Criaturas – Interativa escrita por Gege


Capítulo 3
Capítulo Um (NOVO!)


Notas iniciais do capítulo

Dedicado à queridíssima Starlord que me surpreendeu com uma recomendação linda!!!!!

Como falei no comunicado, este é o capítulo que eu acrescentei como um bônus, basicamente. Um pouco de como foi o dia em que a Winter chegou à pensão.
Ainda será revisado com mais calma.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/734895/chapter/3

 

Capítulo Um — Quem brinca com fogo aposta a vida.

 

 

 

Chovia forte naquela noite de sexta-feira e o céu trovejava também. O frio estava mais acentuado e o vento agitava-se vez ou outra sem dó.

Para a maioria das pessoas, noites assim eram perfeitas para se recolherem no conforto de seus lares, saboreando uma boa xícara de café ou uma caneca com chocolate quente; enroscados em camadas de edredons e roupas de frio.

Entretanto, para alguém como Alecsander, isso era um desperdício e tanto de tempo. Se havia algo que o fazia sair com verdadeiro interesse de dentro daquela exímia construção afastada da cidade, certamente era uma boa tempestade se aproximando.

A pequena Cidade Resplandecente, como orgulhosamente era apelidada, fazia jus ao seu nome – Brightville – quando se tratava de manter as aparências, como se todos os dias do ano fossem um verão sem fim e nada – nem mesmo dias tempestuosos e incomuns como aquele – abalasse o resplendor daquela cidadezinha. Talvez por isso seus cidadãos vivessem tão satisfeitos em suas vidas milimetricamente calculadas, sem se darem conta do que acontecia quando ninguém estava olhando, alheios aos mistérios escondidos bem debaixo de seus narizes.

E, subversivos a essa maioria de pessoas e aos próprios rótulos de Brightville, estavam a Pensão Três Irmãs e seus moradores, incluindo Alecsander. Aquela mansão muitíssimo antiga podia ser tão sombria e singular por dentro quanto era por fora e, curiosamente, atraía e repelia presenças quando bem entendia. Enfrentavam seus próprios dilemas enquanto o resto da cidade os envolvia em boatos e lendas locais, sempre por debaixo dos panos. Afinal, Brightville podia ser pequena, mas sabia como esconder seus podres e manter uma boa reputação.

Então, fora de qualquer contexto comum, lá estava Alec em uma das áreas abertas do bosque aos arredores da pensão, com os braços abertos atraindo um raio que caiu majestoso sobre ele; energizando cada partícula de seu corpo forte com uma potência que só poderia provir de uma fonte natural como aquela. O estrondo não o incomodava, tampouco a claridade ofuscante, mantinha seus olhos fechados enquanto aproveitava a sensação revigorante que o inundava.

Passado alguns poucos minutos, o corpo de Alecsander se retraiu completamente carregado e o raio se desfez. Sua pele soltava algumas faíscas elétricas e ele se sentiu muito mais forte, não podendo conter um sorriso de lado. Também estava todo molhado pela chuva que não parava de cair e os ventos batiam em sua pele com frieza, embora não o afetassem muito naquele momento.

Quando decidiu voltar para pensão e olhou em volta, percebeu que algo estava acontecendo.

[...]

A garota se encontrava ensopada, faminta e exausta. Vinha vagando sem rumo pelos lugares há dois dias, mas sentiu passarem tão vagarosamente que pareceram uma eternidade. Há dois dias não dormia ou parava ao menos para descansar.

Ela não conseguia pensar em mais nada além das imagens do fogo se alastrando. O tempo todo. Não sentia seu corpo debilitado, não sentia o frio, a chuva, nada. Apenas movia-se bosque adentro por um impulso de suas pernas. Era como se soubesse o caminho mesmo sem notar.

Tropeçava algumas vezes, sujando-se com a terra lamacenta, os longos cabelos negros grudados em sua pele, encharcados assim como suas vestes. Os dentes da garota batiam de frio, os ventos eram brutos e o bosque parecia revidá-los, contudo, estavam apenas agindo harmoniosamente com a força de sua natureza; tornando a noite ainda mais obscura quando vista mesclada àquele cenário.

Ouviu o som das sirenes ecoando novamente em seu subconsciente.

Viu o rosto dele... Queimando.  A garota o queimou por inteiro. O fogo se alastrou tão depressa e tudo o que ela fez foi provocá-lo com suas próprias mãos, sem conseguir pará-lo. E, a princípio, não queria parar.

Aquele homem... Ela quis feri-lo. Suas mãos queimaram com o ardor de pura lava ao agarrarem, instintivamente, o pescoço dele. Só depois se deu conta do que havia feito e então era tarde demais.

Ela sentiu a adrenalina daquele dia. Sentiu o cheiro da fumaça, o cheiro da pele derretendo, o sentimento incontrolável e percebeu, mais uma vez, a aberração que sempre havia sido.

Sua família estava destruída – ainda mais do que antes – e não havia volta, não havia conserto, nunca superariam tamanha brutalidade da parte dela e sua mãe tinha razão em culpá-la. Ela iria carregar aquela culpa. A culpa era toda dela... Sempre ouviu isso de sua família, só podia ser uma verdade que todos enxergavam menos a garota, não é mesmo?

Ela acreditava ainda mais em tais acusações.

Uma dor aguda a despertou de seus pensamentos depreciativos. Havia pisado com mau jeito e torcido o pé. Ela soltou um gemido de dor, caída sob a chuva forte em uma mistura de lama e folhas. Não conseguia se levantar, não encontrava forças para se reerguer não só do chão, mas também de sua situação desesperançosa.

Pensou que morrer ali seria o mais justo, após assassinar o próprio pai. Talvez, quando achassem seu corpo moribundo, sua mãe soubesse de sua morte e se sentisse em paz por finalmente poder dizer que não tinha mais uma filha. O único irmão que sentiria sua falta sequer saberia de sua morte. A garota não sabia de seu paradeiro, assim como ele desconhecia o dela. Os demais irmãos, pouco se importariam.

Ela fechou os olhos deixando que as lágrimas escorressem por sua face pálida junto aos pingos de chuva. Esperava que, pelo menos uma vez na vida, algo de bom acontecesse e naquele momento só pensava que a solução para ela seria a morte. A morte seria seu único algo de bom na vida.

Enquanto sua consciência ia se esvaindo, ela não sabia se era o limite de sua exaustão ou a morte ceifando sua vida, não sabia também quem estava pisando forte no chão, quem tocou seu pulso e a ergueu nos braços. A garota entreabriu os olhos, mas só via borrões. Borrões do bosque, borrões do homem que a ajudava...

Um sentimento de desespero sufocado ia crescendo na garota, que temia machucá-lo também.

Em algum momento, apagou.

[...]

... e onde ele a encontrou mesmo?

...Não sei. Mas não foi tão perto da pensão. Tia Alma e Betsy estavam acordadas quando Alec a trouxe de madrugada.

...O que você acha que ela é?

...Não sei, Kay. Mas quando toquei nela eu vi fogo, muito fogo.

...Laryssa, Tia Alma pediu que eu chamasse você. Ela está na estufa.

A garota escutava vagamente aquelas vozes, não sabia se era um sonho.

...Tudo bem, Wolfie. Qualquer coisa, podem me chamar.

...Ela... É bonita, não é?

...E você não perde tempo, não é mesmo Wolfgang?

...Estou falando sério, cara. Eu achei... Só estou sendo sincero.

A garota teve a mente desviada para imagens avulsas do incêndio e depois do bosque. Voltou a escutar – entre a sonolência e o único fio de consciência despertada – uma outra parte da conversa:

...Sei. Estou preocupado.

...Com o quê?

...Não sabemos quase nada sobre ela. Quer dizer, não é bem isso. Você sabe que quanto mais criaturas como nós aparecem, mais atraímos todo tipo de criaturas, Wolfie. Tenho medo de enfrentarmos algo parecido outras vezes.

...É só uma questão de tempo, Kayden. Com muitos de nós ou não, coisas assim sempre acontecerão.

As vozes foram ficando mais distantes para a garota, de modo que ouviu mais algumas palavras desconexas e caiu no sono novamente.

[...]

Quando semicerrou os olhos ainda com as pálpebras pesadas, sentiu todo o seu corpo doer para em seguida perceber uma dor mais acentuada no pé direito, principalmente no tornozelo.

A garota estava desnorteada, um turbilhão de pensamentos bombardeava sua mente cansada. Encarou o teto de madeira enegrecida com dificuldade – só depois descobriu ser da enorme cama dossel, que muito parecia uma obra de arte –, a luz do dia cinzento iluminava o quarto pelas janelas embutidas em vãos profundos, com uma vista para o exuberante jardim da pensão.

Um lustre riquíssimo em detalhes pendurava-se no teto do quarto e as paredes eram repletas de pinturas seculares. Havia uma lareira acesa, não muito ampla, trabalhada em carvalho maciço ao redor. O cômodo em si era muito elegante, um tanto lúgubre com seus tons escuros e de aparência muito antiga, contudo, conseguia manter um clima acolhedor.

A garota ajeitou-se na cama, vendo duas pessoas próximas à porta encarando-a com expressões mistas. Um deles era albino, adolescente e aparentemente mais energético que o jovem moreno em pé apoiado à parede, pois foi ele quem se dirigiu à garota com um olhar caloroso. O garoto albino era uma figura que muito combinava com o cinza lá fora, com seus olhos extremamente claros e cristalinos; a pele mais pálida que a garota já havia visto tinha uma cicatriz perceptível na parte do rosto, perto da bochecha. E seu porte era alto e delgado.

Ele estava usando um moletom de frio na cor vermelho-escuro e uma calça jeans mais clara.

— Você nos deu um susto e tanto – Comentou com um tom de voz agradável. A garota percebeu que ele estava entusiasmado, no entanto, parecia se conter. – Gostou do quarto? Não sabemos ainda se será o seu, mas se você quiser continuar nele, podemos falar com Tia Alma a respeito.

Ela não falou nada, apenas colocou uma mecha de seu cabelo escuro atrás da orelha, processando em sua mente o que havia acontecido. Perguntou-se quem seria Tia Alma. A dor em seu pé latejava e a garota não conseguiu evitar uma expressão de desconforto.

— Vamos deixar esse assunto para outra hora, Wolfie. – O outro jovem, que certamente era mais velho e mais sério, se pronunciou. – Seu tornozelo está inchado, Winter. Você torceu o pé durante a madrugada no bosque.

A garota engoliu em seco.

— C-Como você sabe meu nome? – Ela perguntou tão baixo que quase não entenderam suas palavras.

— Nós somos como você, Winter. Logo, fazemos algumas proezas. A propósito, me chamo Alecsander. – O mais velho se apresentou com um aceno de cabeça. Ele tinha os ombros largos e vestia uma camiseta preta e grossa de mangas compridas; e um jeans escuro. Os fios eram negros – assim como os da garota – e muito curtos, em um estilo militar. Seus olhos eram tão azuis que Winter ficou constrangida ao olhar diretamente para eles. Notou um alargador pequeno em sua orelha. – Mas todos me chamam de Alec.

A garota sabia que aquele rosto era familiar. Não quis perguntar, envergonhada, mas tinha quase certeza de que era ele quem havia lhe ajudado no bosque. Achava que ele fosse mais velho do que realmente estava parecendo ser, mas talvez o escuro de quando o viu pela primeira vez tenha contribuído para isso. Vendo-o naquele momento, diria que ele tinha em torno de vinte e dois anos ou um pouco mais.

— Eu me chamo Wolfgang – Foi a vez do albino se apresentar. Ele a encarava com um olhar que Winter não conseguiu decifrar, mas sua expressão era suave. – Todos me chamam de Wolfie e agora que você está aqui também pode chamar.

— Escute, irei avisar a Tia Alma que você acordou. Ela está ansiosa para conversar com você, Winter. – Alecsander falou com seriedade, embora seu tom fosse solícito. – Wolfie lhe fará companhia e explicará algumas coisas.

O albino assentiu para ele e o moreno deixou o quarto. Winter nunca esteve em um cômodo como aquele e, sobre aquelas pessoas, não sabia o que pensar. A garota estava destruída por fora e principalmente por dentro.

— Um médico amigo da família estará aqui em alguns minutos. Se você quiser alguns remédios para as dores, estão ao seu lado na cabeceira – O albino falou e um longo minuto de silêncio se fez presente, mas ele continuou: – Então... Essas cicatrizes... Sinto muito pelo que você teve que passar, Winter.

A garota arregalou os olhos para ele e depois olhou para si mesma. Antes de ir parar ali, Winter estava usando uma blusa de tricot com mangas compridas o suficiente para cobrirem suas cicatrizes, mas naquele momento, estava com outras vestes. Um vestido moletom na cor bege, também de mangas compridas. Ela franziu a testa.

— Ér, me desculpe se me expressei mal ou fui invasivo. Eu não as vi, pode ficar tranquila – O jovem rapaz parecia sem graça, coçando a parte de trás de sua cabeça.

Os fios alvos e finos dele estavam desarrumados e sem corte, isto porque nem eram curtos, nem longos. Estavam em um meio termo, parecia uma confusão capilar. – Eu não iria, você sabe, vê-la sendo trocada de roupa e tudo mais... Bem, a Laryssa me contou. Ela estava preocupada.

— V-Você pode me deixar um pouco sozinha, por favor? – Ela murmurou com um nó na garganta.

Winter sentiu que, naquele instante, tudo caiu sobre ela ao mesmo tempo. “Sinto muito pelo que você teve que passar, Winter.” Isso a fez estremecer com as lembranças. As cicatrizes que aqueles desconhecidos simplesmente viram revelaram o que ela sempre guardou para si mesma.

“Preciso ir embora daqui.”

 

 

 

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O que acharam?? Interajam comigo nos comentários! Hehehehe