Sapatinho de Cristal escrita por Folhas de Outono


Capítulo 6
Capítulo 6




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Quando chegou o horário de ir para a loja, coloquei a caixa do vestido, a fita e o colar na cesta da bicicleta e fui em direção ao trabalho. Abriríamos mais tarde a loja hoje, já que Alice também tinha levado parte da manhã para fazer a unha e tudo mais que achou necessário. De acordo com ela, só deixaria os cabelos e maquiagem para fazer a noite, assim não estragariam no decorrer do dia. E quem disse que ela se importou no atraso que isso acarretaria a loja? Ela estava animada de mais com “O” acontecimento de pelo menos das últimas três décadas para se importar com isso. Não pude deixar de rir desse pensamento, a baixinha estava mesmo animada com tudo o que envolvia o aniversário do príncipe.

CAPÍTULO 6

Não levou mais que um par de horas para que o vestido parecesse outra peça, uma digna de uma Lady da corte. Ao experimentá-lo ficou claro em minha mente que ninguém jamais pensaria que um dia pertenceu a uma moça da vida, nem que hoje pertencia a uma lavadora e faxineira. Eu poderia facilmente me misturar ao restante dos outros convidados. O guardei com cuidado entre papéis ceda depois de me despir, e devolvi a cesta da bicicleta.

O restante do dia na loja foi lento, todas as moças já haviam comprado seus vestidos e estavam em SPA´s ou cuidando dos últimos detalhes, por isso Alice decidiu fechar a loja mais cedo que de costume, me dispensando para ir para casa.

Pedalei freneticamente pelo caminho, aproveitando o vento que sacodia meus cabelos. Estava ansiosa por ter eu mesma alguns momentos de beleza, mesmo que consistissem em apenas lavar os meus fios com produtos cheirosos, passar cremes perfumados em minha pele e me dar ao luxo de um banho quente na banheira do banheiro principal. Afinal, quando os gatos saem de casa... E dessa vez, eu tinha certeza que esses felinos passariam muito tempo fora esbanjando dinheiro que não tínhamos em mais tratamentos de beleza por acreditarem piamente que conseguirão algum nobre para desposar minhas amadas meio irmãs.

Ao chegar, a primeira coisa que fiz foi estender o vertido na cama para que não amassasse. Depois, coloquei uma música bem animada por toda a casa, mas antes de chegar ao banheiro para encher a tina, ouço um toque vindo do meu celular, anunciando uma mensagem que havia chegado.

Provavelmente é da Alice.

Peguei o aparelho e qual minha surpresa ao perceber que não era minha amiga e sim Lady T. pedindo perdão por ter esquecido de anexar na geladeira, junto ao aviso de sua saída, a lista de tarefas. E que lista! Ela provavelmente queria garantir que eu não sairia hoje. Sinto meus ombros caírem ao passar o dedo na tela para ver a lista.

Ela não havia poupado esforços. Pelo contrário, havia colocado cada item que provavelmente conseguiu imaginar. Desde polir a prataria que ainda nos restava até a cortar a grama e lavar toda a roupa de cama de todos os cômodos. Teria que ligar para Alice cancelando tudo, eu provavelmente só dormiria ás uma da manhã, no entanto não seria por causa da festa e sim por causa de Lady T. Uma hora da manhã se tivesse sorte e se começasse imediatamente a fazer o que estava na lista, do contrário, poderia ir muito além disso.

Alice atendeu logo após o terceiro toque.

— Oi Ella, aconteceu alguma coisa?

—Na verdade, Alice, aconteceu sim. – suspiro- Não vou poder ir ao baile.

Silencio.

—Como? Não estou entendendo. Não vai poder ir ao baile? Mas, porque?

—Lady T. me deu uma lista tão grande de tarefas que jamais poderia cumpri-las se sair de casa.

—Aquela naja! Fez de propósito!

—É bem possível mesmo. De qualquer forma, obrigada pela ajuda com o vestido. Usarei em outra ocasião.

—Outra ocasião? Não mesmo! Eu já sei o que fazer. Espere um momento e daqui a pouco chego na sua casa. – Alice desligou assim que terminou de pronunciar a última palavra.

Me permiti esperar sentada. Não havia muito o que fazer mesmo. Ou melhor, havia muito o que fazer, e este era o problema. Não foi preciso esperar muito mais de quinze minutos para soarem algumas batidas na porta anunciando sua chegada. Para minha surpresa, ao abrir a porta, pude constatar que Alice não estava sozinha. Atrás dela estavam três adolescentes, dois por volta dezesseis anos e um mais atrás, o mais novo, com uns quatorze. O primeiro, bem franzino e pálido, carregava consigo um balde e um rodo. Já o segundo estava com um espanador de cabo comprido e uma espécie de grade, cheia de garrafas com o que pareciam ser produtos de limpeza. O mais jovem, por sua vez, carregava um aspirador de rodinhas.

—Olá. – Cumprimentei, meio hesitante, sem conter a expressão de estranhamento em minha face.

—Ella, esses são meus primos. – Afirma, antes de se aproximar um pouco mais de mim e completar – Eu fiz um favor para eles e os garotos ficaram me devendo. Mas não se preocupe, eles são ótimos nisso.

—Nisso o que? – Não contenho a pergunta.

—Ora... limpeza doméstica!

—Obrigada Alice, mas realmente não é necessário. E se eles fizerem algo de errado será ainda pior. – Sussurro, como se lhe desse uma bronca. A verdade é que a perspectiva de deixar esses garotos estranhos por conta disso, me aterroriza. E se algo quebrasse? E se ficasse mal feito? Então, eu seria lembrada disso pelo resto de minha vida com elas.

—Fica tranquila, eles já fizeram isso antes para os veteranos do time de Rugby da escola. Ficaram tão bons nisso que aposto que o resultado vai ser quase que profissional.

—Se você tem tanta certeza. – Me rendi- vamos lá ajudar.

            Mesmo sendo cinco, foram necessárias algumas horas para tudo ser feito. Mas assim que terminamos, os garotos se foram juntamente com minha amiga, e eu me pus a me arrumar. Não daria tempo de fazer o que eu pretendia no início do dia, o tempo estava muito apertado. Então apenas tomei um banho quente, sem nem mesmo poder lavar meus cabelos, e fiz cachos nos meus fios. Passei uma leve maquiagem que acentuassem meus olhos e um perfume levemente doce, com cheiro de rosas. Quando, porém, estava pronta para me vestir, ouço passos e uma animada conversa surgir na sala.

            Sinto a apreensão brotar da ponta dos pés até o último fio de cabelo, quase como uma água que começa a fervilhar em uma cafeteira italiana.

            Visto-me depressa e por cima do vestido coloco um roupão. Só diria que estava convidada para ir ao baile no último momento. E então, esperei. As três mulheres estavam tão alvoroçadas que nem perceberam que me mantive escondida durante todo esse tempo no meu quarto.

            No entanto, perto das seis, quando percebi que elas estavam de partida, respirei fundo por alguns momentos e abri a porta, saindo rapidamente para não correr o risco de passada a coragem, não ter conseguido sair se quer daquele cômodo. Respiro profundamente de novo e me dirijo a sala onde as três já estavam reunidas para sair no carro que fora alugado.

            -Estou pronta. – Chamei a atenção para mim.

            -Pronta para que, querida?  - Inquire Lady T.

            -Para a festa. Sei que não me enviaram um convite, mas eu consegui outro para ir. Então podemos ir todas. – Tudo bem, o que eu queria mesmo dizer é “sei que roubou meu convite, mas eu te superei e vou mesmo assim para esse baile”, mas me contive.

            Posso ouvir minhas meio irmãs sussurrarem com minha madrasta, esvoraçadas. Provavelmente pedindo que não me fosse permitido ir. Drizella chega a bater o pé no chão antes que Lady T. as silenciasse ao erguer a mão direita.

            -E as tarefas, Ella querida? – Perguntou-me a madame.

            -Já cumpri todas elas.

            O silencio instalou-se no local. Lady T. suspira em desistência, porém mal dou um passo e meus tímpanos são atacados com um grito agudo de Anastácia, me fazendo congelar. Todas a encaramos, enquanto avança em minha direção. Dou alguns passos para trás, assustada com a feição transtornada da garota.

            -Você! – Gritou novamente, quando alcançou a distância de apenas um metro de distância de mim. – Você roubou a minha fita! Sua ladrazinha.

            Com uma força que jurava nunca ter visto antes, Anastácia tenta arrancar a barra do vestido, me fazendo andar mais alguns passos de costas. Sua voz estava carregada, a menina não parecia em nada uma dama da sociedade civilizada. Na verdade, ela quase não parecia mais uma mulher, era mais algo como um bicho feroz indo à caça. Seu rosto porcelana estava vermelho, parecia quase se inflar de raiva, como um balão de aniversário.

            -Ei! Essas são as pedras do meu colar! – Afirma Drizella, avançando também em minha direção.

            Sinto-me ser jogada ao chão e mesmo erguendo os braços para proteger meu rosto, sinto meus cabelos serem puxados, minhas mangas arrancadas e a saia do meu vestido que antes ia até o cão, diminuía cada vez mais de tamanho conforme os sons do tecido sendo rasgado alcançava os meus ouvidos, fazendo meu coração se afundar cada vez mais em meu peito. E então, um assovio faz tudo parar. Ouço passos e a porta sendo fechada.

            Descubro meu rosto, abaixando minhas mãos mas permaneço algum tempo alí mesmo no chão, mal acreditando no que acabara de acontecer. Ao me levantar, senti cada uma de minhas vértebras estalarem e minhas costas doerem. Meu joelho, levemente ralado, tinha resquícios de sangue. Caminhei lentamente até o meu quarto, a fim de analisar-me diante ao espelho, por vezes me apoiando durante o caminho para que minhas pernas não cedessem e se equilibrassem ao menos por mais algum tempo sobre os saltos.

            O reflexo não era capaz de esconder aquele desastre. A prova da selvageria que a poucos minutos me abatera. Eu jamais poderia sair de casa daquele jeito. Meus cabelos mais pareciam um ninho de um passarinho, todo embolado. Uma das alças se rompeu ao ter a manga três quartos arrancada por Anastácia, fazendo com que quase metade do tecido que cobria o colo agora pendesse sobre meus seios. O busto estava cheio de linhas despontando. Prova da brutalidade de Drizella ao arrancar as pedras, como se um gato tivesse me arranhado por completo. E a saia, antes leve e graciosa, agora estava irregular, suja, irreparável.

            Posso sentir o estupor começar a se esvair, dando lugar a raiva.

            Eu não veria o caçador, a final de contas. Nem mesmo isso elas me permitiram. E porquê? Seria por não querem admitir que não importam o quanto elas gastem com aqueles vestidos e tratamentos, na realidade elas não podem nem mesmo pagar uma empregada nem mesmo para arrumas suas camas? Ou seria por não quererem admitir que mesmo posando em frente a nobres e comendo em belos pratos durante o jantar, e mantendo a bela educação, nada mudaria o fato de serem como ovos podres e embolorados por dentro, podres ao ponto de praticamente escravizar a própria irmã? A filha daquele que as deram por muito tempo as regalias que tanto amavam, apenas porque lhe fora pedido? Ou seria pelo simples prazer de me ver miserável? Nada lhes custariam me permitir uma única noite de descanso desta realidade enfadonha.

            Minhas mãos coçam de ódio. Lágrimas escorrem de raiva. E então eu me lembro dela. Minha mãe. E tudo para, mesmo que por apenas um instante, me sinto vazia de sentimentos de novo, logo antes de que uma nova enxurrada me atingisse. Dessa vez, governada pela tristeza. Estava, a final de contas, arruinado. O vestido, a única coisa que ainda tinha dela, jamais voltaria a ser a mesma. Eu jamais poderia me casar com ele como ela um dia se casou. Eu não poderia nem mesmo usá-lo para situação alguma.

            As lágrimas voltam, dessa vez, umas seguidas das outras, e me permito abrir mão do meu auto-controle por alguns momentos. Meu coração se contrai, me fazendo arfar e meus joelhos sedem se rendendo ao dilúvio interno em que me afogo. Logo passo a ser tomada pelas lágrimas, seguidas pelos soluços. Mas não tento me forçar a me acalmar, pelo contrário, eu me permito chorar.

            Choro pelo meu caçador que, agora, epera por uma garota que nunca irá ao seu encontro. Choro pela morte de meu pai, pela mão que nunca tive e por aquela que me foi negada. Choro também por mim mesma, por aquela que fui na infância e foi obrigada a se perder, por aquela que é aquilo que jamais quis ser e também por aquela que não serei.

            Chorei até que meus olhos ardessem, mas as lágrimas não houvessem e solucei até que os meus pulmões clamassem pelo ar, pois o que tinha já não era mais o suficiente.

Me permiti ser lavada por dentro. Era assim que me sentia, lavada.

E então, fechei meus olhos e aproveitei a sensação gostosa que o piso frio me proporcionava, quase como se quisesse acariciar minha pele. Respirei fundo e aproveitei a quietude da casa vazia para deixar-me ali mesmo.

Vi as horas se passarem, enquanto encarava o nada, sem nunca me mexer. Sou tirada do torpor quando ouço então um som agudo vindo de cima da cama. Esperei que parece, mas não aconteceu, então forço meus braços a erguerem o restante do corpo e me sento em minha cama, tateando até segurar o celular.

Era uma chamada da Alice.

Não penso duas vezes para atender.

—Alice?

—Ella! Que bom que me atendeu. Cadê você? Vi suas irmãs e sua madrasta aqui na festa, mas não há nenhum sinal de você! Porque se atrasou duas horas? –Inquire preocupada.

—Ah, Alice eu não poderei mais ir ao baile. – Preciso me esforçar para que as palavras sejam pronunciadas. – Me desculpe.

—Como? Porque?

—Você não sabe o que aconteceu... – digo, respirando firme para não recomeçar o choro e nem permitir que minha fraca e rouca voz desaparecesse no meio da sentença. – Quando estava pronta para sair, Drizella e Anastácia perceberam que eu peguei o colar e a fita para por no vestiram e rasgaram ele todo. Mais parece um pano de chão aos farrapos do que uma peça de roupa. Alice, era o vestido da minha mãe.

—Calma amiga, a festa está bombando e não vai ser por causa dessas cobrinhas e da mãe delas que você não vai vir. Eu sei exatamente o que fazer. Agora se recomponha, refaça essa sua maquiagem que, pelo jeito você já estragou, e faça o que eu vou te falar.


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