Gilbert, de Cordélia escrita por Maga Clari


Capítulo 1
Apresento a vocês, o primeiro conto de Gilnne


Notas iniciais do capítulo

Gilnne é o nome do shipp que inventei, já que ninguém do fandom criou oficialmente. Gilbert + Anne



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Prezado estranho,

Sei que não é certo, e já antecipadamente lhe peço as mais sinceras desculpas, mas não pude me conter. Observei-lhe enquanto roubava algumas goiabas do jardim. E já me pergunto se o fazia por prazer ou necessidade. Sei, mais uma vez, que não devia invadir sua privacidade, e menos ainda reparar em você. Mas suas roupas, apesar de sujas e gastas, eram da realeza. O senhor está passando necessidades? Precisa de ajuda?

Não quero bancar a benfeitora, porque não costumo ser assim normalmente. Mas admito ter ficado comovida com as goiabas roubadas. E quanto a elas? Estavam saborosas? Doces? Ou com gosto de terra? Se estiverem com gosto meio azedo é porque ainda estão verdes. Sabe... Ontem eu as achei verdes. Não sei se era o ponto para serem comidas. Nem mesmo para tomá-las em suco. Peço desculpas por elas.  Se ia mesmo matar a sede, eu teria lhe sugerido buscar as laranjas de umbigo. Mas eu não sou autorizada a falar com você.  Não é nada pessoal. Só não posso.

Meus sinceros desejos de saciação para o senhor.

Cordialmente,

Princesa Cordélia, de Greengables

***

Prezada estranha,

Nunca ouvi falar em sua majestade. Não gostaria que pensasse o pior de mim, mas é a pura verdade. E não, eu não rimei de propósito. Para ser sincero, eu nunca li uma poesia. Disseram-me que a razão é a dislexia. Mas não tenho muita certeza. Porque gosto de romances. Eu passo boa parte do meu dia lendo na lavraria. Mas acho que lavraria não é bem uma palavra do vocabulário de uma princesa. Por isso decidi poupá-la de tamanho constrangimento.

As goiabas estavam deliciosas, obrigado. E eu não estou passando necessidade alguma. A terra me dá o que preciso. E o que ela não dá, eu mesmo faço. Como as vestes que uso, por exemplo. Não são gastas até que eu ache que são. Não vejo corte ou rasgão. O tecido é bom e resistente, vossa majestade. Confortáveis demais para desfilar na corte. Mas a melhor opção para roubar goiabas.

Achei legal ter alguém reparando em mim. Pelo menos uma vez na vida, princesa. Ninguém nunca olha pra mim. Pelo menos, não de verdade, compreende?

Não aceitarei suas desculpas.

Aceitarei sim, de bom grado, é um punhado de laranjas de umbigo.

Cordialmente,

O estranho das goiabas

**  

Prezado estranho das goiabas,

Talvez o senhor não tenha reparado em mim pelo mesmo motivo do qual se queixa. Ninguém costuma olhar-me nos olhos. Ninguém sorri verdadeiramente para mim. Ninguém sabe que eu existo. Ninguém realmente quer que eu exista.

Engraçado o senhor falar de suas vestes, porque eu também tenho o mau hábito de trocar de roupa quando posso. Não sei como é com o senhor, mas em minha corte, eles me obrigam a usar o que não gosto. Sapatos apertados, roupas incômodas, e até o meu cabelo. Ah!...

Se eu pudesse, eu mesma criaria versos, mas não consigo. Não sei bem o que é essa tal dislexia, mas meu problema é outro. Eu não consigo ser criativa. É tudo muito chato aqui. Será que o senhor poderia escrever uma poesia pra mim? Uma estrofe apenas. Apenas esta e basta. E serei a princesa mais alegre do mundo.

Cordialmente,

Princesa Cordélia, de Greengables

**  

Prezada Princesa Cordélia, de Greengables,

Não costumo frequentar os bailes da corte. Tenho o mau hábito de não somente trocar as vestes, mas de também fugir pelas janelas do jardim.

Papai não tem muita paciência comigo, e diz que nasci com complexo de camponês. Mas o quê que há de tão errado nos camponeses, afinal? Gosto da terra, gosto do tecido de algodão, gosto de ver as nuvens de cordão. Aliás, dessa vez foi sim uma analogia poética. Andei pesquisando. Porque o certo seria cordões de nuvens. Entendeu? Imagino que vossa majestade seja a mais inteligente das princesas. Nem sei por que perguntei-lhe tamanha idiotice.

Perdoe-me pela palavra chula, princesa, mas não leio ainda o suficiente para substituí-la por outra. Tento sempre falar bonito, e termino passando vergonha. No entanto, sou do tipo que assume as fraquezas e fragilidades. A vossa majestade nunca encontrará um só pergaminho amassado em meus aposentos. Sempre envio as cartas originalmente. Recuso-me a refazê-las por erros da escrita. Mesmo que eu tenha, no pior dos casos, que borrá-los de tinta.

PS: Agradeço-lhe do fundo do coração pelas laranjas de umbigo

Atenciosamente,

O Estranho das laranjas de umbigo

** 

Prezado estranho das laranjas de umbigo,

Não vejo problema com camponeses ou palavras chulas. Eu já fui acostumada e adestrada para falar do jeito que escrevo. Mas teria o imenso prazer em aprender a fala do povo. Será que eu seria uma boa camponesa? Com vestidos coloridos e flores na cabeça? Entregando leite de porta em porta? Como você acha que eu ficaria? Bonita? Acha que alguém ficaria interessado por mim, e só por mim, já que eu não teria nenhum título ou riqueza?

Gostei de sua analogia poética, mas eu lhe pedi uma poesia. Queria algo para alegrar meu dia. A chuva está muito forte hoje, não é? Será que me darão permissão de sair com tanta água caindo do céu? Meus aposentos são brancos e feios, eles deixam-me em náuseas. Com uma irritação esquisita.

Espero que onde você esteja, tenha mais cores do que aqui.

Atenciosamente,

Princesa Cordélia, de Greengables

** 

Prezada Princesa Cordélia,

Imagino que vossa alteza estaria magnífica, se me permite ser tão cortês. Daqui de onde eu leio romances, vejo lindas garotas saltitando em seus vestidos amarelos, laranjas e azuis... Cada dia que passa, imagino qual delas seria você. Aqui. Espiando-me em minha lavraria, opa, perdoe-me, princesa, por usar a palavra de novo. Perdoe-me, perdoe-me, perdoe-me. Juro-lhe que isto não se repetirá. Mas voltando ao que dizia... Pego-me a imaginar qual dessas belas garotas seria você a me espionar em minhas tarefas. Qual delas teria deixado as laranjas, as cartas, agora o mata-borrão. Obrigado, princesa, talvez ajude-me em minhas cartas oficiais.

Não acho que vossa majestade deva se preocupar com estética e casamentos. Pensei até que não fosse o tipo de assunto que lhe interessasse. Não sei por quê... Mas pensei assim. Princesa, ninguém nem liga para sua riqueza e título quando podem ter uma conversa tão promissora quanto a que começamos a ter, continuamente. Vossa alteza parece-me doce, alegre e culta. Nobreza não me importa no momento.

Atenciosamente,

Gilbert, da lavraria (ah, puxa!)

** 

Caro Gilbert da lavraria,

Não precisa se desculpar tanto assim por conta de uma simples palavra. Eu conheço sim o significado de lavraria. E não há nada de errado em trabalhar com a terra. Só me pergunto, agora, é como um membro da corte trabalha de verdade na terra.

Responda-me, Gilbert: você o faz escondido? Voluntariamente? Pagam-lhe por isso? Responda-me, por favor. Está faltando algo em sua casa de família, Gilbert? Diga-me, que eu providenciarei. Não lhe deixarei num trabalho desnecessário! Pensei que suas idas à goiabeira fossem apenas um descanso de suas atividades da nobreza. Mas para ser sincera, este é um fato curioso, não acha? Eu lhe encontro sempre lá, em qualquer horário, mas apenas uma vez no dia. Depois disso, o senhor some.

Eu só me pergunto, Gilbert, como o senhor fica procurando por mim nessas tais belas garotas, se o senhor já me viu várias e várias vezes. Como o senhor, justo o senhor, vem falar-me da desimportância de aparência e casamentos, se justo o senhor, Gilbert, não procura pelas garotas feias?

E a propósito, o senhor não aprendeu até hoje os pronomes de tratamento? Vossa majestade é só para minha mãe. Vossa alteza seria eu, se eu me achasse uma verdadeira e bela princesa. Não misture as coisas.

Com (um pouco de) amor,

Cordélia, de Greengables

**  

Cara Cordélia,

Eu juro-lhe, do fundo de minha alma, que não me recordo de vê-la entregar-me nada. Sempre julguei ter sido um mensageiro quem deixava minha correspondência.

Certa vez, inclusive, pensei ter visto um garoto baixinho e magricela correr por detrás do jardim, mas quando me levantei da grama, ele havia sumido. Não reparei nele depois disso, mas nem me importei. Minha ansiedade dia após dia é esperar o dia que a correspondência chega com suas cartas, Cordélia.

Não gosto quando se preocupa comigo e com minha família. Não há nada errado em ser pobre ou camponês, mas nós não somos, já lhe disse! Acha mesmo que estou mentindo? Que eu mentiria pra você?

Não trabalho na terra, brinco na terra. É bem diferente. Planto uma coisa aqui e ali. Ajudo as criadas a regar e declamo algumas anedotas para que elas tenham um dia mais alegre. Tenho um carinho especial por todas elas, e gostaria até que fossem minhas tias. Ou talvez minhas mamães. Não me leve a mal, mas elas me abraçam, fazem cafuné e perguntam como foi meu dia. Contei a todas sobre você, e só ouvi estímulos para que eu pudesse encontrar-lhe logo. Um encontro, Cordélia. Eu e você na goiabeira. Que tal?

PS: Desculpe-me. Como já lhe disse antes, não me ligo muito em pronomes da nobreza ou qualquer coisa da nobreza.

PS’: Você usou “desimportância”. Essa palavra existe?

Com (muito) amor,

Gilbert

** 

Querida Cordélia,

Já estou no local marcado, mesmo não tendo recebido sua resposta. Estou muito ansioso. Nunca saí com uma garota antes. Pelo menos, não uma de verdade. Sem os apetrechos de metal rodado ou longe de tantas pessoas julgando. E muito menos com alguém que eu realmente gostasse.

Cadê você, Cordélia? Onde está você?

Por favor, venha logo. Mandei um mensageiro correr até você, onde quer que esteja. Ele é dos bons, sei que vai encontrá-la.

Ele tem cabelo curto, hoje usa botas verdes e um chapéu vermelho esquisito.

Com muita ansiedade,

Gilbert

**  

Querido Gilbert,

Eu não posso encontrá-lo agora. Perdoe-me, perdoe-me, por favor. Estou chorando. Não sei se devo falar-lhe. Não tenho coragem nem de descer as escadas. E se você não gostar de mim? E se eu lhe decepcionar? Não sei se tenho coragem de fugir da reunião com os chefes de estado para ir me encontrar com você.

São exatamente três e quarenta e cinco. Preciso me apressar. Ainda tenho que voltar ao castelo, tomar banho e trocar de roupa.

Com muito nervosismo,

Cordélia

**

Querida Cordélia,

Tomei a liberdade de deixar o mensageiro me levar para onde ele a viu seguir. Estou do lado de fora do castelo, e me recordo de já ter vindo alguma vez em algum evento aqui. Sei, agora, algo me diz que irei reconhecê-la quando a vir.

Pedi ao mensageiro para achar você, mas guardar o segredo até eu vê-la. Não quero invadir sua privacidade física e moral. Prefiro permanecer a aguardá-la onde estou.

Com amor,

Gilbert

**

Querido Gilbert,

Então fazemos assim. Se você me reconhecer, chame-me, por favor. Tire-me de lá, pelo amor de Deus. Vamos fugir juntos e nunca mais voltar. Não gosto daqui. Não gosto, não gosto, não gosto! Quero aprender a brincar na lavraria com você. Conhecer suas mamães da terra. Aprender a rimar. Só me ache e me leve embora, Gilbert.

**

Querida Cordélia,

Eu já achei você. Mas antes de tirá-la desse evento chato, permita dizer-me só mais algumas palavras. Você é a mais bela das belas princesas que qualquer um pode imaginar. Na verdade, eu nunca teria cogitado que você era você. Logo você, a que tem mais destreza, mais imponência no andar e na fala. Logo você, que não permite que lhe falem com grosseria ou indelicadeza.

Nunca imaginei que logo a princesa recheada de pontinhos coloridos fosse gostar logo de mim, o caçula de uma família de autoritários que tiram o pão dos pobres para banharem-se de jóias e ouro. Logo eu, que possuo uma pele mais pálida que a morte, o cabelo mais escuro que a noite. Eu, que sou a escala de cinza. E logo você, o laranja do sol do seu cabelo.

Lembro-me de quando você era criança e criava cabelo. Seus pais brigavam com você, não era? Quando fazia tranças? Foi por isso, Cordélia? Por isso que desde aquele dia você deixa-o todo aparado nas orelhas? Quase imperceptível?

E é por isso também, Cordélia, que nunca mais a vi por aí? E que agora, de onde posso ouvir a conversa, seu pai lhe apresenta como Conde Hélio, primo distante de sua família? Eu sei que é você. Agora eu sei. Você não cresceu muito. Mas essa roupa toda deixou-lhe mais larga. Talvez por isso, sem essa roupa toda, eu não tenha lhe reconhecido. Mas seus olhos, Cordélia, eu não cheguei a ver. Se não eu teria descoberto tudo. Você fez de propósito, hoje? Chegou aqui sem chapéu, sem óculos, sem nada que me empatasse de vê-la?

Cordélia, você sempre soube que eu era eu? Desde o começo? Porque eu nunca soube seu nome. Eu só lhe conhecia de vista. Assistia-lhe enquanto brincava sozinha, de duelar. E também quando distribuía flores pelos jardins. Eu peguei uma delas certa vez, se lembra? Você não deve se lembrar...

Desde que era criança, Cordélia, eu nunca mais entrei no seu castelo. Mas sempre ouvi pelas árvores, pela vila... Sempre os comentários sobre o tal Conde Hélio que era o esgrimista de maior destreza... Teve também, uma vez, quando ouvi dizer que o tal do Conde havia dado umas respostas engraçadas para alguns velhotes conservadores demais. Incluindo meu pai. Tudo bem, Cordélia, foi ele que me disse. E ele ficou muito bravo, Cordélia. Mas desde lá, eu já havia achado o rapaz incrível por ter dito a ele tudo o que eu sempre quis dizer.

E parando pra pensar, desde criança, Cordélia, desde criança você já era assim. Brigando com os cachorrinhos que agarravam e amassavam as borboletas, mesmo sabendo que eram sem querer. Lembro-me de que eu também a observava de longe. Então estamos quites, Cordélia, está perdoada.

Minha nossa! Estou tão feliz que seja você!

Mal vejo a hora de declamar-lhe, e pela altura do campeonato, já o faço, já o declamo, as poesias em prosa que são nossas cartas, e em especial a que leio no momento. Bem aqui, no meio de todos da corte. De todos que exibem suas riquezas em roupas e jóias nas mesas do jardim. E logo eu, Cordélia, logo eu com minha melhor roupa suja de algodão. E logo você, princesa, com suas sapatilhas cor-de-abóbora por debaixo da barra da calça. E nos bolsos, goiabas e laranjas de umbigo. E não estou apenas sugerindo através de dons místicos. Elas foram apertadas demais em seu nervosismo ao me ver, Cordélia. Elas estão derramando.

Com eterno e real amor,

Gilbert, de Cordélia


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