HERÓIS escrita por Felipe Arruda


Capítulo 1
A hora do pesadelo




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Ian acordou sobressaltado assim que o ônibus parou na rodoviária da velha Itacorá. Ele havia caído no sono e acordou após um pesadelo, o mesmo que o acompanhava a dois longos anos. O rapaz levantou do banco com o braço dormente e foi em direção à saída tentando não pensar muito no pesadelo.

O calor infernal do fim de janeiro deixava Ian mal humorado e um pouco ranzinza. Ele deu uma rápida olhada ao redor e ficou um tanto frustrado ao perceber que tudo permanecia exatamente igual, mesmo depois de dois anos. A rodoviária ainda era um prédio baixo e desbotado, na frente dela as lojinhas de artigo eletrônico continuavam com a mesma cor na fachada e o céu permanecia com aquele tom "cor de vômito de gato" recorrente de todo final de tarde.

O rapaz certificou que sua única bagagem, uma mochila preta, permanecia em suas costas e entrou em um táxi rumo ao centro da cidade onde ficava o prédio com seu antigo apartamento.

— Rua Getúlio Vargas – disse ele ao motorista ao se acomodar no banco de trás do carro. – É um prédio na esquina, em frente à Churrascaria do Alemão.

O carro seguiu por um trajeto passando em frente a uma praça que não existia na cidade há dois anos. Havia um campo de futebol sintético, uma pista de skate e uma pequena lanchonete. Havia uma enorme pista de patins ao redor da praça, bancos de madeira e árvores distribuídas de forma aleatória.

— Essa praça é nova? – Perguntou Ian encarando um garoto descendo com um skate pela rampa.

O motorista do táxi, um senhor de idade com um bigode branco e que usava um boné cinza na cabeça olhou em direção à praça também.

— É a Praça Otávio Gasparini – disse o motorista, em seguida ele voltou a prestar a atenção na estrada a sua frente. – Ela foi inaugurada há pouco tempo. – Ele buscou os olhos de Ian pelo retrovisor. – Aqui ia funcionar uma clínica que acabou desabando no dia da inauguração – ele soltou um risinho, mas Ian permaneceu sério.

— O que foi? – Perguntou ele tentando parecer normal.

Os cara gastaram um dinheirão pra construir um prédio que explodiu e nem chegou a funcionar – disse o motorista que parecia indignado. – Parece que houve uma explosão no penúltimo andar e o prédio foi condenado...

— Foi no último – disse Ian automaticamente. O carro já havia passado da praça e agora entrava na rua onde ficava o prédio com o apartamento dele. – Pode parar aqui – disse Ian apontando para um espaço vago em frente ao seu prédio.

— O que foi? – Perguntou o motorista encarando Ian pelo retrovisor. O carro parou logo em seguida. Ian passou o dinheiro para o motorista e abriu a porta do carro.

— A explosão foi no último andar – disse ele antes de sair do carro – eu estava lá. – Em seguida ele saiu e fechou a porta do carro, deu a volta por trás e caminhou até ao enorme portão branco, que como ele imaginou, estava destrancado.

Ian subiu as escadas e parou no segundo andar, em alguns instantes lá estava ele procurando as chaves dentro de sua mochila para entrar em seu apartamento. Parado em frente à porta por uma fração de segundos, ele sentiu que assim que abrisse aquela porta, todo o passado voltaria a fazer parte do seu presente. Ian então soltou um suspiro de derrota e destrancou a fechadura. Assim que atravessou a porta uma onda de poeira veio em sua direção lhe dando as boas vindas e o fazendo espirrar.

— Merda – disse ele. – Eu deveria ter mandado alguém vir limpar esse lugar.

Ele apertou o interruptor, mas a luz não acendeu, andou até a cozinha, mas nem sinal de água na torneira. Poeira e teias de aranha dominavam seu triste apartamento cinzento. Ele abriu o armário de sua pequena cozinha no estilo americano e encontrou uma garrafa de Red Label pela metade ao lado de um pacote mofado de bolachas recheadas.

— Olá velha amiga – disse ele pegando a garrafa e tomando um gole generoso ainda do gargalo. Ele fez uma careta quando o líquido quente escorreu garganta adentro lhe provocando uma sensação de queimadura que era ao mesmo tempo boa e ruim.

Ian jogou sua mochila no sofá e uma nova onda de pó inundou a sala o fazendo espirrar mais uma vez. Ele andou até a janela, mas quando a empurrou para o alto, emperrou. Com um pouco de força, ela continuou emperrada, até que sem paciência, ele usou sua superforça e ela desemperrou abrindo e arremessando um pedaço de madeira num canto da sala.

Um sopro quente e abafado entrou pela janela. A tarde começava a virar noite e Ian ainda sentia aquela sensação de que tudo continuava errado. Ele permaneceu escorado encarando os prédios vizinhos e a vida que permanecia correndo de forma pacifica.

Ian tirou um maço de cigarros todo amassado do bolso de trás do seu jeans e acendeu um o colocando imediatamente na boca. Ele deu um trago longo e soprou a fumaça para o alto. No mesmo instante uma estranha sensação percorreu todo o seu corpo e ele sentiu que havia alguém junto a ele naquele apartamento.

Instantaneamente ele olhou para trás e encarou as sombras que pareciam se mover de um lado para o outro. Ele fechou os olhos para relaxar, mas sua mente foi invadida por uma mulher gritando por misericórdia enquanto seu rosto ia perdendo a vida até esfalecer.

— Isso nunca vai acabar... – disse ele para si mesmo com as mãos sobre o rosto apertando os olhos.

Aquele era o pesadelo de Ian, a lembrança da noite em que ele matou aquela mulher. Olhando ao redor da pequena sala cheia de sombras, ele se sentiu mal por estar ali naquele apartamento. Ele não só havia tirado a vida daquela mulher como também havia ficado com o apartamento dela. Ian terminou com o resto do conteúdo daquela garrafa e a jogou num canto.

— Preciso de uma bebida mais forte – disse a si mesmo antes de sair do apartamento.

○○○

O Pub, ainda vazio, cheirava a fumaça artificial e a cigarro. O ambiente era normalmente escuro, mas as luzes ainda estavam acesas quando Kayo viu um rapaz alto e de cabelo castanho entrar, era Ian, ele logo o reconheceu.

— Quem é vivo sempre aparece, não é mesmo? – Disse Kayo rindo e indo em direção a Ian. Os dois se cumprimentaram com um rápido abraço.

— Gostei da barba – disse Ian. Kayo automaticamente passou a mão pelo seu cavanhaque e riu, voltando para trás do balcão ele viu Ian sentar num daqueles bancos giratórios para ficar de frente a ele. – Esse lugar está bem mais sofisticado do que há dois anos – disse Ian dando uma olhada ao redor.

— O dono resolveu transformar o bar em um Pub – disse Kayo despejando bebidas de um lado para o outro dentro de uma coqueteleira. – Ele disse que assim atrairia mais público.

O local era dividido em três ambientes. O bar ficava do lado esquerdo e possuía uma bancada comprida de uma madeira bem resistente e brilhosa. Na parede atrás de Kayo havia prateleiras estreitas com garrafas de bebidas das mais variadas possíveis. Dois degraus abaixo do bar ficava o palco não muito grande com uma mesa e uma caixa de som que tocava uma música aleatória bem baixinha. Na frente do palco estava uma pista de dança que havia uma espécie de barra de proteção que separava o bar do palco e o palco do terceiro ambiente.

Do lado direito do Pub se encontrava pequenas mesas quadradas com quatro cadeiras cada uma. Próximo às mesas havia sofás de couro sintético que faziam uma espécie de U em volta de pequenas mesas quadradas. As paredes num tom roxo exibiam pôster de bandas famosas e quadros estilizados.

— Não sabia que você era bartender agora – disse Ian.

— Eu fiz alguns cursos – disse Kayo. Ele encarou os olhos verdes de Ian. – Ao redor do mundo. – Os dois riram daquilo como se fosse uma piada interna.

O refrão de The Hills chegou aos ouvidos de Kayo.

— Nunca te imaginei fazendo isso – disse Ian. – Preparando bebidas... – ele tentou reformular aquela frase. – Tipo, depois do que aconteceu...

Kayo colocou um copo na frente de Ian, que pegou dando uma olhada para o líquido desconfiado.

— Eu precisava trabalhar – disse ele – e acho que "super-herói" não ia cair muito bem no meu currículo.

Ian riu e bebeu o líquido do copo todo de uma única vez.

— Essa é por conta da casa – disse Kayo olhando fixamente para Ian. Os vocais do The Weeknd foram substituídos pelas frases provocantes da Tove Lo no exato momento em que duas garotas entraram no bar. – Problemas com bebidas?

Kayo já havia notado o cheiro de uísque quando Ian havia entrado no bar. Ele estava péssimo. A camiseta preta e o jeans desbotado estavam amassados e seu cabelo castanho despenteado. Grandes círculos negros ao redor de seus olhos o deixavam com um ar fantasmagórico, como se ele não dormisse há anos. O rosto estava mais fundo, mais marcado, mais magro e a barba por fazer não lhe caia nada bem.

— Falando em heróis – disse Ian desviando do assunto – Como estão os outros?

Kayo soltou um suspiro rápido e ajeitou o cabelo para o lado.

— Ágata continua trabalhando na polícia e ainda mora com o filho no subúrbio, a gente se fala pouco. O Fernando continua ajudando ela do jeito que só ele consegue ajudar – Kayo riu – aliás, ele me mandou uma mensagem dizendo que você estava na cidade.

Ian riu.

— Não vou nem perguntar como ele sabe disso – disse revirando os olhos.

— Já o Richard também ficou fora um tempo – voltou a dizer Kayo. – Eu sei que ele está na cidade agora, mas faz tempo que não nos vemos.

Uma garota magra usando jeans e blusa branca parou no balcão e disse olhando para Kayo.

— Dois Martini para aquelas duas frescas.

Kayo riu. Patrícia era sempre espirituosa daquele jeito. Ela usava um jeans preto e uma blusa branca com o logo do Pub. Sua pele era muito branca e estava com o rosto um tanto vermelho por conta dos raios ultravioleta das tardes quentes de Itacorá. O cabelo loiro estava preso num coque no alto da cabeça com uma caneta e ela permanecia com aquele olhar de "não sei se mato alguém ou se me mato" no rosto.

Patrícia era a garçonete do Pub. Além dela, Alan trabalhava como DJ e Kayo era o bartender. Próximo à entrada ficava o caixa, mas quem comandava as finanças do lugar era Nayara, a esposa do dono, Julio, que aparecia todas as noites com um papo motivacional que irritava ainda mais Patrícia.

— Certo – disse ele começando a preparar as bebidas. Assim que a garota saiu ele encarou Ian. – Por onde você andou? Você ficou dois anos sem dar notícias...

Ian desviou o olhar e quando voltou a encarar Kayo havia um pouco de receio em suas feições.

— Eu precisava respirar depois daquela noite – disse ele. – Eu não podia simplesmente continuar aqui... – ele encarou Kayo. – Eu fui tentar enxergar a vida por outro ângulo, mas todos os ângulos acabavam por me mostrar esse mesmo lugar. – Kayo permanecia sério, encarando Ian, que soltou um suspiro. – Parece que ficou algo inacabado aqui e que dessa vez precisa ser finalizado.

Kayo encarou Ian.

— Se precisar de mim para entrar de penetra em mais uma festa chique, pode contar comigo – Ian riu. – Só prometa que não haverá prédios flutuantes e furacão de fogo dessa vez.

Ian riu.

— Você sabe que não posso prometer esse tipo de coisa, não é? – Os dois riram daquilo. – Eu preciso ir, a viagem foi longa e eu estou podre.

Os dois trocaram um cumprimento e Ian seguiu em direção à saída.

— A gente se vê – disse ele.

— A gente se vê – repetiu Kayo.

Nem meio minuto depois, Kayo se dirigiu para levar os Martini na mesa, mas não encontrou mais as garotas. Tudo estava em absoluto silêncio, nem mesmo a música tocava mais.

— Patrícia? – Ele chamou pela ajudante, mas não obteve respostas. Um sentimento de perda foi invadindo sua alma e uma aflição angustiante tomou conta de seu ser.

Kayo saiu em direção à rua para ver se ainda encontrava Ian, mas quando chegou à calçada uma escuridão assustadora e um silêncio imaculado dominava a cidade.

— Olá? – gritou Kayo correndo no escuro. Não havia ninguém e ele não sabia direito onde estava. – Alguém? – Voltou a gritar. – Olá!

Sem direção e cansado de correr, ele parou próximo ao que parecia ser um banco sem reconhecer direito o lugar.

— O que está acontecendo? – Ele tentava olhar ao redor, mas só havia sombras. Era como se ele estivesse preso em seu maior pesadelo. Andando no escuro, ele escorregou em algo e caiu no chão num baque surdo.

Kayo se sentiu preso no que parecia ser lama. Ele não conseguia se mover e sempre que se debatia sentia que afundava até a lama chegar a seu rosto. Ele sentia que insetos andavam por seu corpo, do braço a perna. Com dificuldade, ele conseguiu mover a mão até a perna na tentativa de espantar o inseto, mas se desesperou ao perceber que ele andava por dentro de seu corpo. Ao se dar conta daquilo, se debateu e afundou mais um pouco naquela lama que tinha um cheiro forte de algo podre, morto.

O rapaz tentou controlar a respiração e os batimentos cardíacos para não ser engolido pela lama. Ele permaneceu calado tentando escutar alguma coisa, mas nada chegava a seus ouvidos. Seus olhos estavam bem abertos, mas não havia um resquício de luz que o ajudasse a enxergar qualquer coisa. Só havia sombras, lama, insetos andando por seu corpo e o medo tomando conta cada vez mais do seu ser.

Kayo não conseguia saber a quanto tempo estava preso naquilo. Sua mente não trabalhava direito porque o medo e o pânico eram maiores do que sua lucidez e capacidade de raciocínio. Parecia que horas haviam se passado, talvez um dia inteiro e ele continuava preso aquela lama sabendo que se tentasse se mover afundaria ainda mais.

De repente, um lampejo de luz rasgou o céu e ele sentiu seu corpo todo queimar. Soltando um grito de dor e se mexendo de mais ele afundou até a lama cobrir seu rosto. A lama entrou por seu nariz e em seguida pela sua boca. O gosto era ainda pior que o cheiro e sem ar ele começou a se debater ainda mais na tentativa de se livrar daquilo.

Com esforço ele conseguiu sair daquilo indo até a superfície e sentando naquela lama nojenta e fedorenta. Ele começou a tossir desenfreadamente. Foi então que um som chegou a seus ouvidos. Eram gritos de angustia e pedidos de socorro. Ele começou a olhar para os lados e vultos começaram a focalizar em seus olhos.

Havia centenas de pessoas na mesma situação que ele. Algumas sem a parte do corpo, com vermes no lugar dos olhos e queimaduras horrendas infeccionadas. Alguns gritavam de dor enquanto outras clamavam por misericórdia. Kayo sentiu uma rajada de lama e pedras contra seu rosto o que o fez desequilibrar naquela lama escorregadia, caindo mais uma vez de costas no chão.

Ele tentou se levantar, mas sentiu uma mão grande, peluda e com unhas afiadas segurar em seu tornozelo e o puxar com toda força para baixo de toda aquela lama.

— NÃO! – Gritou Kayo, mas seu corpo foi afundando rapidamente para dentro de toda aquela coisa até chegar a sua cabeça novamente roubando-lhe mais uma vez o ar. Ele sentiu que ia morrer.

— Kayo? Chamou alguém – Kayo!

Kayo despertou com a voz de Patrícia. Ele olhou ao redor e tudo parecia absolutamente normal. Ele continuava no bar, a música ainda tocava e Patrícia já havia entregado os Martini para as garotas.

— Você está pálido – disse Patrícia. – Estava com o olhar vidrado no nada, nem parecia que estava aqui... eu, eim...

Kayo ainda sentia os vermes andando por dentro de seu corpo. Ele colocou a mão no braço para se certificar que não havia nada. Estava trêmulo, o medo ainda o dominava.

— Acho que estou trabalhando de mais – disse Kayo tentando disfarçar, ele ainda sentia o peito ofegante. – Preciso ir ao banheiro – disse ele indo, desnorteado, em direção a uma porta próximo ao bar.

No banheiro ele tirou o celular do jeans com um pouco de dificuldade e procurou na agenda pelo número de um velho amigo. Depois de dois toques de espera alguém atendeu.

— Fernando? É o Kayo – ele falava rápido. – Eu acho que o Ian não foi o único a voltar para cidade...


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