Criaturas – Interativa escrita por Gege


Capítulo 4
Capítulo Dois


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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 Duas semanas depois...

 

Capítulo Dois — O fogo dorme sob as cinzas.

 

 

 

 

O cheiro na cozinha era bom, muito bom.

Na pensão Três Irmãs aquele momento era sagrado.

Primeiro uma pessoa diferente a cada dia escolhia uma receita, a sua favorita ou a que lhe agradasse nos livros de receita da biblioteca. Então, cabia a alguém cozinhar. Qualquer um podia ser o chef do dia, contanto que se voluntariasse. Nas refeições, todos se reuniam e, nesses poucos momentos, mesmo que por uma fração de segundos, ainda conseguiam sentir o gostinho do que é estar em família.

Às vezes tudo o que queriam era não sentir gostinho nenhum, principalmente quando a comida estava ruim. Considerando que nem todo mundo tinha a “mão boa” para preparar um prato saboroso, vez ou outra comiam frango com gosto de nada, sopa com gosto de terra e, pior, fígado com gosto de... Bem, de fígado.

Naquela tarde, para a sorte de todo mundo, Tia Alma estava cozinhando seu famoso prato amazônico. Não era exatamente uma receita sua, mas havia aprendido com uma pessoa muito especial no Brasil. Ah, como Tia Alma amava aquele lugar... Tantas lembranças que seu coração apertava de saudade.

 – Winter! – A mulher chamou com uma mão misturando a comida na panela e a outra apoiada em sua cintura. Sua expressão era a de alguém que acordou em sua melhor manhã. – Pode me ajudar aqui, meu bem?

Winter estava apenas de passagem para a sala de música e seu intuito era passar despercebida. Em sua mente, calculou os prós e os contras de dizer sim ou não para aquela mulher gentil, no entanto, lembrou do quanto era agradecida simplesmente por estar ali. Sem dizer nada, foi até ela com um meio sorriso.

 – Você pode tomar conta disso aqui? Volto em um minuto, vou buscar alguns temperos – Tia Alma pediu, cantarolando alguma coisa e já deixando Winter responsável pela panela no fogo.

A garota então percebeu a situação em que havia se colocado.

— Não, olha, eu não acho uma boa ideia... – Seus olhos estavam cravados no fogo que tremulava abaixo da panela. Seu sangue pareceu se agitar assim como cada partícula de seu corpo.

“Não, não, não, por favor, não...”, Winter não sabia se estava repetindo aquela frase para si mesma ou para a chama acesa, que iluminava a escuridão de seus olhos aflitos. A garota não conseguia tirar seus olhos dela, era como se qualquer passo em falso pudesse causar algo devastador. Como se, por qualquer deslize, se desviasse o olhar por um milésimo de segundo, aquela chama fosse lhe trair.

— Meu bem, olhe para mim, vai ficar tudo bem – Escutou a voz mansa de Tia Alma em seus ouvidos e uma mão tocar seu ombro. – Você está segura agora.

“Ninguém está seguro perto de mim, você não vê isso?”, seus olhos estavam estáticos, como se a garota estivesse em transe. A mente imersa em um conflito profundo. A temperatura do seu corpo magro estava subindo e a chama que cozinhava a feijoada da Tia Alma ficando mais alta, espalhando-se para os lados da panela.

— Winter...

A garota piscou uma, duas, três vezes. Seus olhos estavam ardendo, sentia que iria chorar a qualquer momento. E então caiu em si. Tia Alma segurava firme suas mãos e olhava dentro de seus olhos. Winter se sentiria desconfortável com aquela situação, se ao menos pudesse sentir algo além da agitação dentro de seu corpo pálido e a temperatura elevada demais para um ser humano ainda lhe consumindo.

“Isso nunca vai acabar.” Lamentou, sentindo que ia chorar.

— Nós estamos aqui, meu bem. Nós iremos te ajudar, eu prometo.  – Tia Alma sorriu para ela. Winter não entendia aquela mulher. Nem um pouco. Mas queria acreditar nas palavras dela. No fundo, queria.

As lágrimas despencaram de seus olhos atordoados, mas seu rosto estava tão quente que rapidamente elas secaram como se, até mesmo chorar, fosse algo impossível para Winter.

Sua mente gritava para que ela sumisse dali e foi exatamente isso que fez assim que encontrou forças para se recompor. Não demorou muito, tudo aconteceu tão rápido, embora para Winter a cena tenha se seguido pausadamente, como que para prolongar sua aflição.

Ou para desafiá-la.

Ao fim daquele episódio conturbado, porém corriqueiro na Pensão Três Irmãs, Tia Alma estava com o semblante afetado, muito diferente de minutos atrás. Cada sentimento de seus pupilos era sentindo como se fosse seu.

— Só mais um dia normal, só mais um dia normal... – A mulher massageou as mãos como se estivesse querendo aliviar uma dor. Lembrou-se do porquê de manter aquele lugar de pé.

“Somos uma família agora.”

 

 

[...]

 

 

— Nossa, que cheiro bom! O que tem para comer? – O garoto farejou no ar, satisfeito com o aroma.

Kayden estava um pouco suado, o corpo sentido por causa de sua atividade física diária, mas plenamente pronto para mais. Estava especialmente mais ativo naquele domingo. Tia Alma verificava algo no forno, cantarolando uma música que deveria ser em outra língua, porque o garoto sequer conseguia entender. Para ele parecia espanhol, mas o sotaque era completamente diferente.

— Espero que não seja fígado outra vez – Aquela voz que Kayden reconheceria a metros de distância rosnou em seu ouvido.

— Você não tem moral para falar do meu fígado, Sabrina – O rapaz retrucou, revirando os olhos. Sabrina deu uma boa olhada neles, que assumiam um tom esverdeado naquele ambiente claro. Eram quase do mesmo tom que o dela, mas o verde dos olhos da garota era mais intenso.  – A sua sopa ficou horrível.

Sabrina deu de ombros. Sempre que dava uma boa olhada nela, o rapaz pensava que se substituíssem os olhos da amiga por um par de pequenas esmeraldas, ninguém iria notar a diferença.

— Bem, vocês podem se redimir hoje, o que acham? – Tia Alma cantarolou as palavras no ritmo de uma música que Kayden pensou ser do século passado. Não conteve o riso ao constatar que ela podia cantarolar qualquer coisa. E em qualquer lugar.

Tia Alma sempre o divertia. Era estranho o modo como se afeiçoou a ela. Não só à Tia Alma, mas também à pensão. Sentia que havia encontrado um lar, onde se sentia um garoto normal como nunca antes. Seus olhos analisaram aquela figura feminina atrás do balcão vitoriano de madeira. Tia Alma era uma bela negra, tão exótica que Kayden arriscava dizer que não havia ninguém como ela. Seu gosto por vestidos coloridos era impressionante. Todo dia uma estampa diferente, de culturas diferentes.

— El tesoro de la Amazonía, mi bien – A negra pareceu recitar um poema ao pronunciar as palavras, com um sotaque hispânico meio enferrujado, segurando o rosto do rapaz com as duas mãos.

Kayden instantaneamente identificou o idioma, sentindo-se entusiasmado ao descobrir que Tia Alma também falava espanhol. Só depois soube que ela estava se referindo ao que preparava no balcão, respondendo à sua pergunta sobre o que iriam comer.

— Érr, desculpa interromper, mas eu preciso ir – Sabrina se pronunciou, com o olhar atento à tela de seu celular. Kayden estreitou os olhos para ela.

— Para onde você vai? – Ele perguntou como quem não quer nada. –Daqui a pouco o sol se põe e o jantar fica pronto.

A garota estreitou os olhos verdejantes de volta para ele, pronta para um duelo silencioso.

— Sabrina, meu bem, não quer aprender a preparar novos sabores? – Tia Alma sugeriu, sovando uma massa no balcão com toda sua técnica de boa cozinheira.

— Quem sabe outro dia. Eu estava pensando em dar uma volta, sabe? Mais tarde eu apareço. – Ela disse, já saindo, mas não sem antes olhar sutilmente para Kayden, vitoriosa. Os longos fios roxos, que só combinavam tão perfeitamente em Sabrina, se movimentavam à medida que ela desfilava para fora dali.

O rapaz e Tia Alma trocaram olhares confusos.

— Parece que somos só nós agora – Kayden vasculhou sua mente em busca de seus conhecimentos culinários.

— Vamos para el tesoro, meu bem.

 

 

 

 

 

 

 


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