Superstition escrita por PW, VinnieCamargo, Jamie PineTree


Capítulo 4
Capítulo 03: Life Sucks!


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/733050/chapter/4

Três dias antes

O pequeno pedaço do paraíso se espalhava entre as pernas separadas e inquietas de Tami. Apenas dois dedos eram necessários para ela sentir-se leve e fora do eixo. Encarava o ventilador de teto girar com a cabeça tombada para trás, os cabelos castanhos sobre o travesseiro, as bochechas coradas, o sorriso de lábios torcidos. Sem conseguir controlar as pernas, deixou um gemido escapar.

Sentiu beijos quentes subirem sua coxa, passando pela barriga e chegando até seus seios. Antes que pudesse olhar para frente, um rosto surgiu em seu campo de visão.

Os cabelos negros com mechas violetas desbotadas e as orelhas pontudas davam à Candace o toque mágico de uma elfa. Ela desabrochou um sorriso safado e depositou um beijo nos lábios da garota latina. Segundos depois, encarando os olhos azuis vibrantes da parceira, Tami sentiu a flor de lótus da jovem encontrar a sua. Esfregaram as genitálias suavemente uma na outra e Tami mordiscou os lábios, apertando o lençol entre os dedos.

Candace beijou seu pescoço.

— A gente bem que poderia ficar a noite inteira aqui. — Comentou.

— Por mim, eu não sairia mais dessa cama. — Tami puxou o rosto da garota para um beijo rápido. — Mas meu pai vai chegar daqui a pouco.

— Achei que já tivesse contado pra ele. — Candace deitou ao seu lado, seus seios pequenos chacoalharam.

Tami revirou os olhos. Aquele era um assunto que vez ou outra desabava sobre sua cabeça como um peso de mil toneladas, esmagando sua consciência. Sua experiência com conversas sobre sua sexualidade não lhe davam total segurança de que pudesse dar aquele passo com o pai. Não havia idade pré-determinada para se ter uma conversa aberta acerca do assunto, mas independente de estar preparada ou não, Tami resolveria tudo em seu devido tempo.

— Tenho medo de que aconteça o mesmo quando contei à minha mãe, sabe? A forma como ela reagiu… Fiquei tão assustada. Porque, com o tamanho do meu amor por ela, alimentei que poderia confiar nela para compreender. E muito pelo contrário, ela colocou em mim uma culpa que não me cabia. — Um nó se formou em sua garganta. — Na época, meus pais já estavam separados, eu estava concluindo a faculdade e isso acabou comigo, me prejudicando durante o final do semestre.

Uma lágrimas ameaçou descer, mas a professora foi mais forte. Continuou:

— Então, eu só procurei um trabalho e saí de casa. Não deixei de amá-la por isso, mas confesso que nossa relação mudou muito. Não posso perder a ligação com meu pai da mesma forma. Não posso perdê-lo.

Candace ouviu tudo com pesar. Ela entendia plenamente o que a latina queria dizer, embora não tivesse passado exatamente pela mesma situação, todos os relatos que já ouvira foram suficientes. Tami era bastante preciosa e ela queria protegê-la.

— Quando se sentir preparada, vou estar aqui pra te apoiar. — Candace sorriu, acariciando seus cabelos e vendo-a sussurrar um “obrigada”. — Sabe quando vai poder voltar? Não sei se vou aguentar esperar tanto.

— O mais breve possível, apressadinha. — Tami sorriu e começou a enchê-la de beijos no rosto, ficando de joelhos.

Ainda nua, a latina levantou da cama e arrastou a parceira consigo. As duas gargalharam.

— O que você tá fazendo?

— Precisamos nos trocar, Cady! Meu pai geralmente é pontual e isso nos dá exatos dezoito minutos para fingir que estamos assistindo algum reality show na TV.

— Ou podemos tomar um banho quente juntas, que tal?

Tami parou, semicerrando os cílios e cruzando os braços. Decerto, analisava as possibilidades.

— Seja rápida! — Ela dobrou os lábios com malícia.

A garota de cabelos cor-de-violeta correu até a parceira de maneira animada e agarrou-a pela cintura, puxando-a para dentro do banheiro.

XXXXX

Horas antes

Tami havia acabado de sair de uma grande fila, e sentada em um assento diante de uma vidraça da sala de embarque, pôde ver Randy ser amparado pelos seus amigos policiais.

O clima no aeroporto ficou mais leve minutos após o ocorrido e a garota pôde respirar aliviada pelo homem ter ficado bem. Até que ouviu a voz feminina suave que ressoava como uma comissária de bordo robótica anunciar que seu voo para aquela noite estava cancelado. A primeiro momento, Tami não entendera muito bem o motivo, mas para se precaver e evitar mais transtornos, conseguiu transferir-se para um voo que partiria para o Brasil logo cedo no início da manhã.

Ela encarou a tela de seu celular e discou o número do pai rapidamente.

— Alô, pai?

— Filha, o que aconteceu? Você desligou na minha cara. — Perguntou ele, num misto de preocupação e desapontamento.

— Tive um problema com o voo e ele vai ter que ser adiado pra amanhã. Será que você pode vir me buscar? Passar a noite em um aeroporto não estava nos meus planos. — A garota explicou e soltou um suspiro pesado.

— É claro, querida, ainda estou perto. Chego aí em poucos minutos.

— Obrigada pai, eu te amo. — Tami não entendeu a necessidade repentina de falar aquilo.

— Também te amo, Sweetheart. — O homem respondeu calmamente, como se aquele “eu te amo” fizesse parte de sua rotina.

XXXXX

Agora

Tami nunca mais ouviria um “eu te amo” tão nítido quanto ouviu naquela noite. Tudo que ela tinha agora, eram os ecos distantes dentro de sua cabeça. Os mesmos ecos que dançavam ao som da melodia melancólica que sua consciência projetava junto com o som do nada batendo nas paredes dos seus ouvidos.

A professora encarava a estante repleta de caixas empoeiradas do galpão no qual fora deixada ao lado de nove pessoas. Todas desconhecidas, e tudo que tinha era o amparo delas.

A imagem do pai aparecia em todos os cantos, mas sabia que seu psicológico ainda estava bastante danificado, lhe pregando peças. Só haviam se passado algumas horas, e de forma entorpecida, tentava se convencer de que ele estava bem, de que nenhum daqueles vidros perfurou seu corpo verdadeiramente. Que seu pai estava do lado de fora, de braços abertos esperando pela sua saída.

— Você não está sozinha, Tami. — Laura apertou sua mão, vendo-a abalada. — E podemos enterrar tudo, menos a verdade.

Afastadas dos outros, a jovem de cabelos loiros estava sentada sobre os joelhos na frente de Tami. Por mais que tivesse acostumada a ter um discurso pronto para ocasiões assim, de desamparo e perdas irreparáveis, Laura entendia que palavras poderiam ser levadas com o vento, enquanto atitudes eram capazes de desencadear vendavais dentro de cada pessoa. E ela pretendia desencadeá-lo em Tami, assim como houve com seu coração durante a terapia em grupo. Não foram apenas conversas que lhe tiraram do chão, foi o poder das atitudes de seus colegas.

E foi como um vendaval, que Laura voou ao lado da lembrança dos pais.

— Estamos contigo, e mesmo no céu agora, seu pai está aliviado pela filha ter ganhado uma segunda chance.

— Duas vezes. — Cisco, o homem de olhar tímido, se escondia atrás dos óculos ao lado delas.

Ele estava sentado de joelhos dobrados, encostado em uma pilastra, também encarando-as. Era um olhar de ternura, mas a professora poderia jurar que havia o sentimento de pena. As coisas estavam muito difíceis para ver tudo ao redor com clareza.

Tami baixou a cabeça por um segundo, sentindo uma sensação estranha tomar conta de seu corpo. Primeiro, foi seu coração acelerado, seus dedos das mãos tremendo. Ela puxou o ar com força e foi difícil ter o controle da respiração em seguida. Laura arregalou os olhos e Cisco ficou preparado, caso algo acontecesse.

— Você está bem? — Perguntou ele, aproximando-se.

— E-eu estou. — Tami passou a mão no peito, massageando-o. — Foi só um mal estar, uma falta de ar repentina.

— O efeito do gás hélio ainda não passou completamente, ele afetou seu organismo ao ponto de te fazer perder todos os sentidos. Já vi isso antes. — Cisco observou, lembrando-se do episódio ocorrido com Tony e sua exposição ao gás durante uma de suas missões.

Cisco estava acompanhando-o para analisar como as reações químicas de um composto a ser estudado pela sua equipe, interferia na queima do combustível do novo modelo de embarcação cedido para a missão marítima de Tony, e consequentemente, como era seu impacto na natureza. Foi desesperador quando o recipiente com gás hélio que estava esquecido entre os equipamentos no alçapão da embarcação foi acidentalmente aberto e resultou em um dano interno, parecido com uma inflamação, no corpo do parceiro. Apesar disso, felizmente Tony estava recuperado quando Cisco se despediu e saiu porta afora.

— Mas vamos ficar de olho em você. — O engenheiro acenou com a cabeça. — Eu prometo.

Tami não disse nada, apenas assentiu, grata por tudo que eles fizeram. Ela acreditava no que ele dizia. Sem esperar, recebeu o aconchego do abraço de Laura. A jovem enterrou seu rosto nas madeixas da latina.

— Não se preocupe, vamos cuidar uns dos outros. — Laura disse convicta.

Ainda destruída, Tami conseguiu dar lugar a um sorriso de canto. Mudou o curso do olhar e viu quando os olhos claros de Cisco a atingiram em cheio. Era mesmo um olhar de ternura, ela concluiu.

Eles são todos desconhecidos, mas sinto como estivéssemos nos reencontrando depois de uma longa viagem.

XXXXX

Os gritos de inúmeras pessoas se sobressaía ao crepitar das chamas que consumiam partes da estrutura do aeroporto Amelia Earhart. Do lado de fora, rajadas de mangueiras de incêndio entravam com força nas ruínas incendiadas. Luzes frenéticas de viaturas da polícia, alarde das sirenas ambulatórias, pessoas sendo amparadas, choro dolorido de parentes de entes queridos que não conseguiram sair a tempo do desastre, repórteres por todos os lados procurando captar a tragédia de diversos ângulos.

Apesar de terem se passado horas desde a explosão do veículo no estacionamento, o caos generalizado ainda era evidente.

Antônio passou por duas pessoas sendo levadas em macas com ferimentos graves. Elas gemiam desamparadas e desorientadas, não lembravam o próprio nome; perdida dos pais, uma garotinha era atendida na traseira de uma viatura policial, chorando copiosamente. Havia sangue respingado em suas roupas rasgada. Talvez não fosse ver seus pais novamente, como esperava.

Aquele breve e mórbido pensamento entristeceu o latino, que se escondia de um repórter insistente, que parecia caçá-lo no meio da aglomeração, disposto a desvendar seu sumiço repentino. Antônio não poderia ter seu rosto nos telejornais, seria como ter um alvo no meio da testa. Mais cedo ou mais tarde ele faria parte daquela história, mas não pretendia que fosse tendo sua identidade exposta. No caminho, quase esbarrou com alguns bombeiros e sentou detrás de um carro afastado da concentração de pessoas, ofegante.

A parte externa do aeroporto fedia a entulho, ferrugem e carne queimada. O rapaz suado colocou o braço na frente do rosto e tossiu. Uma fumaça negra monstruosa se erguia no céu noturno, cobrindo tudo.

Sorte a dele não ter sido interrogado pelo departamento de polícia ou pelas pessoas bem vestidas das agências de investigação que ele identificou entre a multidão. O Chefão já havia falado sobre o serviço de inteligência, de modo que Antônio passou a ficar mais atento. Quase fora pego mais cedo e não poderia dar bobeira, o material teria que chegar até o destinatário ou teria sua cabeça servida em uma bandeja. Camuflado e escondendo-se desde que conseguiu sair do aeroporto, retirou pequenos pacotes da droga que transportaria de dentro das calças e conferiu se estava tudo ali. Respirou fundo e olhou para os lados. Os olhos estavam irritados, decorrentes da espessa fumaça.

Precisava dar o fora. Adiante, conseguiu enxergar um rombo em uma cerca de ferro e estranhou aquilo ter passado despercebido pelas autoridades. Decidiu ir até lá, mas no momento em que iria se erguer, ouviu passos apressados se aproximarem. Rapidamente encolheu-se no canto.

— A última equipe de resgate já voltou? — Perguntou um dos homens. — O que temos?

— A situação é crítica, senhor. Ninguém com sinal de vida nesta última remessa. — O outro respondeu frustrado. — Eles vasculharam todos os perímetros que não estavam bloqueados.

Um rangido estridente interrompeu a conversa e os dois ouviram gritos. Ao saírem dali correndo, Antônio aproveitou o momento para passar pelo buraco da cerca sem ser notado.

XXXXX

— Afastem-se! — Alguém berrou aos tropeços no meio da multidão.

Por trás do muro principal de entrada do aeroporto foi possível ver a enorme estrutura cedendo. Os grande blocos de completo deslizaram metros abaixo e o esqueleto da torre de comunicação despencou logo em seguida, fazendo um barulho de ferro se retorcendo que arranhou os tímpanos das pessoas alojadas na área externa. Uma labareda de fogo envolveu os detritos da torre e a fumaça aumentou em grandes proporções.

Algumas pessoas gritaram assustadas e o chão estremeceu com o impacto. Quando a poeira baixou, foi possível ver que um segurança de meia-idade não conseguiu se afastar a tempo e um dos detritos decolou na sua direção, atingindo seu dorso. O homem de cabelos grisalhos e fardamento do Amelia Earhart, que era notável pelo brasão no peito, tombou no chão já desfalecido.

Um grupo de socorristas correu até as pessoas mais próximas da fumaça, afastando-as e ficaram horrorizados com o corpo do funcionário. Pediram que ninguém se aproximasse da área demarcada pela fita de isolamento que fora colocada. A esperança dos bombeiros diminuiu no instante em as chamas aparentaram dançar mais alto e ameaçadoras, mas eles não desistiriam de extingui-las.

A queda da torre acabou danificando o principal sistema de geração de energia do aeroporto, que até então, oscilava. Parte do sistema de segurança também foi prejudicado.

Inclusive o que ficava na ala subterrânea. Uma faísca saltou no painel superior da porta dupla de aço do galpão abandonado e um sinal verde destrancou a porta, que fez um chiado ao abrir lentamente. Uma pequena fumaça saiu do túnel que dava para a escadaria. Lucky, Astrid, Randy e Louis encararam o corredor. As luzes piscavam e os olhos do grupo brilharam.

A saída estava andares acima.

— Vamos, pessoal! — Louis chamou. — Finalmente estamos livres.

Mas eles não faziam a mínima ideia do que encontrariam posteriormente.

Lucky e Astrid se entreolharam, o jornalista segurava alguns papéis dobrados nas mãos e mesmo sem dizer nada um ao outro, souberam que não deveriam contar nada ainda para o comboio.

XXXXX

Alex foi o último a subir os degraus de ferro. Notou que precisou de mais esforço físico que o necessário para realizar tal tarefa e aquilo lhe incomodou profundamente, deixando-o confuso. Cisco ajudou-o a se posicionar no corredor encharcado pelos sprinklers de incêndio, disparados anteriormente. Deu-lhe a mão e o rapaz de cabelo rosa fez uma careta ao ficar de pé, mas fora do alcance do engenheiro. No momento, ele não soube dizer exatamente o que estava acontecendo. Pelo gesto ter sido discreto, ninguém percebeu e começaram a andar pelo corredor, seguindo um fraco ponto de luz.

Nenhum dos dez lembrava-se onde aquele corredor daria. No instante em que corriam, ninguém contou com a memória fotográfica. Só queriam sair do meio da linha do fogo e dos desmoronamentos, então era difícil recordar a direção, só que o instinto dizia que estavam perto de saírem daquele ambiente claustrofóbico.

O ponto de luz provinha da porta no fim do corredor, a qual Lucky empurrou. O grupo foi recepcionado com uma nuvem de fumaça. Lucky tossiu ao inalá-la e seus olhos arderam. Nate parou abruptamente quando uma brasa voou na frente dos seus olhos e Laura se chocou contra suas costas, recebendo um olhar torto. Recompondo-se, a loira olhou adiante e seu coração quase parou com o que viu. Tapou a boca, e chocada, aninhou-se nos braços de Cisco, como um pássaro acuado. Foi o primeiro refúgio que encontrou.

Nate manteve sua face congelada, mas por dentro, devia estar nervoso. Ao lado do rapaz, Tami coçava os olhos inchados. Nada adiantou o conforto momentâneo dado por aquelas pessoas, o vazio tornou a invadi-la e a garota recuou trêmula. Randy percebeu o quanto abalada ela ficou pela ferida reaberta e passou o braço pelo seu ombro. A morte do pai era recente demais para ela bancar a forte. Vendo o estado do saguão de desembarque era o suficiente para inflamar sua perda.

Tami queria poder dizer que estava firme e bem, queria não ter que preocupar ninguém e resolver seus problemas sozinha, mas era duro não transparecer seu luto. Era duro admitir que estava frágil, prestes a quebrar.

Já Jane era seu completo oposto. A oriental, que gostava de ficar calada e observar na maior parte do tempo como os demais reagiam ao risco, deu alguns passos e pulou o primeiro corpo debruçado. Astrid não conseguiria ser tão fria, até pensou em fazer o mesmo, mas deixou que Lucky desse a volta para prosseguir. Ela sentia que poderia confiar nele e ser guiada pela sua intuição.

A lanterna do celular de Louis se acendeu e foi fatiada pela fumaça, porque a nuvem negra escondia as vidraças e o brilho da lua. Eles estavam mergulhados parcialmente no escuro.

O piloto clareou o local e tudo ficou mais nítido. Inúmeros corpos estirados pelo salão, a maioria de pessoas soterradas ou que não foram levadas pela perícia. Alguns intactos, como anjos solenes e outros destruídos pelo fogo ou pelos escombros. Um mar de sangue permutado à poeira.

De olho no caminho, Jane retirou um de seus trapos e ficou apenas de camiseta, amarrando o tecido maltrapilho ao redor das vias respiratórias. Ela não estava sendo apática, apenas driblava seus próprios sentimentos a fim de não enfraquecer. Aprendera a ser forte de uma maneira difícil, avessa, mas também aprendera a não dar o braço a torcer diante de circunstâncias que, há alguns anos, poderiam levar fácil sua sanidade embora. Passar por coisas ruins, todos passavam. Porém, passar por coisas ruins sozinha, largada à própria sorte e sobrevivendo a cada dia, era considerado uma vitória.

Pelo menos, era o que se esperaria de alguém que passou por maus bocados e teve que enfrentar memórias remotas para lembrar que, de fato, existia. A última coisa que Jane se consideraria na vida, era uma vitoriosa. A palavra que mais a definia era “sobrevivente”, alguém que ressurgia das cinzas do abandono, feito uma fênix. Jane Doe ardia a cada sol.

A andarilha passou a guiar o grupo pelo saguão ao lado de Louis, que era literalmente a luz que eles precisavam acompanhar. Ele também conhecia bastante do aeroporto, de modo que conseguia lidar com as paredes de ruínas que se erguiam feito obstáculos e conseguir atalhos entre os entulhos. Logo atrás deles vinham Lucky, Alex e Astrid. Nate caminhava afastado, com as mãos enfiadas no bolso, encarando a pilha de corpos e concreto. Randy, Tami, Cisco e Laura vinham em seguida e tentavam manter as coisas inteiras por onde iam, se agarrando mentalmente um ao outro, fragilizados pela sensação fúnebre gerada no lugar.

— Temos um problema. — Proferiu Louis, apontando o feixe de luz para parte do desmoronamento. Poderiam enxergar um foco de incêndio ao longe pelo brilho alaranjado.

Lucky aproximou-se com os papéis dobrados nas mãos, os diferentes mapas do aeroporto. Ele encarou os olhos azuis paralisantes do piloto e balbuceou:

— O que houve?

— Vocês não perceberam ainda? — Nate bradou ironicamente, chamando a atenção de todos e abrindo os braços, mostrando ao redor. — Não há saída desse saguão, não há resgate! Estamos cercados de corpos e destruição.

Astrid entreolhou-se com Lucky e o homem não soube o que dizer, principalmente para o restante deles.

— Pare de tentar ferrar com o grupo, porra! — Alex berrou apontando para Nate, irritado. — Você está fazendo isso desde que chegou!

— Ser realista não faz de mim alguém ruim, faz de mim alguém sensato. — Nate riu de forma cínica e guardou as mãos no bolso do casaco, encarando Alex.

Ele sentia os punhos formigarem. A vontade de socar o meio da cara do rapaz de cabelos rosados era irrecusável. Entretanto, não pretendia jogar seus anos de terapia no ralo e apenas assobiou, virando-se de costas. Sabia exatamente como deixar alguém fora da casinha sem precisar mover um músculo.

— Não nego que esse garoto me traz a adrenalina que eu preciso pra continuar bem. — O estudante provocou.

Por um segundo, os olhos raivosos de Alex se encontraram com os de Astrid e foi como se a lutadora abrandasse seus nervos. Ela sinalizou para que ele mantivesse os pés no chão. Um calmante natural para seu temperamento difícil. Enquanto Nate continuava sendo nocivo para seu psicológico, Astrid era o mar de calmaria no qual ele nadava.

— Pessoal, é sério, não temos tempo para brigas infantis. — Louis interveio. — Temos um problema dos grandes e o carinha ali tem razão. Acho que fomos esquecidos. — Concluiu, apontando a lanterna para os companheiros.

— De novo não… — Lucky murmurou, frustrado.

O silêncio posterior esmagou o grupo e foi o pontapé para desestabilizá-lo.

XXXXX

Lucky baixou a cabeça. O jornalista cabisbaixo permanecia sentado em uma fileira de assentos pertencente ao andar de cima do saguão de desembarque. Tiveram acesso por uma das escadas rolantes desativadas, já que a outra estava partida ao meio por uma enorme pilastra. Todas as chances que tinham de saírem daquele pesadelo fora por água abaixo. O resgate não os buscariam e eles foram deixados para trás. A realidade era essa e agora eles precisavam lidar com o que lhes foi dado.

Astrid caminhava de um lado para o outro, as mãos para trás, a ponta do nariz vermelha por conta da poeira e uma feição fechada. Ela não sabia o que dizer ou como reagir. Eles não tinham muitas coisas ao seu favor por enquanto, apenas pessoas mortas espalhadas pelo hall, escombros, escuridão e muita fumaça próximo dali. Mesmo não sabendo de onde vinha, Astrid constatou que os bombeiros não apagaram o incêndio por completo àquela altura do campeonato.

A barriga de Jane roncou alto e por causa disso, fez uma careta. Sentada dois assentos depois, Laura vasculhou a bolsa que carregava e retirou duas barras de chocolate lá de dentro. Olhou para a andarilha e ofereceu-as:

— É tudo que eu tenho. Não é muito, mas vai dar pra enganar o estômago até arrumarmos algo pra comer.

— Não tem problema, bonitinha. — Jane puxou uma das barras e abriu a embalagem com voracidade.

Sua última refeição havia sido o lanche pago por Lucky, então ela estava com muita fome. Levou a barra até a boca e deu uma mordida generosa.

Laura sorriu e mordiscou a sua em um som crocante. Olhou para o lado e viu Louis deitado sobre três assentos e a cabeça enfiada na tela do celular. Ele parecia reclamar de algo, o sinal ruim ou algo do gênero. Laura também viu que Alex se aproximava. Ofereceu um pedaço de sua barrinha para o jovem, que negou com a cabeça. Ele tinha o andado largado, meio apressado demais. Até que um movimento dele chamou sua atenção. Alex coçou as palmas das mãos e seus dedos estalaram num espasmo quase involuntário.

Aquilo definitivamente mexeu com a cabeça da artista plástica, que resolveu chamá-lo.

— Ei, ô do cabelo rosa!

— Por mais que eu ache meu cabelo maneiro, pode me chamar só de Alex. — Respondeu, olhando por cima dos ombros e rindo fracamente.

— Tudo bem, Alex. — Laura assentiu. — Por um acaso você tá passando bem? Pode ser minha impressão, e me desculpa se for, mas você está agindo de maneira estranha já faz um tempo.

Laura não mentiu completamente, mas precisava jogar verde com o tatuador para coletar as informações que queria. A fala da garota fez Alex franzir o cenho confuso. Ele realmente não estava entendendo o que ela queria dizer.

— Não sei dizer exatamente como ou o por quê… — Ela tentou se justificar.

— Estranho? Deve ser sua impressão mesmo. Só estou cansado. — Respondeu ele, sério, coçando a ponta dos cabelos.

Laura torceu os lábios. Afinal, ela teria notado algo diferente, mas não conseguiria confirmar nada sem prestar mais atenção. Refletiu que poderia ajudar se enxergasse de maneira mais transparente o que as pessoas a sua volta sentem, vivem ou querem dizer. Os detalhes escondiam a diferença na vida de todos aqueles rostos desconhecidos, dos indivíduos deprimidos e que buscavam dividir suas bagagens emocionais.

Exatamente com o que Laura queria trabalhar quando saísse dali, quem sabe criar obras inspiradas nos diversos tipos de fé que existem dentro das pessoas. Querendo ou não, o grupo de apoio fazia parte de sua vida. Se sua vida dependesse de entendê-los e ajudá-los a terem seus medos vencidos, superando sua própria zona escura, ela o faria.

Então, deixou passar e Alex se afastou, indo até Lucky.

A essa altura, Jane já havia terminado a barrinha e jogado a embalagem fora. A oriental ficou de pé e começou a caminhar pelo andar, inquieta, à procura de alguma máquina de refrigerante que pudesse ter sido danificada durante a explosão. Seria mais prático e ninguém a veria agindo como uma saqueadora. Não mais que alguns dos sem-tetos que dividiam calçada com a oriental e que ela já presenciou agindo de má-fé.

XXXXX

— Lucky, não é? — Alex perguntou, sentando ao lado de Lucky na fileira de bancos.

O jornalista meneou positivamente com a cabeça e esperou que ele prosseguisse. Não estava muito confortável para conversar, de modo que desejou mentalmente que o rapaz fosse breve. Sua cabeça começava a dar indícios de uma forte enxaqueca.

— É… Eu nem sei por onde começar, sei que deve estar sendo dureza pra você… — Alex arriscou.

— Pra todos nós, na verdade. — Lucky contra argumentou visivelmente cansado.

— Isso. — Alex retrucou desconcertado. — Melhor eu ir direto ao ponto. O que você disse pra todos nós antes do acidente acontecer, que você tinha visto… Você sabia da mochila e da bomba. — Franziu a tez. — Como? Afinal, se não era um terrorista arrependido…

— De uma vez por todas, eu não sou nenhum terrorista, ok? Nem faço parte de nenhuma conspiração. Eu só sabia. — Lucky deu de ombros. — Vi tudo acontecer dentro da minha cabeça, no meu pensamento. — Comprimiu os olhos e nem precisou fazer esforço para ter aqueles momentos de terror saltando da memória. — O carro explodindo, as pessoas morrendo... — O jornalista preferiu omitir sobre Alex ter sido explodido em pedaços pela mochila, seria melhor para ele. Os flashes ainda eram vívidos em sua mente. — Minha consciência pediu pra avisar o maior número de pessoas possível e eu tentei, mas parece que só consegui arrastar essa gente pra outro pesadelo.

A voz de Lucky foi sumindo e ele voltou a baixar a cabeça, seus olhos ficaram marejados e ele limpou uma lágrima com o dedo indicador. Ariel veio entre as imagens como um relâmpago e seu coração de pai doeu por ser incerto vê-lo outra vez. Alex tocou seu ombro comovido e fungou. Poderia não parecer, mas o tatuador acreditava na versão do moreno.

O sobrenatural era um universo fascinante para Alex, de modo que tudo que lhe englobava era de seu total interesse. Alex viu muitas coisas estranhas ao longo da vida, a maioria delas não poderia ser explicada pela física, religião ou ciência. Tudo o que não era tangível e que era morbidamente sombrio lhe trazia para um mundo onde ele ficava confortável. O sobrenatural fazia parte da vida das pessoas, e acima de tudo, sua mecânica não envolvia manipulação, enganação ou interferência humana. O sobrenatural era algo puro e que o tatuador buscava desvendar a todo custo.

— Foi tipo uma presença? — Depois de segundos de silêncio, perguntou à queima-roupa, animado pelo rumo da conversa.

Lucky concordou com um aceno, continuando:

— O mais assustador disso tudo, é que eu ainda sinto, entende? É como uma sombra que me acompanha desde esse pressentimento. Ora são rastros, ora é um peso sobre minhas costas, mas nunca se vai, nem diminui. Pelo contrário, só cresce.

Um vento frio assobiou no ouvido de Alex e o rapaz recuou arrepiado. Ele puxou a saliva entre os dentes e seu braço deu um espasmo. Dentro de seu organismo nada ia bem, o estômago embrulhava e ele sentiu uma forte vontade de vomitar, mas sabia que não tinha comido nada há bastante tempo.

— Está tudo bem, rapaz? — Lucky olhou-o com estranheza.

— Por que tá todo mundo perguntando se tô bem? É claro que tô bem, tô ótimo! — Tropeçou as palavras com a língua, por pouco não a mordeu. E saiu dali às pressas, prestes a regurgitar.

Passou por Nate, que olhava algumas pinturas intactas na parede rachada. O negro disparou:

— Ei, aonde vai, esquentadinho?

— Não é da sua conta! Não enche o saco, mano! — Reclamou e tapou a boca. O vômito conseguiu abrir caminho na garganta.

Mas Nate sentiu-se instigado a segui-lo.

XXXXX

Sentada na escada rolante, Tami apoiava o queixo nos joelhos e observava o estrago causado pelas bombas no andar inferior. A maquiagem borrada destacava as marcas do choro, a fenda crescendo dentro do peito e o chapéu que ela não se importava mais de estar torto sobre a peruca castanha. Havia fuligem em sua roupa e o ar impuro espremia sua respiração.

Ela tossiu e sequer se moveu quando Randy sentou dois degraus acima em silêncio. A garota apenas olhou por cima dos ombros e sentiu a mão do policial tocar-lhe o ombro. Para quebrar o silêncio devastador, ela começou:

— Não tive a chance de agradecer você pelo que fez, por ter salvo minha vida.

O agradecimento pegou Randy de surpresa. Fazia tempo que alguém não demonstrava sincera gratidão perante ele. Tantos anos de trabalho e o que tinha eram alguns emblemas de honra. Nada disso importava, eram apenas símbolos. A partir do momento em que foi ejetado do treinamento de Quantico, anos antes, por terem descoberto sua epilepsia da pior forma (ainda menos constrangedora do que seus colegas de trabalho), sentia que não estava dando tudo de si para provar seu valor.

A frustração foi tamanha ao ponto de ficar trancafiado em casa. Seu sonho de se tornar um agente do FBI foi para os ares e ele tinha medo de ser assim pelo resto da vida. Randy não queria ser um fracasso, não queria perder oportunidades por conta de sua doença.

— Qualquer pessoa no meu lugar faria o mesmo. — Voltando à realidade, tentou dizer qualquer coisa que fizesse sentido. Sua fala saiu arrastada e sonolenta. — Assim como você, eu só estava no lugar certo e na hora certa. Foi a forma que achei de retribuir o que fez por mim mais cedo.

— Anjos? — Tami perguntou, sorrindo de lado.

— Anjos. — Randy concordou, abrindo um sorriso junto. — Eles estão por toda parte.

— Lucky poderia ser um deles? — A latina ergueu a aba do chapéu.

Randy não sabia o que dizer. Era uma pergunta que elevava uma complexidade de fé e envolvia mais coisas místicas do que poderia imaginar. Por ter soado um tanto ingênua, ele resolveu responder a primeira coisa ingênua que lhe veio à cabeça:

— Quem sabe, nós podemos ser um deles.

Convencer-se de que a tarefa era levar segurança às pessoas nutria confiança no policial. Ao conseguir entrar no departamento de polícia de Springfield, acendeu a fagulha necessária e Randy queria queimar. Porém, seus superiores não poderiam saber do problema. Mesmo com sua esposa protestando a decisão de omiti-lo, era tarde demais. Randy tornou-se um dos oficiais mais experientes, respeitados e queridos da corporação. Quanto mais os ataques epiléticos se intensificavam e as idas ao médico traziam fantasmas, mais sua esposa Mary se distanciava e a relação dos dois seguiu um rumo sombrio, por assim dizer.

Será que minhas crianças estão protegidas? Randy só conseguia pensar nos filhos, os pequenos Brian e Andrea, de dez e cinco anos respectivamente. Naquele momento, a risada gostosa de Andrea e a bagunça de Brian era o acalento em que se focava.

De repente, ouviu o som de uma rachadura. Um tremor sacudiu a escada rolante e Tami soltou um grito desesperado.

XXXXX

Rapidamente Randy saiu dos pensamentos, a garota puxava seu braço. Ele olhou para cima e uma parte do teto apresentava rachaduras imensas, que até então eles não notaram. Um pedaço se rompeu e desabou contra os degraus, puxando a estrutura para baixo com força. No último segundo, com a ajuda da professora, Randy saltou para o piso e olhou para trás, a tempo de ver toda a estrutura metálica da escada rolante tombar de lado lá embaixo. A nuvem de poeira subiu e um vento frio bateu contra seu rosto ferozmente.

Tami afastou-o para perto dos assentos e Lucky já corria até eles.

— O que faremos agora? Não dá pra descer por aqui. — O jornalista comentou, visualizando o grande buraco que se formou.

— Черт! — Astrid xingou em russo. — Deve ter alguma escadaria de incêndio lá atrás, saídas de emergência, não vasculhamos o andar ainda.

— É uma boa ideia, vamos por aqui! — Louis berrou, dando meia volta e seguindo para os fundos do andar.

— Espera, não estamos todos aqui! — Laura olhou para os lados. — Aquela oriental e os dois garotos que brigam desapareceram. — Observou.

O desmoronamento do teto da escada rolante causou uma rachadura em uma das pilastras, que cedeu bem ao lado de Louis e o barulho assustou o piloto, que se jogou no chão. A coluna branca cedeu segundos depois e caiu, por pouco não atingindo o jovem de olhos claros. Ele levantou no ápice da adrenalina, suando frio e viu seu celular espatifado embaixo do concreto.

Cisco correu para ajudá-lo.

Em seu canto, Lucky lembrou-se de como o piloto havia morrido em sua visão e sentiu mal-estar pela ironia.

— A pilastra bloqueou a passagem, mas acho que dá pra gente pular numa boa. — Cisco arrumou a armação do óculos sobre o nariz.

Lucky deu alguns passos, na intenção de verificar se era mesmo seguro seguir por onde Cisco dissera, mas foi surpreendido por um cabo de aço ricocheteando frenético pelo chão. A faísca vermelha iluminou seu rosto e o jornalista caiu sentado. Lucky piscou algumas vezes, tomado pelo susto e a cor da faísca mudou.

Não era mais vermelha. Lucky estava delirando?

XXXXX

Jane ouviu um estrondo ao longe, mas não ligou.

Encarou a máquina de refrigerante, sentindo-se desafiada. A máquina estava torta e tinha um amassado gigante na lateral, mas a oriental acreditava que poderia se dar bem. Aproximou-se e a máquina pareceu lhe encarar de volta, a luz acesa em seu interior piscou algumas vezes e apagou em seguida. Ela chutou a caixa de ferro duas vezes e um barulho de gelo sendo pulverizado foi ouvido. Em seguida, um ruído mecânico e uma latinha de refrigerante caiu da cabine.

Jane sorriu com os olhos, satisfeita.

A andarilha tomou a latinha em mãos e abriu apressada, tomando goles generosos da bebida. Estava um pouco quente. Arrotou e ouviu um barulho vindo de uma porta que ficava no corredor adjacente. Intrigada, ela caminhou até lá com cautela. Olhou para cima e identificou a plaquinha como sendo de um banheiro masculino para funcionários. Coçou o queixo e empurrou a porta, dando de ombros. Embora estivesse parcamente escuro, era fácil identificar tudo dentro do cômodo.

Ao ver a cena, a mulher recostou-se na porta e fitou o indivíduo de cabelo rosado ajoelhado no chão, despejar toda e qualquer coisa que tinha sobrado no estômago. Os vestígios da baba estavam grudados na parte de fora do sanitário. Jane não se sentia enojada, mas fez uma careta e pigarreou, chamando sua atenção.

Alex olhou por cima do ombro, derrotado e abatido. Seu rosto não mentia. Pálido, o rapaz tentou se erguer, mas suas pernas fracas o levaram ao chão de novo. Jane deu alguns passos dentro do banheiro para auxiliá-lo e deu de cara com o rapaz implicante, espantada por não tê-lo visto antes. Nate permanecia encostado no canto da pia, de braços cruzados e com uma face indiferente.

— Ele está péssimo, hein.

— Dá pra ver. — Jane respondeu crua. Reparando bem o rosto de Nate lhe era familiar. Ela esbarrou com ele uma vez na lanchonete. — E você, o que tá fazendo? Por que não arranca essa cara e bunda e me ajuda a levantar ele, huh?

Nate até tentou resistir, mas então suspirou e retirou seu casaco, a fim de não sujá-lo. Jane pediu que ele segurasse em um dos braços do tatuador, enquanto ela seguraria do outro. Alex foi erguido sem dificuldade e apoiado na pia. Jane ligou a torneira e jogou água no rosto do rapaz.

O movimento lhe trouxe algumas recordações. Porém, não muito boas. Havia uma banheira e uma mão grande empurrando o pescoço de uma criança, que debatia os braços franzinos na água. Gritinhos abafados por bolhas, uma voz dura, vez ou outra cortada por uma melódica canção que vinha da tal voz.

Eeny, meeny, miny, moe

Catch the Lil’ Doe by the toe

A garotinha tinha um pingente com uma pequena e delicada letra “J”.

XXXXX

— Que cheiro estranho. — Nate comentou, tapando o nariz. Jane despertou dos pensamentos logo depois.

O estudante de espanhol encarou um Alex baqueado, de rosto pálido e ombros arqueados, olhando o reflexo no espelho. Abaixo de uma rachadura, uma frase rabiscada de canetinha vermelha no vidro que dizia:

“A vida é uma droga! Você nasce, sofre e morre.”

Alex leu a frase e apagou a palavra morte. Após isso, sua visão ficou turva. Ignorando a andarilha e o estudante, cambaleou para o lado de fora do banheiro.

— Cara, aonde você vai? É perigoso peregrinar por esses corredores. — Jane advertiu, caminhando atrás de Alex.

O jovem se arrastava pelo extenso corredor, completamente perdido e sem rumo. Não sabia que caminho seguir, apenas andar para frente. Seu sangue estava a ponto de explodir e suas veias saltavam dos pulsos. Ele poderia sentir seu corpo inteiro formigar. E entendia que aquilo era causado pela abstinência à Ritalina, mas não tinha forças para reagir. Por mais que sua médica o advertisse, ele nunca lhe deu ouvidos. Nunca aconteceria com ele, os efeitos colaterais não o atingiriam. Alex era inalcançável.

Infelizmente, contrariando as receitas, Alex começou a exagerar nas doses. Meses depois, já não via mais diferença do medicamento em seu organismo. Absolutamente nada. Então, largou as prescrições de vez e passou a ser seu próprio médico, aplicando doses quando lhe convinha. Seu pai viu as primeiras reações, que começaram isoladas, mas que trouxeram problemas familiares e agravou um relacionamento que eles já não conseguiam lidar mais.

A última briga feia que tiveram só serviu para mostrar que Alexander estivera sozinha esse tempo todo e, desde a separação dos pais, aquele sentimento de solidão persistiria. Alex não tinha mais ninguém, se não, a Ritalina. E agora, nem o medicamento ele tinha mais.

Porém, precisava de mais.

— Você tá surdo, cabelinho? Vem, vamos voltar! — Nate puxou sua camiseta.

Alex virou o rosto, o olhar vermelho como brasa, olheiras pesadas e o rosto extremamente pálido.

— Que porra é essa? — Nate indagou, franzindo a testa.

Jane viu quando Alex puxou o colarinho da camisa de botões e tentou erguer o negro no ar, mas seus braços trêmulos impediram.

— Eu preciso de Ritalina! Me dá a Ritalina! — Ele berrou contra o rosto de Nate, que engoliu em seco.

XXXXX

O garoto lançou um olhar subentendido para Jane, que correu até ambos, mas não deu tempo de chegar até Alex, que socou o meio da face de Nate. O rapaz caiu de joelhos, de modo desajeitado e segurou o nariz. Um filete de sangue desceu.

— O QUE HÁ CONTIGO, SEU FILHO DA PUTA?! Você quebrou meu nariz! — O estudante berrou de maneira abafada.

Jane rangeu os dentes e empurrou o peito de Alex com as duas mãos. Ao contrário do que pensou a oriental, ele não revidou. Alex desatou um choro engasgado. Ele não sabia o que fazer, estava desesperado. Fez menção de abraçá-la, mas um vulto o empurrou e o tirou de perto da maltrapilha, que deu um gritinho.

Tropeçando em duas bagagens jogadas no meio do corredor, Nate montou sobre o corpo de Alex e deferiu diversos socos de maneira cega. Não tinha certeza se estava acertando o nariz, os dentes ou os olhos. Alex grunhiu e rangeu os dentes, desnorteado.

Jane não sabia o que fazer ao vê-los rolando pelo chão aos arranques, então começou a caçar algo que pudesse lhe ajudar. Enxergou as bagagens jogadas e começou a vasculhá-las, aflita. Encontrou uma caixa repleta de sinalizadores vermelhos e alternou o olhar para a briga que se desenrolava no chão. Alex agarrou os braços de Nate para tentar tirá-lo de cima de si, mas o garoto enfiou o polegar com gosto olho adentro e o tatuador gritou o mais alto que pôde com a dor.

Jane arregalou os olhos e puxou um dos sinalizadores contra o peito ligeiramente. A caixa virou e os sinalizadores rolaram pelo piso, um atrás do outro. Nate aproveitou que Alex se contorcia e agarrou um dos sinalizadores, apontando-o para frente e procurando ser rápido em acendê-lo. Jane ficou embaraçada inicialmente por não saber como acender o seu, e tomou um susto quando o sinalizador do negro foi disparado e o rojão vermelho decolou pela sala, criando um clarão que quase a cegou.

A oriental se abaixou no último instante e o feixe veloz passou chiando rente às suas costas. O ar quente esquentou seu pescoço e ela berrou, olhando para trás.

Alex estava se levantando, cobrindo o olho com a palma da mão por conta da lesão, no exato segundo em que o rojão atingiu seu braço. O rapaz cambaleou, apavorado, escorregando nos demais cilindros e batendo a cabeça fortemente ao cair de volta no piso. Os sinalizadores continuaram rolando, até serem parados por um suporte, que caiu da parede e os encaixou simultaneamente levemente para cima, virados para o trio.

Slowly fading away

You're lost and so afraid

Where is the hope in a world so cold?

Looking for a distant light

Someone who can save a life

You're living in fear that no one will hear your cries

Jane não percebeu e foi até Nate, tentando pará-lo. Ele tentava acender outro sinalizador.

— O que você tá tentando fazer? Você vai nos matar! — Ela berrou, mas ele parecia não dar ouvidos, ocupado demais com o próprio cilindro vermelho. — Larga isso!

(Can you save me now?)

Enquanto Alex sentia o braço queimar, não conseguiu visualizar o estado do membro, mas sabia que sua carne estava exposta. Era como se milhões de balas perfurassem seus músculos, rasgando-os em pedaços. O membro tostado passou a ser iluminado pela luz do sinalizador atirado, que agora consumia papéis em um canto da parede. As chamas tinham um vermelho intenso.

Jane puxou o sinalizador que Nate segurava e o jovem chutou suas costelas. A oriental caiu, se retorcendo de dor, nenhuma palavra saiu. O desmaio veio como consequência.

I am with you

I will carry through it all

I won't leave you I will catch you

When you feel like letting go

Cause you're not, you're not alone

XXXXX

Lucky deu um grito alto com a dor no interior da sua cabeça e, de olhos fechados, via um imenso borrão vermelho pronto para engoli-lo. Ele caiu de joelhos e Cisco parou para ajudá-lo. Enquanto isso, Laura recebia a ajuda de Louis e Randy para pular a pilastra desabada. Tami e Astrid já esperavam do outro lado e ficaram confusas quanto aos gritos de Lucky.

— Achem eles rápido! — Lucky pediu. — Sinto que alguma coisa ruim está prestes a acontecer!

Cisco encarou sua feição preocupada. Lançou um olhar de medo para o grupo.

XXXXX

Your heart is full of broken dreams

Just a fading memory

And everything's gone but the pain carries on

Lost in the rain again

When will it ever end

The arms of relief seem so out of reach

But I, I am here

Iluminado pelo vermelho-escarlate, o rosto cínico de Nate aproximou-se de Alex e o tatuador estendeu os braços, dando socos no ar, mas nenhum deles alcançaria Nate. Então, o rapaz de cabelos cor-de-rosa começou a ver a figura do pai, de pé, logo atrás de Nate. Seus maiores medos agora se uniram para trazer todos os monstros para fora do armário.

I am with you

I will carry through it all

I won't leave you I will catch you

When you feel like letting go

Cause you're not, you're not alone

Alex estava perdido e temendo o pior, sentiu que estava desaparecendo lentamente. No fim, ele seria julgado por não ter vivido o suficiente. E todo esse tempo, usando as pessoas como telas para espalhar sua arte lhe dava o oxigênio que precisava para seguir, mas daquela vez, ele não tinha nada ao que agarrar. Ele seria a própria tela, teria a arte borrada pela presença mencionada pelo jornalista.

Ter pisado os pés naquele aeroporto fora um erro que ele não tinha como reparar.

And I'll be your hope when feel like it's over

And I will pick you up when your whole world shatters

And when you're finally in my arms

Look up and see love has a face

Nem tinha como prever o que viria a seguir. Nem mesmo Lucky ou Astrid, a quem o acolheu, nem Tami que passara por uma experiência de quase morte. Muito menos seu pai, que lhe encarava com sua face resiliente e militar na ponta do corredor.

— Pai, não me deixa… Me ajuda. — Alex murmurou em meio à dor que o consumia.

Nate apontou o sinalizador na cara de Alex. Mas o rapaz ainda tinha uma chance, ele precisava acreditar que alguém poderia ouvir seu choro, que viria ao seu encontro, que o atravessaria para a luz. Ele nunca esteve sozinho, Alex era alguém que costumava vagar pelos próprios instintos e daquela vez, encontrara pessoas boas. Pessoas que eram capazes de ir além para ajudar quem precisa.

Pessoas como sua mãe.

I am with you

I will carry through it all

I won't leave you I will catch you

When you feel like letting go

Cause you're not, you're not alone

— Alguém, por favor! — Ele clamou e segurou o cilindro das mãos de Nate, mas o negro não queria deixar barato.

Durante a troca de forças, o sinalizador caiu no chão, aceso. O cilindro disparou na direção do fim do corredor, com Alex e Nate acompanhando o feixe brilhante com o olhar.

O estudante de espanhol arregalou os olhos e abriu a boca. Infelizmente o feixe foi direto para os demais cilindros e com o impacto, os de cima estouraram, acendendo todos os outros em sequência.

Jane abriu os olhos a tempo de ver cerca de seis sinalizadores explodirem e lançarem seus rojões contra os rapazes de pé. Nate conseguiu girar nos calcanhares e correr, mas Alex estava fraco e debilitado. Ele não tinha mais forças para lutar ou sequer se mexer. Olhou por cima dos ombros para Jane e a oriental engoliu em seco, os olhos marejaram.

Nate jogou-se no chão e os rojões atingiram o corpo de Alex, que estava de braços abertos.

And I will be your hope (not alone)

And I will pick you up

And I will be your hope

And I will be your hope

O primeiro rojão estourou suas coxas, queimando-as rapidamente. O rapaz berrou e mais dois rojões se chocaram contra seu peito, inflamando-o. O rosto foi consumido pelo terceiro rojão, engolindo a cabeça com um brilho capaz de cegar qualquer um. O barulho de uma bexiga de água estourando foi audível e cada centímetro dos outros membros do tatuador serviram como tela para os rojões, que tatuaram pequenas explosões por onde encontravam pele.

Sonhos quebrados, um mundo despedaçado e uma juventude corrompida. O corpo de Alex tombou incendiado. As chamas coloridas entre tons vermelhos e rosados cobriam o que restara do rapaz exótico. A morte fez de sua vida uma droga.

E essa droga foi viciante até se tornar letal.

Jane e Nate encararam à cena, chocados e inertes.

Slowly fading away

You're lost and so afraid

Where is the hope in a world so cold?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, não esqueçam de comentar! As reviews são importantes para a continuidade do projeto.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Superstition" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.