Superando o passado escrita por HungerGames


Capítulo 9
Capítulo 9




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Chegamos no Prisma e escolhemos uma mesa, o lugar é bonito, é um restaurante/bar, a luz é meio baixa e amarelada, Bruno Mars está cantando ao fundo, quase todas as mesas estão ocupadas, mas conseguimos uma na lateral, onde um sofá preto meio que circula a mesa, sento no meio dos casais, um garçom aparece e nós recebemos os cardápios e enquanto esperamos Rafael e Vítor nós pedimos uma rodada de chopp, exceto Vinny por que ele é o motorista, eu já estava começando a ficar de vela quando eles chegam, todos se afastam abrindo espaço e Vítor se senta ao meu lado onde Vinny estava antes e Rafael senta na ponta ao lado do Bruno, eles também bebem junto com a gente e a conversa rola naturalmente, nós rimos e o assunto parece nunca ter fim, pedimos uma porção de batata frita e eu e Rafael devoramos tão rápido que pedimos mais duas, além de outros petiscos, Vítor não fica forçando nenhum clima nem nada, ele apenas conversa e ri comigo do mesmo jeito que todos os outros e eu gosto disso, me sinto mais a vontade.
— Então quer dizer que você não perdoou nem minha prima? – Lia fala tentando parecer brava, mas isso só faz o Rafael sorrir orgulhoso.
— Digamos que ela não me perdoou...
— Ah então a culpa é dela agora? – pergunto encarando ele sem acreditar – Eu vi bem sua cara de sofredor
— Não fui forçado! Mas não sou culpado sozinho, precisam de dois pra acontecer o que aconteceu...
— Você seduziu ela – concluo dando de ombros e ele ri.
— Então você acha que eu tenho um poder tão forte assim? – reviro os olhos e o ignoro enquanto bebo meu chopp.
— Ela tem noivo, você sabia? – Lia pergunta e ele dá de ombros.
— Eu sei que ela é sua prima, mas ela quem devia ter pensado no noivo – Vítor fala e eu o olho fingindo espanto, ele sorri e levanta as mãos em inocência.
— Eu não tenho culpa se todas me querem
— Todas? Eu discordo! – Bianca fala e todos nós rimos dele, os meninos zoando e ele fingindo que não se importa, então levanta o dedo pedindo vez pra falar.
— Eu quis dizer só as que tem bom gosto – nós vaiamos ele que ri sem se ofender – Essa é a mais pura verdade! Tirando essas duas aqui...
— Três! – eu e Vítor falamos juntos e ele me olha sorrindo satisfeito, eles também sorriem.
— Essas três – Rafael se conserta – Não existe nenhuma outra mulher no mundo que resista a mim – outra onda de vaia e risadas.
— Como você é convencido – Lia fala fazendo uma careta.
— Realista!
— Ah é? Então prova – é a vez da Bianca colocar mais lenha na fogueira, ele olha pra ela e levanta a sobrancelha aceitando o desafio – Nós escolhemos a garota e você mostra seu melhor – Vinny olha pra ela sorrindo.
— Essa é minha garota – ele a beija rapidamente e ela volta a encarar o Rafael.
— Eu acho justo!
— Façam o pior! – ele dá de ombros e Bianca nos olha, cochichamos e ela aponta pra uma mesa do outro lado de onde estamos.
— A de verde ou de branco?
— Verde – eu e Lia nos olhamos e concordamos.
— Ok! A garota de camiseta verde no canto perto da janela – Rafael procura e então abre um sorriso.
— Vai ser minha primeira ruiva da cidade – ele bebe o resto do chopp dele em um gole rápido – E sabe o que dizem das ruivas? – ele faz um suspense, abre um sorriso malicioso e se levanta – São quentes – ele nos lança uma piscada antes de se levantar e ir na direção da mesa.
— Cara, eu acho que vocês vão perder – Vinny fala e nós três olhamos pra ele.
— Por que você acha isso? – ele apenas sorri dando de ombros, então nós ficamos olhando eles, Rafael se aproxima, fala algo, elas sorriem, respondem, então ele se senta com elas, mas do lado da garota de branco e não da de verde, eles continuam conversando e ele consegue fazer as duas rirem, porém não sai muito disso, ele chama o garçom e faz algum pedido.
— Eu acho que nós ganhamos – Bianca fala e se inclina e estica a mão pra mim, eu sorrio e bato na mão dela.
— Não tão cedo – Vítor fala e eu o encaro, ele ri e tampa a boca com uma das mãos.
— Fala sério, ele nem tá do lado da garota... – Lia fala também comemorando vitória, nós continuamos observando e comentando, e já estávamos certas da vitória e prontas pra pedir mais uma rodada quando a garota de branco se levanta da cadeira, Vinny ri.
— Sinto muito, meninas – ele fala mas nós nos mantemos olhando pra eles, a garota deixa a bolsa e sai na direção do banheiro.
— Ela só vai no banheiro
— Não, ela só tá liberando o terreno – Vítor fala rindo.
— O cara é bom – Bruno concorda e depois geme com a cotovelada que Lia acerta nele e é então que Rafael também se levanta e passa pra cadeira do lado da ruiva, ele fala algo e ela ri, ele se aproxima mais e passa os dedos pelo seu cabelo, depois o ombro e então ele simplesmente quase devora ela, o beijo é quase ilegal e nenhum dos dois parece se importar com plateia, ela segura o cabelo dele e ele só falta sentar ela no seu colo, os garotos gargalham do nosso lado.
— Eu odeio ele – Bianca fala mas sorri se divertindo.
— Também o cara é gato! Se eu tivesse na seca também ia – Lia fala fazendo uma careta, Bruno olha pra ela que sorri e o beija – Mas eu tô muito bem servida
— Acho bom – eles voltam a se beijar e eu reviro os olhos.
— Eu também – Bianca fala e é a vez dela beijar Vinny.
— Ah que maravilha – eu falo revirando os olhos e afundando no sofá.
— Se você não quiser se sentir excluída – Vitor dá de ombros e me olha com um sorriso divertido.
— Você não pode beijar minha garota na minha frente, pelo menos não duas vezes em uma noite – Vinny fala me salvando de qualquer constrangimento e eu o olho agradecida, eu sempre posso contar com ele em todas as horas, nós dois trocamos um olhar cúmplice rapidamente enquanto Vítor levanta as mãos em inocência, então voltamos a olhar pro Rafael e sua conquista, eles terminam o beijo e a amiga volta pra mesa, eles ainda continuam conversando, agora ele já está com a mão na perna da ruiva como se fossem namorados.
— Meninas, lamento dizer mas a derrota é clara – Vinny fala e nós três reviramos os olhos e temos que engolir nossa derrota, mesmo assim ainda pedimos mais uma rodada de chopp e continuamos aproveitando o final da noite, já estávamos quase esvaziando a caneca quando Rafael volta com um sorriso orgulhoso e irritante.
— Saudações ao rei – ele fala abrindo ligeiramente os braços antes de se sentar no seu lugar de antes – Mais uma rodada de comemoração?
— A gente vai fechar a conta – eu falo e ele me faz uma careta – Você ganhou, é oficialmente o pegador da turma! Parabéns – eu falo meio irritada com a animação dele, ele ri realmente orgulhoso enquanto Vinny pede a conta ao garçom, nós combinamos de dividir e quando eu estava abrindo minha carteira, Vítor segura minha mão.
— Eu pago sua parte – ele fala estendendo o dinheiro dele.
— A gente combinou de dividir
— Então pra me pagar você poderia aceitar sair comigo, só nós dois, que tal? – ele me dá um leve sorriso que parece ansioso.
— Eu...
— Eu te ligo e a gente marca um dia, pode ser? – ele insiste me olhando de um jeito que não consigo negar.
— Ok! Tudo bem – o sorriso que ele abre é realmente sincero e mesmo ainda não sabendo se isso foi uma boa ideia, eu acabo liberando um sorriso em resposta.
A conta é paga e nós saímos do lugar.
— Você TEM que dormir lá em casa – Lia insiste segurando meu braço e nada disposta a me largar.
— É o seu primeiro dia em casa, eu não vou segurar vela
— Segurar vela? Fala sério, a gente não aguenta mais olhar pra cara um do outro – ela fala fazendo cara de entediada.
— Ah isso é verdade, eu cheguei pensar em jogar ela no mar, na ultima noite – Bruno finge sussurrar e acabo rindo.
— Eu não vou pra casa de vocês ser uma empata foda – aviso decidida.
— Bom, eu vou dormir na casa do Vítor, por que pelo visto lá no apartamento também vai ter festinha – Rafael fala pro Vinny que em resposta beija Bianca de um jeito exagerado.
— Ah que maravilha! Vou ter que ir procurar um viaduto então – reclamo fazendo uma careta.
— Não, você vai lá pra casa, que saco, já disse – Lia decide então começa me arrastar na direção do táxi, dessa vez acabo indo com ela, acenamos um adeus para os outros e eu entro na parte de trás com ela enquanto Bruno vai na frente com o motorista – Então? Me conta tu-do! – ela insiste já quase caindo por cima de mim de tão ansiosa.
— Ahh, eu sabia que tinha algum motivo oculto
— Fala sério, nem era tão oculto assim – ela dá de ombros – Agora para de me enrolar e conta logo – eu olho pra janela, observando as pessoas que ainda andam pelas ruas – Ele beija bem? – eu a olho como quem pedisse pra ela ficar quieta, mas é óbvio que ela não entende isso – Beija né? Sabia, ele tem cara de que beija bem mesmo... E pelo jeito que vocês estavam – ela me aperta rindo – A coisa tava beeeem boa né? Aliás, eu quase fiquei com inveja...
— Chega – eu acabo falando mais alto do que pensei, Lia para de falar e se afasta de mim, Bruno olha pra trás e eu me sinto meio culpada – Desculpa! – peço me virando e segurando a mão dela – Desculpa, Lia, eu sei que você tá animada e não consegue calar a boca por mais de dez segundos, mas por favor, eu não quero falar sobre isso agora... Por favor, por favor, a gente pode conversar amanhã? – peço sinceramente, ela me dá um sorriso fraco, mas me abraça forte.
— Eu amo você – ela fala sem me soltar.
— E eu amo você – beijo sua bochecha e ela continua apoiada com a cabeça no meu ombro e eu com os braços em volta dela durante todo o caminho. Quando chegamos Bruno abre a porta e nós entramos, me jogo no sofá e Lia se joga por cima de mim, antes que eu reclame dela, Bruno se joga por cima de nós duas e gritamos e rimos juntas.
— Vai tomar um banho, vai – Lia empurra ele, que faz um som de reclamação, mas se levanta.
— Tem que pegar roupa de cama pro outro quarto – ele avisa já saindo da sala.
— Sabe o que eu queria agora? – Lia fala enquanto se ajeita no sofá, quase me esmagando.
— A massagem do Vinny – falo e ela ri concordando – É, mas hoje já tem outra no nosso lugar – falo com um leve revirar de olhos, Lia se vira e me olha curiosa.
— Ciúmes? – reviro os olhos ainda mais – Eu também acho estranho ele com uma garota... Tipo, sério!
— Você acha que vai ser sério mesmo? – ela apoia a cabeça na mão ficando com o rosto frente a frente com o meu.
— Você conhece ele melhor que eu, aliás, melhor que qualquer pessoa no planeta, então me diz, você já viu ele assim alguma vez? – eu afundo minha cabeça no sofá – Relaxa, ele ainda vai ser seu eterno melhor amigo – ela fala com certa ironia na voz, eu acabo rindo e abraço ela apertando o máximo que consigo.
— Vocês dois são – ela me aperta de volta.
— Acho bom! – nós ficamos agarrados por um tempo, até que nos levantamos e subimos pra pegar roupa de cama pra mim, arrumamos a cama de casal do quarto a frente do deles e ela me empresta um pijama, que é um conjunto de short rosa choque e uma camiseta da mesma cor, com as orelhas da Minney, eu vou tomar um banho e ela também vai pro quarto deles.
Saio do banheiro vestida e com os dentes escovados, abro a porta do quarto e Bruno está chegando no corredor, ele está com uma cueca daquelas samba canção e uma camiseta branca.
— Ah maravilha, vou ter pesadelos por uma semana inteira – implico com ele, mas já o vi com menos roupa ainda, por isso ele sabe que estou brincando.
— Vai se ferrar, vai!
— Não é isso que o cara usa depois de 20 anos de casamento? – pergunto fazendo uma cara de confusa, ele ri e me mostra o dedo do meio, já abrindo a porta do quarto deles.
— Eu sugiro tampões no ouvido – dessa vez eu que mostro o dedo do meio pra ele, nós entramos em cada quarto rindo, eu paro na porta olhando o quarto onde estou, ele é razoavelmente grande, tem um armário na lateral preto, a parede de frente tem um papel de parede listrado, branco, cinza e preto, eu mesma escolhi, a cama é de casal e agora está com travesseiros, lençol e um edredom em cima de forma nada organizada, um criado mudo também preto está ao lado da cama, na parede ao lado a porta do banheiro está fechada, eu caminho até a cama e começo a arrumar ela, quando termino me deito e me cubro apenas com o lençol, reviro várias vezes, até que acabo cochilando.
Eu estou andando por um corredor, o lugar é totalmente branco e tem um cheiro de álcool e produto de limpeza, não tem ninguém por perto e todas as portas que tento abrir estão fechadas, eu chamo por alguém e só consigo ouvir o eco da minha própria voz, mesmo assim continuo andando no corredor que parece nunca ter fim, até que o primeiro som que ouço desde que apareci aqui chama minha atenção, eu paro de andar e então o som fica mais claro, é como um choro abafado, aproximo minha orelha da porta e confirmo que vem de lá de dentro, giro a maçaneta e pela primeira vez a porta se abre, entro devagar e no canto atrás da porta tem alguém encolhido, os joelhos junto ao corpo e as mãos na cabeça, o choro é ainda mais alto aqui dentro, os soluços cortam meu coração e tudo que eu quero fazer é tirar a dor que essa pessoa está sentindo, por isso me ajoelho na frente dele e coloco as mãos sobre as suas, como se tivesse levado um susto muito grande ele levanta a cabeça e me olha, os olhos muito vermelhos, inchados mas ainda assim os mesmos olhos que encarei durante quase toda noite.
— Vítor? – assim que seu nome sai da minha boca ele me abraça forte, como se estivesse esperando me ver, eu fico um segundo sem ação, mas então quando ele volta a chorar eu o abraço tentando consolá-lo de alguma forma – O que aconteceu? – pergunto tentando entender, então ele se afasta e indica com a cabeça algo atrás de mim, quando me viro, levo um susto, tem três corpos cobertos com um plástico preto, começo a tremer antes de conseguir formar um pensamento, mesmo assim, me aproximo de um deles, com as mãos tremendo puxo o plástico e encontro o Lipe, os olhos fechados, como se estivesse em um sono profundo, mas o corte na sua testa ainda sangra.
Eu abro os olhos segurando um grito preso na minha garganta, olho em volta e estou no quarto, mas meu corpo ainda treme e meu coração está tão disparado que ouço as batidas dentro da minha cabeça, eu tento me acalmar e minha respiração demora longos minutos pra se normalizar, fecho os olhos e começo a contar até dez mantendo o ritmo da minha respiração, até que consigo parar de tremer, porém a imagem não sai da minha cabeça, Vítor chorando, me abraçando forte como se ele precisasse de mim e Lipe ali, morto logo ao nosso lado, essa imagem me deixa completamente culpada, eu queria consolar o Vítor, queria tirar aquela dor que ele estava, mas enquanto eu queria fazer isso era como se eu tivesse me esquecendo da minha própria dor, me esquecendo do Lipe e eu não posso me esquecer. Não posso. Desisto de tentar me enganar achando que vou conseguir dormir e me levanto da cama, caminho na ponta dos pés e saio do quarto, ouço uma risada abafada vindo do quarto deles e me afasto o mais rápido que posso, desço as escadas e vou pra sala, o objeto prateado em um dos sofás chama minha atenção, vou até lá, me jogo no espaço ao lado, puxo ele pro meu colo e as figurinhas de florzinha colorida me confirma que esse é o notebook da Lia, por isso abro e digito a senha que é a mesma pra qualquer coisa que ela tenha, abro a página da internet enquanto tento decidir se devo ou não levar isso adiante, mas a resposta é óbvia, eu PRECISO fazer isso, por isso quando me dou conta já apertei o enter e a pagina agora está cheia de todos os detalhes possíveis sobre o acidente que aconteceu quatro anos atrás, no dia 4 de janeiro de 2013, escolho um dos principais jornais da cidade e assim que a pagina carrega me leva de volta para o meu pior pesadelo, uma onda de pânico começa a me sufocar, a foto do nosso carro capotado, quebrado e ainda sujo de sangue faz o tremor voltar por cada pedaço do meu corpo, fecho os olhos alguns segundos e quando abro, evito olhar pra essa foto, desço a pagina e a dor é ainda maior, a foto do Lipe está destacada, ele está com aquele sorriso que era sua marca registrada e as lagrimas rolam naturalmente pelo meu rosto, abaixo da foto dele está escrito.
“Felipe Braga Alves, 19 anos, aprovado no curso de Medicina da Universidade Federal de Cristalina, estava a caminho da festa anual dos aprovados, junto com sua namorada, quando o carro os atingiu, Felipe estava ao volante e recebeu a pancada maior, ele estava inconsciente e foi levado de helicóptero para o Hospital Metropolitano com graves ferimentos e um estado de saúde muito grave”
Fecho os olhos novamente e deixo a dor já familiar se acalmar, tomo uma dose de coragem e desço mais um pouco a pagina, encontro uma foto minha, mas ignoro totalmente o que quer que tenha escrito sobre mim, continuo descendo pela matéria até que acho o que estava procurando, a foto de um casal é bem maior que as outras fotos sobre o assunto, é uma foto de corpo todo, eles estão abraçados, sorrindo, parecem realmente felizes, a nota deles também é maior.
“A presidente da revista Interligadas, Aline Ferraz Albuquerque, 47 anos, e seu marido, o jornalista Renan Albuquerque Viana, 51 anos, foram as duas vitimas fatais do acidente desta madrugada, o casal voltava de uma festa entre amigos e foi o primeiro carro atingido, infelizmente eles não resistiram aos ferimentos e morreram no local, segundo os bombeiros seria realmente impossível que tivessem saído com vida, dado o estado em que o carro foi encontrado. O casal deixa além de todas as suas conquistas profissionais, um casal de filhos. Sara Albuquerque Lima, casada, 24 anos, estava morando fora da cidade há um pouco mais de um ano, mas chegou essa manhã junto com o marido e a filha de apenas 2 anos. O segundo filho do casal, o jovem Vítor Albuquerque Viana, 19 anos, estudante de Publicidade, morava com os pais, mas não estava no carro, ele foi visto no Hospital mas se recusou a falar com os jornalistas. Deixamos aqui nossos sentimentos aos filhos.”
Eu termino de ler e é como se uma enxurrada de informações ainda estivesse na minha cabeça, eu mal consigo me concentrar em apenas uma coisa por que tudo é assustador e completamente novo pra mim, na época do acidente tudo que eu queria era que tudo fosse mentira, queria esquecer tudo aquilo e por motivos óbvios ninguém me forçou ou me deu mais informações sobre tudo que aconteceu naquele dia, e depois quando as coisas começaram a ganhar forma, eu simplesmente não procurei por nada, eu já tinha a minha dor, meu vazio e isso já era muito coisa pra eu conseguir lidar, somente agora, quatro anos depois, que pela primeira vez eu procurei por algo sobre o acidente e tudo que eu acabo de ler me fez ver que não foi apenas a minha vida que mudou naquele dia, não é apenas a minha dor que continua cortando meu peito, existe outras pessoas marcadas, uma mulher que agora tem 28 anos, perdeu os pais e teve que contar isso pra sua filha de apenas dois anos na época, teve que explicar pra ela o por que estava chorando, o por que nunca mais ela veria os avós e ainda lidar com toda sua dor, além dela teve também o Vítor, perder os pais, os dois de uma única vez, aqueles que são exemplos pra qualquer jovem e se vê sozinho, por mais que eu tenha perdido o Lipe, eu tinha os meus pais, mesmo sem morar com eles agora e sem os ver todos os dias, ainda assim eu não consigo pensar em como seria minha vida sem eles, seria devastante. Eu olho novamente a foto do casal, a mulher parece bem mais nova do que seus 47 anos, ela tem um sorriso jovem, alegre e simpático, muito parecido com o do filho, mas a semelhança entre os dois termina aí, pois a maior vem do homem ao lado dela, ele é bem mais alto que ela, tem o rosto um pouco mais sério, mas tem um furo no queixo quando sorri, exatamente igual ao do Vítor, a sobrancelha é levemente grossa e os olhos são com aquela cor de mel e ligeiramente puxados, assim como os do Vítor, e olhando eles dois sinto aquela sensação que eles formavam uma família feliz, daquelas que poderia fazer um comercial de margarina e esse pensamento me deixa ainda mais angustiada, eu realmente não sei como Vítor conseguiu superar, eu sei exatamente o tipo de dor sufocante que é ter alguém tirado da sua vida tão inesperadamente, saber que nunca mais irá ver ou ouvir a voz da outra pessoa, saber que não importa o quanto você peça, implore ou prometa coisas em troca, você simplesmente não terá outra chance, não terá outra oportunidade pra dizer “eu te amo” e ele perdeu as duas pessoas mais importantes na vida de qualquer um. Só não entendo que tipo de quebra cabeça a vida pode querer montar ao colocar ele no meu caminho agora, mesmo nossas vidas já tendo estado tão próximas, somente agora que realmente esbarramos um no outro, de todas as pessoas que existem no mundo, eu fui dar de cara justamente com a única pessoa que é marcada pelo mesmo ferro que eu, o único que conhece as consequências e pesadelos do mesmo desastre que eu, não consigo entender o que pode se esperar de algo assim e realmente desisto de entender, fecho o notebook, o coloco de lado, fecho os olhos e jogo minha cabeça pra trás, em seguida respiro fundo e me levanto, saio da sala e vou pra cozinha, na direção da porta de vidro que dá para os fundos da casa, pego as chaves que estavam penduradas ao lado e abro a porta, fecho com cuidado e caminho até a piscina, me sento com os pés dentro da agua e olho pra cima, o céu estrelado e iluminado me encara de volta, uma brisa gelada porém refrescante me acolhe e eu fecho os olhos aproveitando o silêncio que só as madrugadas nos proporcionam, eu sempre amei isso, mas hoje em dia consigo apreciar ainda mais, embora algumas vezes o silencio possa parecer enlouquecedor, tem algo familiar na madrugada que consegue me fazer me sentir mais completa, permaneço de olhos fechados tentando apagar todas as lembranças ruins e então o par de olhos cor de mel surge na minha mente, ele vem acompanhado de um sorriso cauteloso e é quase como se eu estivesse revivendo o mesmo momento, consigo sentir seu rosto perto do meu, o calor do seu corpo, o ar quente da sua respiração, o toque da sua boca na minha e imediatamente me obrigo a abrir os olhos, balanço a cabeça me livrando desses pensamentos, passo as mãos pelo rosto, molho-as na agua gelada e passo na minha nuca, respiro fundo e repito na minha mente que não deveria estar pensando nesse beijo e que na verdade ele nem deveria ter acontecido, por um motivo muito simples, eu não o amo e nem nunca vou amar, por que eu já amo alguém, eu amo o Lipe e isso não é algo que vá mudar algum dia e eu não deixarei mudar jamais, ele foi o homem da minha vida, meu grande e verdadeiro amor, eu não posso e não vou deixar ele morrer dentro de mim, ele não merece isso.
Um barulho de dentro da casa me desperta dos meus pensamentos, olho na direção da porta de vidro tentando enxergar além delas, vejo um vulto e logo em seguida a porta é aberta lentamente e um Bruno sério e alerta aparece segurando um soquete de madeira, eu acabo rindo.
— Então é com isso que você pretendia expulsar um ladrão? – pergunto com ironia, ele me faz uma careta e dá de ombros vindo até a mim.
— Você só ri por que não sabe o que eu posso fazer com um desses – ele tenta fazer uma manobra jogando o objeto pra cima, mas ele acaba caindo dentro da piscina e nós dois rimos juntos, ele se abaixa e se senta ao meu lado, com os pés dentro da água enquanto observamos o objeto afundar – Não consegue dormir? – ele pergunta e eu dou de ombros – Vítor? – ele pergunta naturalmente e eu o olho.
— Eu amo o Lipe e sempre vou amar, vocês já deveriam saber disso – falo sem esconder minha irritação.
— Ele ia querer ver você feliz, nós queremos ver você feliz, você já deveria saber disso – ele devolve com toda naturalidade do mundo, eu balanço a cabeça e desvio os olhos dele – Você deu um beijo num cara, ninguém espera que vocês se casem, nem nada – nós ficamos nos olhando em silêncio.
— Os pais dele... Foram eles que morreram no acidente – confesso mas ele não parece muito surpreso com a notícia – Você já sabia?
— Eu li e vi todos os jornais na época, eu vi uma foto dele, mas ele era mais novo e estava bastante diferente, eu também não me lembrava exatamente do sobrenome, então eu só estou tendo certeza agora.
— Eu não posso fazer isso com ele.
— Isso o quê?
— Deixar ele acreditar que pode acontecer algo entre nós dois
— Mas já aconteceu – ele fala e eu o olho surpresa - E continua acontecendo ou não estaríamos aqui falando sobre isso – ele completa e me desarma.
— Mas não era pra acontecer
— Por que não? – eu o olho sem acreditar que ele me perguntou isso.
— Por que eu AMO o Felipe
— Eu AMO o Felipe também
— É diferente!
— Eu sei que é diferente, não sou imbecil de achar que é a mesma coisa, mas eu amo o Lipe e sempre vou amar, ele ainda é o meu melhor amigo, meu irmão e eu nunca vou aceitar nada que suje a imagem dele ou que o desrespeite! Então acredite quando eu digo que você não fez e nem está fazendo nada de errado. Você deve sim continuar vivendo a sua vida e se isso significar encontrar alguém, melhor ainda...
— E se fosse a Lia? – pergunto olhando direto nos olhos dele – E se ela tivesse ido e você ficado? – o próprio pensamento disso me dói, não sei o que eu faria sem a Lia, mas preciso que ele entenda o que eu sinto, ele respira fundo e sem desviar os olhos do meu e volta a falar.
— Eu ficaria sem chão! Eu passaria cada segundo remoendo o que eu poderia ter feito e não fiz, eu odiaria o mundo, odiaria não ter ido no lugar dela, juraria jamais esquecer dela e não esqueceria, mas vocês estariam comigo, não seria a mesma coisa, claro que não, mas por vocês eu iria continuar, mesmo que cada dia da minha vida fosse um eterno sacrifício, e então, um dia, eu estaria mexendo nas nossas coisas e veria o vídeo do nosso casamento, aquele que eu passei dias, meses, talvez anos ignorando, eu iria chorar e iria rir vendo nossa felicidade, com isso me lembraria de como nos conhecemos, de todas as vezes que rirmos até a barriga doer, de como fugíamos da escola, dos nossos beijos, das juras de amor, de como ela me fazia feliz, de como eu jurei fazer ela feliz e então eu perceberia que sim, nós fomos felizes, claro que eu iria querer mais tempo, mas eu saberia com toda certeza do mundo que eu fiz a mulher que eu mais amei na minha vida feliz e então me lembraria que ela sempre me dizia o quanto queria que eu fosse feliz e eu honraria a promessa que fiz a ela, talvez eu não encontrasse ninguém, ou talvez encontrasse, mas eu saberia que isso jamais interferiria na história de amor que tivemos, por que EU FIZ ela feliz, cada segundo que consegui – ele me olha com carinho, então segura minha mão – Você fez ele feliz, eu vi isso e você sabe que eu tenho razão, eu nunca tinha visto ele tão feliz como ele era do seu lado ou mesmo quando não estava do seu lado mas passava horas falando de você, ele era irritante de tão feliz e ele te amava, Dani, como ele te amava, chegava ser surreal o quanto ele amou você, assim como era surreal a maneira que ele tinha certeza que você o amava, vocês sempre foram meu casal modelo – ele libera um sorriso fraco – Mas ele se foi! Contra vontade dele, contra a nossa vontade, mas se foi e eu sinto a falta dele cada dia da minha vida, mas eu sei de uma coisa, tudo que ele ia querer ter certeza é que ele fez as pessoas que amava feliz e que elas arrumariam alguma maneira de continuar sendo feliz sem ele, e a primeira pessoa dessa lista seria você. O único medo da vida dele era que você não fosse feliz. Não deixa isso acontecer... Você ainda pode ser feliz, talvez não seja com o Vítor, talvez seja outro cara ou talvez você realmente não encontre outro cara, mas você só vai saber se tentar, então para de tentar inventar desculpas, para de tentar mudar o que você está sentindo, você não tem culpa por estar viva. Só... Se deixa nascer de novo, conheça essa nova Dani e seja feliz, da maneira que você escolher ser, mas seja feliz. É só isso que eu desejo pra você – ele me abraça, passando os dedos pelo meu cabelo e eu choro, abraço ele de volta e me deixo ser amparada mais uma vez, depois de alguns minutos me afasto – Nossa, você tá com uma cara péssima – ele fala fazendo cara de horrorizado, eu acabo rindo e o empurro, ele também ri, mas se levanta e me estende a mão, nós entramos na casa depois de enxugarmos muito bem os pés, ele sobe comigo e me deixa na porta do quarto – Tenta dormir
— E você deixa ela dormir um pouco, por favor – ele ri.
— Não posso prometer nada – ele entra no quarto deles, eu vou direto pra cama, me jogo nela ainda repassando tudo que ele me disse e em algum momento eu acabo pegando no sono.
Acordo com o peso extra na cama e algo em cima das minhas pernas, quando abro os olhos Lia está deitada com a cabeça no meu travesseiro, um sorriso grande, os olhos azuis brilhando e as pernas por cima das minhas.
— Bom diaaaaaaa – ela fala já me apertando, eu acabo rindo – Eu estava com tanta saudade de acordar você
— Sempre foi seu passatempo preferido né?
— É que você dorme muito
— Eu gosto de dormir – ela revira os olhos – Que horas são?
— Dez e meia! E o Bruno está terminando e fazer ovos mexidos com bacon
— E qual a ocasião especial? – ela me encara desacreditada.
— É nosso primeiro café da manhã em casa
— Oh meu Deus, verdade! Meus parabéns – abraço ela que ri animada – Você deveria descer e participar, eu vou trocar de roupa e já vou embora – ela me solta rapidamente e me encara.
— Por que você vai embora?
— Por que é o primeiro café da manhã do casal, na casa de vocês – ela revira os olhos, joga as pernas pra fora da cama e puxa meu edredom.
— Se você não descer comigo agora, vai nos obrigar a fazer o primeiro café da manhã aqui nesse quarto – ela fala e cruza os braços me encarando – E aí? Você desce ou a gente sobe? – jogo minhas pernas pra fora da cama, ela dá um pulinho alegre e me abraça meio saltitante.
— Posso escovar os dentes primeiro?
— Por favor, o bafo está horrível
— Vai se ferrar! – entro no banheiro, faço tudo que preciso e quando saio ela está me esperando na cama – Achei que tivesse descido
— E correr o risco de você fugir pela janela? Não mesmo – nós rimos e depois descemos.
O cheiro nos alcança ainda na escada, vamos direto pra cozinha e a mesa já está servida, tem ovos mexidos, bacon, presunto, queijo, pão integral, pequenos croissant, bolo, suco de morango, de laranja, café, leite e algumas frutas.
— UAU! – eu falo impressionada e Bruno abre os braços orgulhoso.
— Eu sou o cara – Lia vai até ele e pula no seu colo, os dois riem e se beijam, enquanto eu puxo uma cadeira e me sento, nós tomamos o café juntos, conversando e rindo.
— Eu acho que você podia vim morar aqui com a gente, tem mais espaço, você já tem um quarto e... Eu ia adorar ainda ter você por perto, né amor? – ela fala mas em olha pro Bruno, eu sim e ele está rindo já sabendo onde isso vai dar.
— Lia, você está CA SA DA! Eu não vou morar aqui e ser a filha postiça de vocês, além do mais, eu já tenho onde morar, lembra? – ela revira os olhos.
— Claro, com o Vinny!
— Não, no nosso apartamento e que se eu me lembro bem você morava lá até outro dia
— É, até outro dia, por que hoje já colocaram um folgado no lugar – eu e Bruno rimos da crise de ciúmes dela, mas ela não acha graça e fica emburrada.
— Ei... – eu chamo e ela me olha irritada – Eu te amo – falo sem sair som.
— Então vem morar com a gente – ela pede fazendo todo drama de sempre.
— Ok, eu desisto, explica você pra ela que eu tenho que tomar banho – dou o ultimo gole do meu suco e saio.
Entro no quarto, vou pro banheiro e tomo um banho demorado, me distraio algumas vezes lembrando da conversa que tive ontem com o Bruno e em como todos eles insistem que eu deveria me permitir conhecer alguém, por mais que talvez eles tenham razão ainda não consigo pensar nisso, tudo que eu sinto pelo Lipe ainda é grande demais, mas tenho que confessar que mesmo assim, o beijo de ontem de alguma forma mexeu comigo, não sei explicar como ou por que, mas a imagem tem se repetido na minha cabeça e é irritante. Saio do banheiro enrolada na toalha e encontro Lia sentada na cama segurando umas roupas, eu paro e ela me estica uma calça jeans e uma camiseta.
— Achei que você não fosse querer colocar a mesma roupa de ontem – ela dá de ombros.
— Já disse que eu te amo hoje? – ela revira os olhos e eu abro os braços pra ela, que mesmo ainda enciumada se levanta e me abraça – Eu morar lá não significa que eu te ame menos, eu sempre vou estar por perto, você sabe, não sabe? – ela concorda com a cabeça.
— Mas eu sinto sua falta de manhã, ninguém é tão mau humorado quanto você – nós duas rimos.
— Me ligue todas as manhãs e eu te dou uma dose de mau humor inteiramente gratuita – ela ri e parece menos contrariada.
Eu visto minha roupa, junto minhas coisas, arrumo a cama e vou embora deixando Lia um pouco menos chorona, ando até a estação de metrô, encontro um lugar e me distraio olhando duas gêmeas que estão cantarolando a alguns passos de mim, elas estão com roupas iguais e são as coisas mais fofas que eu já vi.
— Vai acabar assustando as garotas – a voz me distrai, quando olho pra frente Rafael está parado me olhando e rindo.
— Você é tipo aqueles ratinhos irritantes do “Baby”? – ele me olha confuso.
— Ratinhos da onde?
— O filme do porquinho, “Baby” – ele fica mais confuso ainda – Ah qual é, você sabe, todo mundo já viu esse filme, o porco que queria ser pastor de ovelha... – ele ri.
— Bom, parece que nem todo mundo já viu esse filme
— Não acredito que você nunca viu – falo realmente surpresa – É um clássico – ele ri e o moço que estava sentado ao meu lado sai, então ele se senta.
— Ouvi sobre você a noite inteira – ele fala com um sorriso malicioso.
— Então pode guardar o que você ouviu pra você mesmo – ele ri e então nossa estação é anunciada, nos levantamos e ficamos em frente a porta.
— O cara tá mesmo afim de você – eu saio na frente e sigo sem olhar pra trás, quando alcanço a escada rolante ele já está ao meu lado – Ele até te acha legal, o que obviamente apenas ele deve achar, já que você é o oposto exato da palavra legal – reviro os olhos e me viro de frente pra ele.
— Quer saber? Eu devo desculpas aos ratinhos do filme, você é bem mais irritante que eles.
— Ok, agora você conseguiu me deixar curioso! Nós vamos assistir esse filme hoje – ele fala e pula quando a escada alcança o topo.
— Eu não vou ver um filme com você – ele ri e olha pra trás.
— Será que não? – eu o ignoro e nós atravessamos a rua, duas ruas depois estamos entrando no nosso prédio, já tinha apertado o botão do elevador, quando seu João aparece.
— Jovens! – ele nos chama e eu já me viro frustrada.
— Se o senhor disser que o elevador está ruim, eu juro que junto minhas coisas e vou morar debaixo de uma ponte – ele acha graça do meu desespero.
— O elevador está muito bom! É que chegou uma encomenda pro apartamento de vocês – ele avisa e se abaixa dentro da sua cabine, então pega uma caixa razoavelmente grande e que parece um pouco pesada.
— Deve ser do Vinny – já estava indo pegar quando Rafael toma a frente.
— Na verdade é minha – ele sorri como se escondesse um grande segredo, finjo não me importar e então o elevador chega, eu seguro a porta e nós entramos, eu olho a caixa e a única coisa que tem escrito é “FRÁGIL” – A curiosidade matou o gato
— Por mim você pode engolir o que quer que tenha dentro – ele ri ainda mais, o elevador para e abre a porta, nós saímos e eu abro a porta do apartamento, o lugar está silencioso.
— Vinny – grito mas não tem resposta.
— Acho que ele não tá – Rafael fala implicando comigo, reviro os olhos e já estava indo pro meu quarto – Não quer saber o que é? – como não estou disposta a dar o braço a torcer, apenas fico parada esperando, ele se joga no sofá, animado e começa a rasgar a caixa com uma ansiedade tão grande que acaba aumentando minha curiosidade, por isso me aproximo e me inclino sobre o sofá, ele consegue abrir e tira o que parece ser um grill só que um pouco maior e mais largo, eu o olho confusa.
— Nós já temos um grill! – ele ri.
— Não é um grill, ô sua idiota!
— Idiota é você
— Pelo menos eu sei a diferença de uma grill pra uma crepeira – ele fala e eu o olho meio confusa ainda.
— De fazer crepe? – ele ergue a sobrancelha e me encara.
— Eu espero realmente que você seja mais inteligente do que parece – eu dou um tapa na nuca dele e ele ri – É, é de fazer crepe
— E você sabe fazer?
— Não, comprei de enfeite pra cozinha, acho que vai ficar legal perto da cafeteira – eu faço uma careta, mas olho dentro da caixa e vejo mais alguma coisa.
— O que é aquilo? – ele abre um sorriso maior ainda e pega, me mostrando uma coqueteleira preta.
— Ficou mais interessante – falo sorrindo e ele dá um pulo do sofá, ficando de frente pra mim.
— Se você for no mercado comigo, podemos comprar algumas coisas e eu faço uns crepes e uns coquetéis pra gente, já que pelo visto estamos condenados a ficar na doce companhia um do outro – ele levanta e abaixa as sobrancelhas algumas vezes e eu acabo rindo, puxo minha bolsa do sofá e vou pra porta, ele ri e me acompanha.
Ele enche tanto o carrinho que pegamos que eu sou obrigada a parar em um dos corredores.
— Você tem dinheiro pra pagar tudo isso? Por que eu só tenho 50 reais na carteira – ele faz uma careta e pega uma garrafa de vinho tinto – De onde você tira tanto dinheiro, se você só começou a trabalhar outro dia e como motoboy? – ele para inclinado sobre o carrinho e bem próximo de mim.
— Menosprezando o trabalho alheio? Coisa feia – ele fala fazendo uma cara de repreensão, eu o encaro e ele sorri – Eu era um mauricinho rico, lembra?
— Era? Tem certeza? – aponto pra dentro do carrinho.
— Tô tentando viver como vocês, pobres mortais
— Então uma dica, nós, meros pobres mortais, não gastamos nosso salario todo no meio do mês comprando esse tipo de coisa...
— Por isso que eu disse que estou tentando.
— Ok, Senhor mauricinho em reabilitação... Você ainda não disse como vai pagar e pelo que eu saiba, seu salário ainda não saiu!
— Eu tinha uma grande mesada do meu avô, por que era o jeito dele me agradar. Uma mesada razoável da minha mãe, pra ela se livrar da culpa de ter me trocado por dinheiro e maridos ricos e diferente do que você pensa, eu não sou um completo idiota, por isso fui guardando um pouco do dinheiro, então digamos que eu tenho uma boa reserva para um ótimo ano de reencontro comigo mesmo – ele fala levando a mão ao coração.
— Ok, só tem um erro... – aproximo minha boca do ouvido dele – Eu ainda te acho um completo idiota – ele ri.
— Não, essa é só sua parte incrivelmente teimosa, tentando não aceitar o fato que eu sou incrível – ele me dá uma piscada e se afasta indo até outra prateleira, eu continuo empurrando o carrinho e meu celular toca, pego da bolsa e sorrio quando vejo o nome.
— Pai!
— O que diz de passar aqui e fazer um lanche com seu velho?
— Cadê a mamãe?
— Foi pra um tal de coffee alguma coisa com a sua tia Léia e aquela enjoada da Marina – ele fala e eu acabo rindo.
— Tudo bem, mas eu não posso passar a noite aí
— Só de ver você já vai ser bom
— Ok, chego em meia hora, pode ser?
— Te espero, beijo, vem com cuidado!
— Onde nós vamos? – Rafael pergunta colocando uma caixa de ovos no carrinho.
— Meu pai tá meio solitário em casa e eu disse que passava lá
— Tive uma ideia melhor!
— Já posso ficar apavorada ou tenho que fingir que quero ouvir? – ele finge uma risada.
— Ele podia vim pra cá! Ele tem carro, nós já fizemos as compras e sem querer me meter, mas desde que eu cheguei aqui não vi seu pai te visitando... – ele espera minha resposta e preciso confessar que isso é verdade, acho que ele só foi lá no apartamento umas três vezes, uma vez por ano, por isso mesmo odiando concordar com Rafael, pego o celular de volta e ligo pro meu pai, ele fica todo animado e diz que só vai trocar a roupa e já está vindo, por isso nos apressamos e vamos logo pagar a conta, como Rafael acabou comprando metade do mercado, as sacolas são muitas e eu aproveito pra reclamar no ouvido dele até chegarmos no apartamento, colocamos tudo sobre o balcão da cozinha e ele esfrega as mãos animado.
— Eu vou começar preparando as coisas pro crepe
— Eu vou começar escolhendo as musicas – dou uma piscada e saio da cozinha.
Vou pro meu quarto e tiro a roupa deixando em cima da poltrona pra não esquecer de devolver, coloco um short velho, que antes era uma calça mas que eu o adaptei e uma blusa de meia manga com o símbolo do batman, prendo meu cabelo em um coque no alto da cabeça, pego o cabo do meu celular e saio do quarto, chego na sala e ligo a tv, conecto meu celular nela e coloco minha playlist, imediatamente a voz do Lucas Lucco invade a sala cantando “Adivinha”, eu começo a dançar a caminho da cozinha e paro quando percebo o olhar do Rafael, ele parou ainda com a colher de pau na mão e me olha como se eu fosse um ET.
— Sério? Lucas Lucco?
— Eu gosto dele, a voz dele é linda e ele é gato pra caralho – ele ri balançando a cabeça como se não entendesse algo – Que foi?
— É só que... Não imaginei que fosse seu estilo – ele dá de ombros e volta a mexer a massa, eu me aproximo dele, pego um pedaço de queijo que tinha sobre a pia e jogo na minha boca.
— Eu gosto de música! TODAS as musicas – ele faz uma cara de impressionado e continua fazendo a massa do crepe, enquanto eu me sento na pia e canto junto com a música pra poder irritar ele, mas ao invés disso, ele simplesmente se vira rápido pra mim e usando a colher como um microfone ele canta o refrão junto comigo, dessa vez sou eu que o olho surpresa, ele continua cantando e fazendo uma performance ridícula que acaba me fazendo rir.
— Eu também gosto de música! TODAS as musicas – ele me dá uma piscada e volta a me dar as costas enquanto rebola de um jeito que me faz olhar um pouco mais, ele tirou a camisa, está com a calça jeans e seu corpo é impossível de não ser notado, mas o que ainda me chama mais atenção é a tatuagem, eu volto a observar os X em vermelho que tem em algumas partes do grande mapa que cobre a lateral do seu corpo e já estava com a pergunta na ponta da língua quando a campainha toca, ele aponta pra porta indicando que eu abra e eu corro até lá, abro e papai está com um sorriso que me faz sorrir animada, ele abre os braços e eu o abraço apertado, ele passa a mão no meu cabelo, beija minha testa e depois a ponta do meu nariz, eu sorrio e beijo sua bochecha, depois abro mais a porta pra que ele entre.
— Finalmente eu fui convidado sem ter que me fazer de pobre coitado – eu reviro os olhos, mas me aproximo e passo meus braços em volta dele que me aconchega ainda mais e eu tenho certeza que esse sempre será meu lugar favorito – Então você colocou o garoto na cozinha – ele fala já esticando a mão pro Rafael.
— Pra ser totalmente honesto, eu nem dei a ela a escolha de vir pra cozinha, acho que o senhor sabe por que – ele fala como se estivesse sussurrando e os dois riem.
— Há há há! Quando acabarem as piadas, super engraçadas me avisem – eles riem ainda mais.
— Achei que nós tínhamos conversado sobre seu gosto musical – papai fala fazendo uma careta.
— Nem começa ou eu coloco pra repetir – ele tampa as mãos com a boca e faz uma cara de assustado, eu ofereço um dos bancos que ficam a frente do balcão e ele se senta.
— Bom e o que teremos aqui?
— Crepe! O riquinho besta ali comprou uma crepeira, que sim, ela faz crepes – falo e Rafael ri.
— E o senhor vai ser o primeiro a experimentar
— Você! Senhor me faz parecer velho
— E ele acabou de completar 25 – eu falo e papai concorda fielmente.
— E onde está o Vinny? – ele pergunta olhando ao redor.
— Com a namoradinha dele – não consigo disfarçar o tom irritado da minha voz – Não, não é ciúme! – aviso antes que um deles fale e os dois fingem olhar pro outro lado.
— Espero que você saiba fazer isso, por que eu estou sem almoço ainda – papai fala e Rafael garante que ele não irá se arrepender, então ficamos observando e conversando, até que a primeira rodada de crepes fica pronta, eu pego os pratos e arrumo o balcão, Rafael nos serve e rola um suspense na hora de comer o primeiro pedaço, papai é o primeiro e assim que sente o sabor arregala os olhos surpreso.
— Isso é fantástico – ele fala e Rafael sorri orgulhoso, experimento e odeio ter que concordar tanto.
— Então? – Rafael pergunta e eu faço uma careta.
— Já comi melhores – mas como dou outra mordida exagerada ele volta a sorrir orgulhoso.
— Você realmente leva muito jeito na cozinha, isso é um dom
— Também não exagera pai, ele já se acha o bastante
— Mas é verdade! Eu sou um grande apreciador da culinária e posso dizer honestamente que você tem talento, se eu fosse você investiria nisso – papai fala e olho pro Rafael esperando encontrar ele com aquele jeito arrogante, mas ao invés disso ele apenas sorri um pouco sem jeito, eu estranho, mas ele logo muda de assunto perguntando sobre como andam as coisas no hospital e papai desanda a falar.
Nós comemos mais duas rodadas enquanto conversamos e papai começa a falar sobre todos os meus desastres na cozinha, o que é obvio que diverte Rafael como eu nunca tinha visto, mesmo isso sendo um pouco irritante, quando percebo também estou rindo descontrolada lembrando da vez que eu coloquei fogo em cinco panos de prato no mesmo dia, enquanto tentava fritar um único bife, depois de rirmos bastante, Rafael parte para os coquetéis, ele coloca as bebidas que comprou em cima da mesa, vodca, vinho e cachaça, papai me olha e depois olha pra ele.
— Sempre tem tantas bebidas por aqui?
— Não! – nós respondemos rápido e juntos, papai nos olha ainda mais desconfiado.
— É uma exceção pela sua visita – Rafael fala e papai ri.
— Meu filho, eu já tive vinte anos e hoje eu sei o quanto essas desculpas são horríveis – mas como ele ri logo em seguida ninguém fala mais nada e Rafael começa a fazer o coquetel, picando frutas, colocando gelo e fazendo suas misturas, ele despeja a bebida vermelha em uma taça e coloca na frente do meu pai, mas ele empurra pra mim – Eu estou dirigindo, prefiro algo mais natural – Rafael faz sinal de continência e se apressa em preparar um sem álcool, eu provo o meu e mais uma vez tenho que confessar no quanto ele é bom fazendo absolutamente qualquer coisa na cozinha. Quando todos temos nossos drinques, vamos pra sala, eu e Rafael no chão e papai no sofá, começa a cantar “Tempo perdido” de Legião urbana.
— Finalmente uma musica decente – papai fala levantando a taça dele, ele cantarola fazendo uma performance no mínimo hilária e Rafael coloca ainda mais pilha nele.
— Tem certeza que esse era o sem álcool? – pergunto fingindo confusão
— Eu estou feliz de estar com a minha filha, posso?
— E por finalmente ouvir uma musica boa – Rafael completa.
— Como se seu gosto fosse ótimo né?
— Melhor que o seu – eu tento acertar um tapa nele mas ele se esquiva, então a música muda e começa a tocar Faroeste caboclo.
— Aposta? – ele me desafia e papai me olha com os olhos levemente arregalados.
— Não me faça passar vergonha – ele diz e então eu respiro fundo e me viro de frente pro Rafael, começamos a cantar juntos com a música ao fundo, eu estava indo super bem até que na metade da música eu pulo uma frase inteira e claro que ele solta uma risada exagerada e papai também acaba rindo, eu tento me endireitar e voltar pra música, mas continuo errando várias vezes até que desisto e deixo apenas Rafael cantar e ele continua cantando e cantando e cantando.
— Ok, já entendemos que você sabe – ele me ignora e continua cantando.
— Uma vitória e tanto – papai cochicha e ele sorri orgulhoso ainda cantando, enquanto eu reviro os olhos e ele só para quando a música acaba sem ele errar nada.
— Sente isso? – ele fala como se estivesse saboreando algo – É o sabor da vitória esmagadora – ele ri e eu faço uma careta que faz os dois rirem ainda mais.
— Pode comemorar, fazendo mais um desses – aviso e estico minha taça vazia pra ele, que se levanta e vai pra cozinha, cantarolando.
— Não trabalha amanhã? – papai pergunta quando encosto a cabeça no joelho dele.
— Trabalho – levanto o rosto pra olhar pra ele, encontro-o me examinando com cuidado – Eu não vou ficar bêbada, papai, é só um drinque...
— O segundo – ele me corrige e isso me faz sorrir, então como eu fazia quando era mais nova, me levanto e me sento no sofá ao lado dele, me encolho e deito a cabeça no seu colo, ele sorri e acaricia meu cabelo, solta o elástico dele e penteia com os dedos, me fazendo cafuné e me lembrando como eram bons os tempos em que eu tinha isso todas as noites, sempre que ele chegava tarde dos plantões e entrava no quarto achando que eu já estava dormindo, ele se deitava ao meu lado e fazia cafuné, contando como tinha sido o dia dele, mesmo que pensasse que eu estava dormindo, eu continuava de olhos fechados ouvindo sua voz calma, rouca e doce que sempre foi o melhor som pra mim, depois ele beijava minha testa e saía do quarto e eu sabia que acontecesse o que fosse ele estaria ali comigo, isso sempre me acalmou, eu olho pra ele e aquele sorriso tranquilizador está no seu rosto.
— Eu amo você – ele fala e passa a ponta do dedo no meu nariz, eu sorrio e me aconchego ainda mais nele, me deixando receber seu carinho e me sentir aquela menina de anos atrás.
— Sem álcool pra você e dose dupla pra você – Rafael fala entregando nossas taças.
— Espero que isso seja uma péssima piada – papai fala e dessa vez eu acabo rindo enquanto Rafael se atrapalha pra explicar que colocou o mínimo de álcool possível, eu continuo sentada e encostada no papai e Rafael no chão, até que eles começam a falar de um filme de terror que estreou e começam a me colocar mais medo ainda.
— Eu lembro uma vez, acho que ela tinha uns 10/11 anos e nós vimos aquele filme da boneca assassina... – ele começa a contar e já está rindo.
— Ah não, pai, não! – ele me ignora e volta a falar.
— E a Dani tinha uma boneca que tinha enchido o saco pra ganhar de presente e ela amava a boneca, levava pra todos os lados, até que depois desse filme, a boneca simplesmente desapareceu, eu lembro que nós perguntávamos e ela sempre dizia que tinha esquecido no quarto ou que não sabia onde estava, nós estranhamos mas achamos que ela tinha apenas desapegado da boneca, até que um dia quando a mãe dela estava arrumando umas caixas que tínhamos num quartinho dos fundos da casa, ela achou um baú, que estava pregado, ela achou que fosse eu e me chamou, eu neguei e nós abrimos o baú e dentro dele estava a boneca, amarrada dentro de um sacola preta, e dentro do baú tinha uma cruz e quase um quilo de alho... – ele não aguenta e se engasga com a própria risada, Rafael também já está quase rolando no chão e confesso que também não aguento e começo a rir.
— Eu estava protegendo vocês também...
Nós continuamos rindo e relembrando algumas histórias, até que papai avisa que tem que ir embora, a noite já está começando a cair e eu mal percebo, levo ele até a porta e o abraço forte até o elevador chegar, depois volto pra dentro do apartamento e não vejo Rafael pela sala nem pela cozinha, mas começo a lavar a louça e ajeitar a cozinha, até que já estava terminando quando ele aparece com uma camisa verde militar, outra calça jeans e um boné.
—  Onde você vai? – pergunto curiosa enquanto ele procura pela carteira.
— Um doce se você acertar – ele faz um sorriso malicioso.
— Você não consegue passar 24 horas, sem fazer sexo? – ele ri.
— Nunca tentei – ele me manda um beijo no ar e sai do apartamento, guardo as taças e apago as luzes, entro no meu quarto e me jogo na cama, o álcool ainda fazendo efeito e acabo dormindo.


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