não. Mas o mais preocupante não era isso.

O problema é que Aryale era esquizofrénica. E, apesar da preocupada Elize não o saber, hoje esquecera-se da sua medicação.

 

*

 

O depósito da lâmina na densa massa daquele ser, nos gordurosos orgãos daquela vida, já não mais lhe transmitiam prazer. Fora-lhe dito que era bom, o seu instinto dissera-o. Mas, no fim, estava errado. Estava tudo tão errado.

Deixa os outros. Fá-lo a ti.

A passagem da carne alheia para o próprio corpo não foi morosa, e muito menos indolor. Tinha de ser feito porque Nehav assim o desejava. Nehav, o Sacerdote de Erebus, o Padroeiro dos Sacramentos da Dor, Profeta das Penitências. No interior da sua mente, vivia uma escrava de Nehav, alguém apta a sacrificar todas as carnes que a compunham a si e ao mundo como tributo ao sanguinolento deus. Nehav exigia, Aryale assim o fazia.

E não era capaz de controlar esse impulso que a levava às mais desumanas ações. A escrava vivia dentro de si, nada podia fazer para a travar. A influência era demasiado forte, e as vozes... as vozes...

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A vítima, quer dizer, o religioso sacrifício, era Williams Burford, um professor que já trabalhara com alunos mais novos e que só há pouco tempo se decidira aventurar com os jovens adultos universitários. Ensinava matemáticas. Algebras, funções, trigonometrias. Era obeso e desinteressante. É claro, Nehav não ficara satisfeito.

Era por isso que tinha de oferecer a sua própria vida ao deus dos mutilados, santo benfeitor dos masoquistas. Era por isso que, com aquela pouco prática faca de cozinha, decidira cortar o pulso esquerdo.

ARYALE!

Não. Pelos vistos, não o poderia fazer. Alguém mais entrara na casa de banho reservada aos professores. Era Elize. Elize Bohr... o nome parecia-lhe familiar...

Ary, Ary? Estás aí? Ela está ali, não está? Mata mata! Eh eh. Mata mata.

Lentamente, ergueu a sua arma pouco ortodoxa. Ainda bem que aparecera um novo cordeiro para alimentar o todo-poderoso. A sua vida fora poupada.

Aryale não era capaz de controlar o seu corpo. Na sua perspetiva, era uma outra presença, algo como uma personalidade completamente distinta, que ditava agora os seus movimentos. Nunca ousaria domá-la, conhecia muito bem o risco disso. Uma vez, tentou. Nessa vez, conseguiu impedir-se de praticar o homicídio, foi capaz de travar mais um daqueles satânicos rituais. Em vez de matar o alvo, deixou-o preso num edifício abandonado que conhecia muito bem até conseguir acalmar o demónio assassino que existia dentro de si. Drogara o pobre homem, na esperança de que ele permanecesse inconsciente enquanto esperava. Mas, quando voltou, Nehav ganhara na mesma. Ele estava morto. Tentara fugir e fora completamente obliterado. O cadáver estava completamente triturado, pedaços gelatinosos de intestino cobrindo o chão acimentado do corredor que conduzia à única saída.

Se tentasse tomar o controlo seria pior. Seria sempre pior.

Não tentes, menina. Não tentes, não. Ah ah ah...

FAZ FAZ FAZ

Já matara imensos. Uns seis. Nehav exigia sete. Faltava um e o plano era ser ela própria. Mas agora, Nehav desejava Elize. Nehav ansiava pervertidamente por aqueles cabelos ruivos. E a psicopata dentro de si, essa, deixava-se levar pela corrente. Os desejos do Sacerdote eram ordens. Tinha de ser feito. Mais cedo ou mais tarde, acabaria por acontecer, Nehav certificar-se-ia disso. Era agora ou nunca. Agora ou nunca.

Agora ou Nunca.

Agora agora agora agora agora agora agora agora agora

E lançou a lâmina ao ventre da sua colega indefesa. A ferida espirrou pouco sangue pois a faca manteve-se firme no local, travando uma hemorragia mais forte. Elize nem reagiu. Estava demasiado atordoada com a terrível visão que tinha à sua frente: os órgãos vitais de Burford espalhados por toda a casa de banho, uma mensagem escrita a sangue no espelho  –  "Bellaska, estou aqui.".

Ainda podia travar isto. Talvez ela sobrevivesse aos ferimentos. Talvez ela...

Ary, não gostas de mim?

Claro que gosto...

ENTÃO FAZ

Claro que faço.

E deixou a faca ali espetada. Com as unhas, esforçou-se por tentar romper a pele do próprio pescoço. Tinha de ser, alguém tinha de morrer. Alguém tinha de morrer e...

Mas, nesse preciso momento, a polícia entrou. Elize chamara-os a tempo porque já previra o pior. Uns dias depois, estariam ambas bem. Uns dias depois, estariam as duas amigas chorando, abraçadas uma à outra, não no quarto que partilhavam, mas num quarto de hospital. Uns dias depois, Aryale suicidar-se-ia num hospital psiquiátrico.

E, no fim, Nehav ganhara a batalha.

 


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