Sapatinho de Cristal escrita por Folhas de Outono


Capítulo 12
Capítulo 12




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—Precisaremos de um sinal. –Disse reflexiva. – Mas, qual?

—Deixa isso, Alice. É muito mais fácil enviar um e-mail, você sabe né?

—Mas a carta é muito mais romântica! – Não questionei. Primeiro porque eu não ligava muito para isso e duvidava que vai dar tudo tão certo como Alice acredita. Segundo porque ela estava certa, realmente era mais romântico. Seria errado da minha parte pensar isso?

CAPÍTULO 12

            Após longos minutos de reflexão sobre o assunto, quase consegui convencer Alice de que a carta era uma péssima ideia. Quase, porque mesmo depois de fazer uma lista de motivos pelos quais isso poderia dar errado, ela ainda sim insistia com o argumento de que, no final das contas “é romântico! ”.

“Como se isso bastasse! ” Penso comigo mesma.

            .

Lista de motivos pelos quais não devemos enviar uma carta para o Príncipe:

1-Porque não sabemos como fazer a carta chegar até ele. Afinal, certamente as cartas direcionadas a família real são conferidas antes de lhes ser entregue, por questões de segurança.

2-Mesmo que ele receba, não poderia responder. Isso porque jamais poderia mandar uma carta com remetente e ninguém pensou em sinal nenhum que pudesse ser feito e eu tivesse a certeza de que foi ele quem mandou.

3- Mesmo que pensássemos em um sinal e ele concordasse, não poderia ter certeza de que ele cumpriria sua palavra (mesmo Alice dizendo que ele era obrigado pelo código de honra da realeza a cumprir suas promessas, caso ele não o fizesse seria apenas minha palavra e de Alice contra a dele. Não que eu pudesse reclamar com alguém, de qualquer forma).

4-Depois de todo o escarcéu armado na noite anterior, agora não precisava me preocupar apenas com Lady T. e suas crias, mas precisava admitir que todos que comparecessem ao baile estariam observando cada passo que eu desse.  Teria que tomar o triplo de cuidado para não ser reconhecida.

            .          

E esses eram apenas alguns dos maiores problemas que eu teria que encarar caso fosse ao baile novamente. Por isso, eu não iria. Duas noites nesse baile e já rendeu confusão suficiente para preencher a minha cota por uns bons tempos. Provavelmente a lista teria convencido minha amiga, não fosse sua mente extremamente engenhosa.

Fato é que, nem mesmo um minuto se passou e ela já tinha uma resposta pronta para quase todos os itens que eu ressaltei, e apesar da minha insistência, ela se recusou a me dizer seus planos até que a carta estivesse escrita e entregue em suas mãos. Então, fui para os fundos do seu escritório, junto ao mundo de caixas do desfile, me sentei no chão com algumas folhas brancas e uma caneta preta e pensei no que eu deveria escrever.

Foi preciso quarenta minutos e cinco folhas emboladas a mais na lixeira para que eu perdesse a paciência. O primeiro tinha ficado muito coloquial, parecia forçado demais. No segundo, tentei citar alguma frase de livro, mas ficou tão estranho e confuso que eu mesma me perdi quando tentei lê-la. Já na terceira vez, escrevi como achei que deveria se escrever para um príncipe, resultando em um texto engessado e formal que não parecia escrito para ele, não combinava. Mais importante, não parecia ter sido eu a escrever aquelas palavras. Na quarta, eu já nem fazia ideia do que estava fazendo e com um arremesso certeiro, a folha foi direto do chão, onde estava apoiada, para a lixeira. Após a quinta, me vi jogada no chão, frustrada e sem folhas em branco para uma nova tentativa.

Levantei irritada e me joguei na cadeira da escrivaninha, jogando meu pescoço para trás. Inspiro profundamente e solto o ar pela boca, tentando me acalmar. Repito o processo até sentir minha mente livre. Depois, já mais calma, penso no que deveria escrever. Alice havia dito algo sobre ser sincera e pedir para, caso ele concordasse com as condições que eu achasse necessárias, postar ás quatro da tarde em ponto, alguma mensagem discreta, que apenas eu pude entender no perfil de sua rede social (afinal, ninguém além de Alice poderia saber de nada disso ou eu certamente estaria no jornal regional no mesmo dia. Mesmo que não soubessem minha identidade, quanto menos atenção atraisse, melhor).

Suspiro, me sentindo derrotada por uma folha de papel e uma caneta. Por fim, agarro o primeiro pedaço de papel que vejo pela frente e, subitamente irritada, escrevo o que me foi pedido, por vezes sem conseguir conter certo tom irônico.

“Caro Príncipe,

Primeiramente, acho bom deixar registrada a minha indignação frente a nem um pouco educada despedida que me foi dirigida noite passada. Fiquei essencialmente surpresa ao me ver em meio a uma caçada coordenada por Vossa Alteza, especialmente tendo em vista de que o alvo da caçada era eu. Tendo dito isso, tenho de avisá-lo que só poderei comparecer hoje à noite caso me prometa que, desta vez, quando eu disser que tenho que ir, não será feita nenhuma caçada, perseguição, nem mandará ninguém para que siga a minha pessoa. Espero encontrar um post em seu perfil ás 4hr em ponto, nem um minuto a mais ou a menos, me confirmando sua promessa de forma discreta, para que apenas eu entenda. Caso isso não aconteça, teremos que remarcar a visita ás ruinas para não sei qual dia.

Atenciosamente...  ”

Não assinei. Parte porque não saberia como, nem se quisesse, parte porque não era preciso. Ele saberia muito bem quem enviou. Afastei-me da nota para avalia-la. Estava tão impressionante quanto a metade rasgada de folha parda em que foi escrita. Mas quer saber? Estava ótima mesmo assim. Direta e simples. Um pouco rude? Sim. Talvez até um pouco ignorante de minha parte e com certeza não muito simpática. Mas eu definitivamente não estava me sentindo simpática, então por mim está tudo certo.

Dobrei o papel duas vezes e fui ao encontro da minha amiga. Ao entrega-la, percebo que Alice olha descrente o papel, depois me encara como se tivesse acabado de brotar uma segunda cabeça no meu pescoço. Me desculpei mentalmente por destruir suas expectativas românticas, mas em minha defesa, se ao receber ele preferisse que tivesse sido algo fofo, romântico e polido, que pensasse nisso antes de mandar um bando de cavalos furiosos montados por guardas virem atrás de mim. Garanto que não foi nada fofo, romântico e polido da parte dele. Portanto, mesmo ele sendo um príncipe, era merecido e eu nem tinha sido rude de fato. Só um pouquinho irônica, mas isso não faz mal a ninguém.  

A primeira parte do plano de Alice começava com sua recentemente paquera, um dos integrantes da Academia. Ele estava na Orquestra e tocaria a noite, portanto iria fazer um último ensaio no palácio dali a poucas horas. Por isso, talvez e apenas talvez, ele conseguisse entrega-la de forma anônima ao secretário do Príncipe ou deixar na mesa do seu escritório, se tivesse muita, muita sorte. Talvez, e apenas talvez, ele conseguisse entregar a carta. Não que eu ache que essa desculpa de “me foi entregue anonimamente” colaria, de qualquer forma. O príncipe certamente vivia rodeado de guardas, ministros e outras pessoas importantes, o escritório de onde ele resolve os assuntos da nação que lhes é entregue certamente não seria pouco vigiado. E o secretário, caso se quer ouça o garoto, dificilmente receberá o bilhete. Se receber, provavelmente jogará fora antes que seja lido por Henry.  Por tanto, apesar de me sentir meio mal por saber que a confiança exacerbada de Alice no pianista seria frustrada, eu meio que estava feliz por nem precisar dizer não a ela. Henry mesmo diria o “não” no meu lugar sem nem saber, quando não postasse nada ás quatro da tarde.

Sorri aliviada. Poderia passar essa noite de forma tranquila a final de contas.

A manhã foi calma e logo pude voltar para casa na minha bicicleta. Enquanto pedalava, sentia o vento contra o meu rosto e logo depois serpenteando entre os fios do meu cabelo, fazendo algumas mechas dançarem. Mas isso não é tudo. Sinto mais forte ainda a saudades. Saudades porque me lembrava bem dos fins de tarde em que ia para a clareira com a bicicleta e o meu violino. Sinto falta dos acordes soando rente ao meu ouvido. Faço a bicicleta ir mais rápido, quero chegar logo em casa, esperar o trio sair de novo para o salão e aproveitar cada segundo possível com meu velho companheiro.

Ao chegar ao casebre, percebo que ele ainda estava ocupado antes mesmo de abrir a porta. Isso porque ouço Drizella e Anastácia discutindo desde a calçada. Ignoro e apenas sigo em frente, rumo a cozinha para pegar um copo d’água. Lady T. porém é incapaz de fazer o mesmo e logo surge, encerrando a discussão entre as duas com palavras duras sobre elas “não serem capazes nem de dançar com um mesmo homem durante uma música completa antes de serem dispensadas”.  Poderia sentir pena delas, mas não sinto. Ao invés disso, tenho que segurar a água dentro da boca para que não a cuspisse com as gargalhadas que queria muito soltar. Afinal, aquelas duas dançando estava mais para pato do que cisne. Seria surpreendente se o par de dança de qualquer uma das duas sobrevivesse a uma música completa sem ter de deixar os pés destruídos na pista de dança quando terminassem uma valsa. Não quero soar maldosa, mas é verdade.

E todas elas sabem disso.

Não demora para que joguem em mim um papel com uma lista até pequena de coisas para fazer. Provavelmente estavam desesperadas demais para arranjarem um namorado nobre na última noite do baile para escreverem uma lista com a típica satisfação de me fazerem limpar coisas que já estavam tão limpas que se eu as tocasse com um pano, ele a sujaria mais que limparia.  

Seja como for, eu que não reclamaria, então apenas fiz o que foi pedido. Lavei a louça, arrumei a casa para então varre-la e depois passar um pano com bastante produto de limpeza com aroma de lavanda no chão da casa. Fiz as camas, tirei pó dos móveis e por último, limpei a vidraçaria da casa. Guardei os produtos e fui para o meu quartinho. Peguei o violino, fui até a porta e a abri.

Ali mesmo, sobre a soleira da porta, admirando toda a vista de fora, posicionei o instrumento sobre o ombro esquerdo. Por alguns segundos, congelei. Não sabia o que deveria tocar. Estou tão acostumada a apenas deixar a música fluir de mim para o violino que depois de tantos dias sem se quer tocar nele, agora me sinto estranha. Como se o gelado da madeira não fosse uma consequência do tempo, mas de nosso distanciamento.

Decido então, começar com algo lento. Algo que soe delicioso. Escolho Clair de Lune, de Debussy. As notas começam meio entranhas, mas ao entrarem por meus ouvidos, não demoram a me envolver. Logo fecho os olhos, desejando apreciar ao máximo a sensação como de encontrar uma velha amiga, quem sabe um velho amor. Sinto as vibrações envolverem minha mente e meus olhos se fecham. Rapidamente me sinto como se estivesse sendo gentilmente tomada de mim mesma pela música, sendo gentilmente guiada por ela novamente. O som das notas se arrasta para fora das cordas, doce.

Mas apenas Debussy não é o suficiente hoje.

Preciso de mais. Preciso! Mais do que respirar, preciso intensamente das notas!

Agarro o celular do bolso de trás da calça, passo as músicas mais rápido que o costume e coloco a base de piano da próxima música para tocar. Logo reconheço as primeiras notas de Vuelvo al Sur, de Piazzola e espero até adentrar com o violino. Rapidamente me saindo envolvida novamente pela melodia em uma bolha particular onde existe apenas eu e a música. A melodia da valsa começa quase que melancólica, sendo seguida de alguns graves e agudos antes de se tornar mais intensa. Sinto não apenas meus dedos e mão se movendo em perfeita sintonia, como meu corpo todo se meche lentamente, seguindo a música que quase morre apenas para se tornar ainda mais forte, imponente e intensa. Meu sangue se aquece, levando calor a cada uma das minhas células. Depois, a música se acalma. Sinto meu peito se inchar, meus olhos arderem. E então ela morre.

Estou chorando.   

O aparelho começa automaticamente a tocar outra música e me lembro de tê-lo programado para tocar no aleatório na última vez que o usei. Não me importo, porque reconheço as primeiras notas do piano e sei o que está sendo tocando dessa vez também. Portanto, não me incomodo em abrir meus olhos para conferir o título ou mudar a escolha. Apenas posiciono o arco sobre as cordas, me preparando para tocar Nocturne, de Chopin. Não consigo evitar me sentir como um rio gélido e calmo quando as noras agudas iniciais soam, apenas para depois me sentir intensa como o mar. Mesmo sem abrir os olhos, vejo cada uma das cordas vibrarem em frente aos meus olhos, enquanto as notas se recusam a se estender para depois me impedir de findá-las.

Dessa vez, quando o silencio volta a preencher a casa, me permito levantar o arco, lentamente, de sobre as cordas. Solto o ar pela boca, sentindo meu sangue pulsar intensamente em cada uma das minhas têmporas. Retiro o violino e respiro fundo para só então abrir os olhos.

O silencio é interrompido por um som animado. Era a próxima música aleatória que tocaria. No entanto, antes mesmo de fechar o aplicativo de músicas, o próprio celular o faz para em seguida, soar um toque agudo que indicava uma notificação. Apenas abri, sem olhar a mensagem de aviso. Me arrependo, devia ter olhado. Se o tivesse feito, teria me preparado para o que estava vendo. Era uma foto de Henry. Bom, não exatamente dele. Era uma foto postada por ele. A foto não vinha com nenhuma legenda, mas mostrava uma folha parda com bordas rasgadas, sobre uma mesa de madeira, com uma caneta tinteiro ao lado e mais acima uma xícara preta com o que parecia café. Era uma bela foto, mas isso não importava. O que importava, é que no papel havia apenas uma palavra escrita ali.

“Prometo”

Olho no relógio do próprio celular, eram quatro horas.

Suspiro.

Mal podia crer que o pianista realmente entregou a mensagem. Me virei e segui para o quarto. Estava na hora de guardar o violino, precisava devolver o fusquinha lilás e depois limpar e desamassar as várias camadas do vestido, que eu havia deixado na Fary Land.

Parece que eu tinha um baile para ir, afinal de contas.


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