Superstition escrita por PW, VinnieCamargo, Jamie PineTree


Capítulo 13
Capítulo 11: Freedom


Notas iniciais do capítulo

Season finale (último capítulo).

Escrito por todos



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/733050/chapter/13

2011

Um pouco de fumaça negra ainda emergia do hotel, em direção ao céu claro que se abria naquela manhã, onde momentos antes, Lucky estivera hospedado. Ainda trêmulo e confuso com a situação, o jornalista só conseguia pensar em Abraham, em como aquela ligação inesperada de seu mentor o salvara da morte.

Sentado na calçada em frente ao hotel parcialmente destruído, com nada além da roupa do corpo e o celular, Lucky assistia a cena num silêncio desolador tentando recolher o máximo de informações possíveis em sua memória. Tirando-o de seu momento de reflexão, o vibrar intenso de seu celular o despertou. Lucky atendeu a chamada ainda anestesiado, recebendo os gritos e a voz irritada da mãe de seu filho, Sathana.

— Onde você está agora? - O tom exaltado da ruiva o surpreendeu.

— Também é muito bom falar com você, Sathana. Tudo bom? - Respondeu. Escutar aquela voz familiar, mesmo que sendo aos berros, trouxe um pouco de bem estar para o jornalista.

— Tudo bem uma ova!

Longe dali em Springfield, a mulher branca e com cabelo cor de fogo, dirigia furiosamente pela solitária e chuvosa rota 23. Sathana nunca tinha sido a garota mais bonita ou a mais inteligente da faculdade, mas ela era a mais persistente quando queria alguma coisa.

Ou alguém.

Mesmo sabendo da orientação sexual do estudante de jornalismo, a garota não desistiu de ter o aluno mais desejável em seus braços e através de substâncias ilícitas, Sathana conseguiu o seu objetivo e nove meses depois, um vínculo entre ele foi criado para a vida toda.

No banco ao lado e olhando distraído para a paisagem disforme, o pequeno Ariel batia os pés do porta-luvas do carro, sem prestar atenção no que acontecia ao redor.

— Você já tinha de ter chegado aqui, Lucky! - A pesada voz da fumante era bastante irritante. - Você esqueceu que é a sua vez de ficar com o Ariel, não foi? Aposto que sim!

— Claro que não! - Agora Lucky era quem estava exaltado. É que aconteceu muita coisa por aqui e é um pouco difícil de explicar.

Deixando de lado o cenário caótico do hotel, Lucky pode perceber a razão da irritação da mulher. Aquela era a sua semana de ficar com o Ariel e com todo o tempo que passara com Abraham para aprender mais sobre a profissão, pouco sobrava para ele dedicar à família.

Antes de Sathana e Ariel, o espírito aventureiro de Lucky já o chamava para o mundo, para uma vida sem raízes definidas. Ainda sim, ela sempre se esforçara para conciliar a paixão de viajar com o crescimento de seu filho, mas Sathana sempre deixava claro que o esforço dele não conseguia ser o suficiente.

— Me desculpe. - Ele disse sentindo o peso da culpa. - Eu devia ter avisado que não ia chegar a tempo, mas eu prometo que vou compensar quando puder.

— Compensar? O Ariel não precisa daqueles brinquedos esquisitos da Indonésia não, Lucky. Ou daqueles cartões-postais que você manda quando lembra que ele existe. - A voz dela passara a ser suave, mas espremia a dor da família ser colocada em segundo lugar. - O Ariel precisa de você.

— Eu sei… - Lucky abaixou o olhar, imaginando como Ariel deveria estar se sentindo. Depois pensou novamente em Abraham e em como tinha uma nova vida graças à ele. E após ver a morte de perto, ele percebeu a oportunidade de reforçar os laços com o filho, antes de ser tarde demais.

— Lucky? Ainda está aí? Eu preciso desligar, tem um idiota tentando me ultrapassar e com essa chuva é meio difícil dirigir.

— Tudo bem, me deixa falar com o Ariel. Quero pedir desculpas.

— Ele não quer falar com você. - Disse fria e grossa. - Ele está aqui do meu lado agora, brincando com uns bonequinhos.

— Não são bonequinhos! - Ariel rebateu ao fundo. - São figuras de ação.

— Seja o que for, senta direito e coloca o cinto de segurança, mocinho.

Ao escutar a voz do filho, Lucky não conteve o sorriso, Ariel tinha puxado o gênio forte da mãe.

— Então fala para ele que  quando eu voltar, eu prometo que as coisas entre nós três vão ser diferente e…

Lucky não conseguiu terminar a frase. Um barulho alto de frenagem e metal sendo retorcido violentamente o calou. E seu sorriso de antes morreu.

XXXXX

Meses atrás

Às margens do lago Springfield, Ariel Ray olhava o balançar da água não muito cristalina. O cabelo ruivo era agraciado pelo vento gélido e o sol fraco acentuava o brilho de sua pele morena.

Um pouco mais longe, seus avós paternos o observavam de melancolicamente, por finalmente o neto ter saído de casa, após anos de exclusão depois do acidente que levara Sathana e o movimento de suas pernas.

Em suas mãos, o adolescente dedilhava a folha de papel com cuidado, tentando segurar as lágrimas que queriam vir à tona. A falta de informações sobre Lucky, deixaram Ariel num estado cada vez mais próximo da depressão e mesmo com o suporte de seus avós, parecia insuportável continuar vivendo.

Notícias sobre o Amelia Earhart e a participação de Lucky pipocaram na mídia, levando a imagem do jornalista respeitado do Hidden Oracle, como um louco numa conspiração militar de décadas atrás. Semanas depois da última conversa que tivera com o pai, Ariel o viu pela televisão como um corpo estirado na estrada que levava ao aeroporto, abrindo novamente uma cicatriz que ele achara ter fechado após a morte da mãe.

O corpo de Lucky fora enterrado após muita burocracia e entre seus pertences, uma folha de suja e amassada de papel fora encontrada, a mesma folha quase rasgada que Ariel esperava ter coragem para ler. Com cuidado, o garoto desdobrou o papel manchado com sangue seco e marcas de lágrimas e pôs se a ler.

“Andei pensando muito antes de escrever isto, maioria das vezes as palavras fluem de mil com facilidade, mas só de pensar que você está lendo isso, é porque eu quebrei minha promessa de levá-lo para pescar.

Aqui nesse maldito aeroporto, fico imaginando se você está bem, se já alimentou o cachorro e outras coisas. Sei que não fui o pai que sua mãe gostaria que eu fosse, sei também que perdi muito por não estar cada minuto ao seu lado e todas as vezes que você chorou por isso.

Mas todo esse tempo, você esteve comigo em meus pensamentos, todas as vezes que eu deitava sob um teto diferente ou sob as estrelas. O que eu quero dizer, é que não importa onde eu esteja, não importa a distância entre nós, saiba que vou sempre estar com você.”

Uma lágrima despontou do olhar triste do garoto e caiu no papel, Ariel dobrou o papel de volta e olhou ao redor, entendendo por que o Lucky gostava tanto de estar ao ar livre e no quanto perdeu por não parar para aproveitar isso.

Olhando para o pôr do sol, Ariel sentiu uma corrente de ar quente atravessar seu corpo, diferente daquele vento gelado de antes, o abraçando de forma singela, da mesma forma que Lucky o abraçava quando voltava de uma jornada.

XXXXX

O corpo suado de Elena brilhava sob as luzes do octógono. A americana escutava as centenas de vozes que gritavam, incentivando ou torcendo contra, mas para a morena, o resultado daquela noite já estava definido.

Após a confirmação da morte de Astrid após seu desaparecimento meses atrás, Elena fora chamada para substituí-la na disputa decisiva para o prêmio que todos do circuito de luta queriam, o cinturão do MMA. Com todos os olhares e câmeras voltados para si, Elena saiu do corner e encarou sua adversária.

— E vai começar o último e decisivo round, aqui no Ginásio de Springfield! - O narrador gritou a plenos pulmões, elevando a emoção do público. - A disputa segue empatada entre a demônia americana, Elena Nyssa e a leoa brasileira, Amanda Nunes!

Do outro lado do octógono, o rosto levemente de inchado de Amanda preencheu os telões do ginásio. A brasileira era a atual campeã e dona do cinturão dourado, após tirá-lo de Ronda Rousey um ano antes. Já tinha sido difícil conquistá-lo e desbancar a preferida dos rounds e com todas as adversidades e as dores profundas que sentia, ela persistia.

As duas primeiras lutas deixaram o resultado parcialmente equilibrado e as duas lutadoras exibiam marcas de cansaço, mas após o intervalo, havia uma determinação maior em acabar logo com aquilo. Elena e Amanda se colocaram no centro, brincando com seu jogo de pernas e encarando uma a outra, com olhares ameaçadores e provocativos.

Amanda foi a primeira, investindo em movimento fortes contra o rosto de Elena. A americana desviava com rapidez e agilidade, atingindo Amanda com golpes frontais.

Um golpe certeiro no queixo de Amanda, a brasileira perdeu a guarda com uma direita espetacular de Elena.

Ao fundo, o treinador de Amanda gritava, lhe mandando instruções e incentivos.

Elena mantinha a defensiva, seu corpo doía e suas pernas tremiam, mas ela não tinha tempo para pensar na dor que sentia. Amanda já estava atacando novamente e tentando recuperar o equilíbrio, Elena chutava a opressora.

A brasileira pressionou Elena contra o alambrado, socando suas costelas em movimentos rápidos e pesados, arrancando gritos e vaias dos espectadores. Elena se recuperou com um gancho de direita no olho já inchado de Amanda, um pouco de sangue escorreu, mas a brasileira não parecia sentir isso.

— Menos de dois minutos! - O segundo narrador anunciou, um pouco mais energético que o colega de bancada. - A situação está mal para Amanda, ela mal consegue enxergar. Que luta, senhoras e senhores, que luta! Acho que o resultado ficará para juízes, nenhuma das duas parece ceder.

Amanda avançou de novo com ainda mais força, fazendo jus ao apelido de “Leoa” que lhe fora dado, porém Elena lhe concedia socos dispersos na altura dos seios. A respiração pesada de ambas aumentava conforme os minutos passavam e o público pulava de seus assentos, Elena estava destruída fisicamente e seu corpo fervia a cada golpe de Amanda, mas ela não era conhecida como demônia à toa.

Com a guarda levantada, Elena investia em golpes rápido e em lugares aleatória, deixando Amanda confusa entre se defender onde podia e atacar como podia. Menos de um minuto restante, Amanda caiu com um chute em sua coxa esquerda, Elena não demorou a imobilizar suas oponente com suas pernas e contra atacar com um soco por segundo.

— INACREDITÁVEL! - Gritou o narrador. - Elena está fazendo o mesmo que Amanda fez quando tirou o título de Ronda.

Tirando força de suas reservas quase extintas, Elena sentia que estava batendo em um colchão de água e só parou de golpear o rosto inchado da brasileira, quando o timer chegou ao zero e o juiz a puxou para fora. Com a mente em outro mundo, o braço de Elena foi erguido no ar e seu nome foi dito com glória. Ela mal conseguia ficar de pé, somente apenas quando o cinturão foi colocado em seu corpo e uma chuva de papel caía, que ela se tocou do que tinha acontecido.

Que agora, Elena Nyssa era a campeã mundial do UFC feminino.

— Elena, você quer dizer alguma coisa? - Um microfone se materializou na sua frente, erguido por um repórter.

— Eu… Eu… Não mereço isso... - Respondeu tonta e com um fio de sangue escorrendo pela boca.

A multidão e os repórteres encaram como modéstia e a bombardearam com mais congratulações, mas Elena se recusou. Tirou o microfone das mãos do repórter e causando um espanto mundial, gritou novamente:

— Eu não mereço isso!

Dessa vez, as palmas pararam, a multidão se calou e até o papel picado parou de cair.

— Meses atrás, eu fui derrotada por uma pessoa, que todos pensavam que eu odiava. - As palavras saíram com mais clareza. - E isso era verdade, eu a odiava por que não a conhecia, até que percebi a pessoa incrível que ela era, Astrid, a loira que eu quebrei o nariz lá na Rússia. Eu conheci sua história e todos já devem saber também o que ela passou dentro de casa. Era por causa dessa violência domiciliar, que Astrid lutava todos os dias.

Do outro lado do planeta, em um apartamento frio e com cheiro de pizza estragada em São Petersburgo, Yuri deixou a garrafa de lado e aumentou a volume da televisão, vendo que estavam falando da garota que ele treinou como uma filha.

— Ela me derrotou e por um capricho do destino, ela não pode estar aqui hoje. Ela pode ter morrido, mas lendas nunca morrem, não é verdade? - Continuou Elena. - É por isso, que esse cinturão vai para todas aquelas que como Astrid lutaram por sua liberdade... Você conseguiu, Astrid Ivankowitch. Esse cinturão é seu.

XXXXX

Através do espelho sujo do quarto, Randy percebeu que seu cabelo assumia o tamanho de antes. Seus cachos tinham um pouco de volume e escondiam a careca forçada que os militares lhe puseram. O tempo parecia passar mais devagar dentro daquelas paredes. Ele mal conseguia se lembrar da voz de sua esposa, desde a última ligação logo que fora preso pelo quartel e aquilo doía ainda mais, do que os vários exames que era submetido sem saber o motivo.

O que o mantinha são, era a esperança de encontrar sua família novamente e a felicidade deles saberem que o policial estava vivo. Mesmo sem saber como Bryan e Andrea estavam, Randy conseguia imaginar como eles estariam depois do que Mary falara seis meses atrás. Andrea estava feliz por ter perdido os dentes de leite e Bryan tinha entrado para o grupo de monitores da escola, como Randy também fizera quando era jovem, quando ainda sonhava em ser um policial.

Seu coração preocupado pulsava apertado só de pensar.

Sua epilepsia não dera mais sinais de vida e aquilo parecia ser a única coisa boa daquele infortúnio. Randy tinha uma breve noção do quanto o protocolo Argo funcionara e repercutia mundo afora, mas que a situação dele e de seus amigos no Amelia Earhart fora desacreditada. Suas palavras foram oprimidas pelo governo, que conseguiu fazer o mesmo com a impressa e também a reverter a situação contra os sobreviventes.

Deitado na cama fina e fria daquele quarto-cela, Randy lembrou do quanto Astrid e Lucky lutaram até o fim para conseguir a liberdade e só conseguiram isso, após morrerem na sua frente. A porta do quarto se abriu e Randy pulou da cama com o susto. Uma das militares que apareciam frequentemente para os exames entrara sem fazer cerimônia e Randy a reconheceu de imediato, como uma daquelas que não demonstrava o mesmo comportamento dos outros que obedeciam Hilligan.

— Vista-se. - Ela lhe atirou uma muda de roupa limpa. - Você será escoltado.

Randy quis perguntar para onde iria, mas para cada pergunta que fazia, recebia um silêncio mal educado como resposta. Trocou-se sem pudor na frente da militar e junto com ela, foi algemado e escoltado por outros dois guardas que o levaram para fora.

Depois de tanto tempo sendo usado como um rato de laboratório e tratado como um criminoso, o policial não sabia mais o que esperar daqueles militares. Só podia apenas torcer para que acabasse logo.

O caminho foi feito em silêncio. Enquanto caminhava para um destino ainda incerto. Randy se sentia cada vez mais diferente do que era antes, suava frio e o coração tremia de medo, como se fosse um prisioneiro indo para sua condenação à morte.

Um cubículo cinza se abriu para ele, um ambiente não muito diferente dos outros onde ele estivera. Havia apenas uma mesa de ferro polido e duas cadeiras do mesmo material, uma lâmpada iluminava de forma precária e piscava continuamente. Era uma sala de interrogatório, percebeu de imediato.

A militar fez Randy sentar em um das cadeiras e tirou as algemas. O policial friccionou os pulsos, vendo que eles estavam vermelhos.

— Por que me trouxeram aqui? Só me respondam isso, por favor. - Sua voz quebrada não imprimia mais a confiança de antigamente.

— Há um motivo para tudo isso. - A militar respondeu sem olhá-lo nos olhos. - E quando tudo acabar, descobrirá que esse motivo é maior do que tudo o que acredita, não é fácil, mas é necessário.

— O que quer dizer com isso?

— Por enquanto, aproveite o momento, Sr. Calipari.

Sem dizer mais nada, a militar saiu sem esboçar qualquer reação, deixando os dois guardas observando Randy como urubus mal humorados. Mesmo aquela sala estando gelada, gotas de suor escorriam da testa de Randy e caiam sobre seus olhos nervosos. Randy se lembrou das diversas vezes que interrogaram suspeitos em salas claustrofóbicas como aquela e naqueles minutos que se passavam com lentidão, Randy sentia-se cada vez mais como um criminoso que o governo fez com que parecesse, mesmo que seu único crime, tenha sido querer sua liberdade de volta.

Cabisbaixo, Randy escutou a porta ser aberta novamente e duas pessoas entrarem, a voz da militar de antes pediu para que a outra pessoa sentasse na cadeira de frente para Randy e ali permanecesse. O policial viu os saltos altos por debaixo da mesa e por um momento, achou que estivesse sonhando, pois aqueles sapatos eram os mesmos que dera para sua esposa Mary de aniversário.

Ao levantar a cabeça, Randy viu o brilho emocionado no olhar da esposa, como no mesmo dia em que se casaram. Levantou com um salto e a abraçou, sentindo o calor e o afeto que Mary deixara de lhe dar, depois de anos tratando-o com frieza e desânimo na maior parte do tempo.

Seus dedos se entrelaçaram e todas as mágoa pareciam ter ficado para trás, olhar feliz e apaixonado de sua esposa confirmava que ainda existia amor.

Fora de foco, a militar sorria de uma forma que Randy jamais vira antes e com o olhar, ele agradeceu.

 

Felt like the weight of the world was on my shoulders

Pressure to break or retreat at every turn

Facing the fear that the truth, I discovered

No telling how, all these will work out

But I’ve come to far to go back now

XXXXX

O sol brilhava intensamente, e ao refletir por instinto sobre o visível aumento dos efeitos do aquecimento global, Cisco notou que estava finalmente voltando ao seu próprio persona. Num café barato nos arredores de Los Angeles, encarava a tela de seu Macbook, porém não estava realmente ali. O pensamento sobre voltar a sua própria identidade bateu fundo e o engenheiro se viu forçado a repensar nos últimos meses de sua vida.

O atentado no aeroporto não tinha sido causado por terroristas. E sim, membros de um grupo secreto do próprio governo. Tudo tinha dado errado, e embora Cisco tivesse que conviver em silêncio com parte daquele sentimento para sempre, tinha que engolir e aceitar.

Uma força tarefa especial foi criada, um grupo pequeno de especialistas do governo precisava que aquela informação sobre os experimentos vazasse – o que se acontecesse iria aumentar os holofotes e o foco naquele escândalo gigante por alguns meses. Os experimentos tinham sido cruéis? Tinham. A imagem americana ficaria terrível por alguns meses? Sim. Mas aquele era o plano: a cada documento sobre os experimentos divulgado aos poucos, a mídia cairia matando em cima e ignorando o resto: o país teria a liberdade de seguir adiante com planos de ocupação em países no Oriente Médio. A operação não seguiria em segredo, é claro, porém o foco estaria totalmente nos experimentos.

Era o efeito Kuleshov – sempre tinha dado certo, forneça a isca e lance o anzol por trás. De acordo com os planos originais, a bomba explodiria em um local vazio – permitindo a passagem para os cômodos secretos do aeroporto sem que ninguém morresse. Porém num momento de crise, os conselheiros do presidente decidiram voltar atrás com o aval mas o plano já tinha caído em mãos pesadas. Parte dos membros da força tarefa era extremista demais e disseram que não ouviriam e seguiriam em frente, pois tinham encontrado outras vantagens que teriam se a bomba ainda explodisse. Aí quando Cisco estava no aeroporto, por ser um oficial treinado do governo e estar justamente naquele lugar, foi notificado sobre parte do acontecimento e precisava dar um jeito de contê-lo, quando na verdade foi tarde demais. Foi nesse instante que Lucky havia começado a pirar e as coisas saíram de controle demais para o engenheiro.

E Cisco estava deprimido pois jamais poderia contar aquelas coisas para alguém. Pelo menos para alguém além de Tony e Cameron.

— Cisco? Quase não reconheci pelas marcas no rosto.

O engenheiro virou-se com uma careta. Era Tony, com um sorriso bobo no rosto e Cisco sentiu-se corando. Torceu para que o rapaz não percebesse. Trocaram um abraço constrangedor e Tony sentou-se na cadeira ao lado. O pesquisador tinha os olhos verdíssimos em contraste com a pele morena e cheirava um perfume que Cisco não havia sentido em meses.

— O que faz aqui em LA? — Tony riu.

— Ah... tô dando consultoria em alguns filmes, ajudando na produção de outros filmes com amigos. O que eu queria fazer quando era criança. Tô prestes a entrar num projeto grande.

— È o seu sonho. — Tony concordou. — Combina contigo...

— E você, Tony? — Cisco deu de ombros. — O que faz aqui em Los Angeles?

— Depois que... que eu e Cameron entramos nessa nova... subdivisão do país, nos disseram para passarmos uns meses aqui para disfarçar.

— Hollywood. — Cisco o encarou sério. — Vai se misturar muito bem por aqui.

Tony riu.

— Na verdade não... não consigo dormir aqui...

Cisco concordou e não disse nada. Sentiu-se obrigado a fazer uma expressão para que Tony continuasse naquela linha de raciocínio, embora não tinha certeza de que queria continuar ouvindo aquela conversa.

— Não consigo dormir aqui pois sinto falta do som do mar lá fora. Eu... eu baixei um som externo do mar que dura por horas a fio, sem se repetir. Tem me ajudado. Bastante.

— É, eu precisei fazer isso quando deixei o navio também. — Cisco concordou. — Leva um tempo.

— Eu... Apesar de termos nos entendido sobre as coisas, também sinto falta da sua respiração... pesada. — Tony admitiu.

Cisco riu.

— Bom, aí você não pode baixar um áudio dos meus roncos enquanto eu durmo, não é?

Tony ficou um pouco surpreso com o tom de Cisco, mas soltou um suspiro.

— Não... não posso.

Cisco notou o choque do rapaz.

— Não... não quis dizer de uma maneira seca. Eu... eu... pra que você queria me encontrar mesmo?

— Então... em meu novo emprego eu posso buscar palavras chaves sobre certas coisas que podem estar sendo discutidas ou pesquisadas com mais frequência do que o normal na Internet... sabe?

— Caralho. — Cisco sorriu. — NSA? Parabéns.

— Não. — Tony negou, mas Cisco sabia que ele era um péssimo mentiroso. — Então... é que ultimamente uma pessoa em especial tem pesquisado DEMAIS sobre você na Internet.

— Eu tenho meus admiradores...

— Não nesse sentido. Também tem buscado sobre armas e métodos de extração de informações. Também tem acessado muito esses fóruns de teorias de conspiração sobre os atentados. Quis te avisar pois ela conseguiu seu endereço atual.

Cisco franziu, agora preocupado.

— O que eu faço? Sabe quem é?

Um som de arma sendo destravada e Cisco arrepiou-se. Sentiu o bocal da arma em sua nuca e ergueu ambos os braços, se rendendo. Tony fez o mesmo e Cisco supôs que ele também tinha um arma apontada para si. Dois homens treinados pegos desprevinidos, Cisco e Tony trocaram um olhar, que o pesquisador deixou claro que aquela era sua seguidora.

— Vire-se, Francisco. — Era a voz de uma mulher. O rapaz virou-se lentamente e encarou uma loira com uma máscara de caveira no rosto. Tinha uma arma escondida entre a bolsa no braço, apontada para Tony, e outra escondida na manga da blusa longa.

— Meu nome é Christina Gomez. E por favor, eu preciso saber o que aconteceu com o meu irmão. Eu tô ficando doida. E eu sei que você tava lá.

Cisco engoliu em seco e pensou cuidadosamente o nome.

Tina.

— Ele falou de mim? — A garota começou a tremer. Arrumou o cabelo.

— Sente-se. — Cisco decidiu. — Eu vou te contar o que posso.

Ela franziu.

— Tão fácil assim? Olha, eu aprendi dezesseis técnicas diferentes em como mobilizar um homem tá? — Encarou Tony. — Dois homens.

— Eu sei como é ter uma verdade escondida de você. — Cisco encarou Tony e voltou-se para Tina. — Seu irmão era um homem bom. Sente-se.

E a garota sentou-se, ainda apontando a arma para ambos.

— Vá em frente. — A garota encarou. — Tô ouvindo.

Cisco concordou. Ele teria uma eternidade inteira para explicar tudo.

Então ele iria esvaziar um pouco o próprio peito. Assim, iria preencher os vazios no coração de alguém.

Talvez fosse exatamente aquilo que ele precisava naquele instante.

I am looking for freedom, looking for freedom

And to find it cost me everything I have

Well I am looking for freedom, looking for freedom

And to find it, may take everything I have

XXXXX

Dias Atuais

Tami depositou o copo vazio calmamente sobre a bancada branca, depois de tomar um generoso gole do suco de laranja. Por um minuto, tirou o olhar concentrado do notebook e levou-o até a janela aberta, por onde o sol entrava e fazia desenhos no piso amadeirado. Ela levantou da cadeira e caminhou até lá. Não fazia ideia de que sua liberdade tinha um preço tão alto a ser pago, até se ver envolvida no plano da morte para ela e para outras nove pessoas.

Passar por toda a clausura no aeroporto, pelas mãos sujas dos militares fanáticos pela pátria mostrou uma perspectiva nova do que era dar valor à vida. Se Tami já amava tanto o cheiro de se estar vivendo, agora mais do que nunca, ela queria viver. Finalmente estava livre e queria aproveitar o máximo de si, sua vida havia ganhado um novo significado e a perda dos seus amigos não tinha sido em vão.

Diante da janela, Tami era banhada pelo sol, os raios aquecidos beijando sua pele mulata descoberta pela regata branca e pelos shorts azuis. Sua cabeça sem nenhum fio de cabelo brilhava pelo contato com a luz solar e a jovem não mais se sentia desprotegida por não ter sua peruca, seu escudo, cobrindo-a. Passou suas mãos pela careca delicadamente e abriu um grande sorriso, fechando os olhos. Tami era um pássaro pronto para levantar voo, depois de sair de uma tempestade.

Voltou para o Brasil assim que pôde, depois de ser liberada pelos militares, porém, não conseguiu eliminar o sentimento de estar sendo observada. Queria deixar tudo para trás: a repercussão na mídia, os olhares, as ameaças. Provavelmente aquilo ficaria consigo para sempre, mas só de tirar os pés de Springfield, já se sentia revigorada.

Assim que chegou, quase três meses atrás, conversou com a mãe, quem lhe recebeu de braços abertos e coração apertado. O primeiro abraço dentre tantos desencontros. A mulher afirmou que acompanhou tudo pela tevê e que recebeu uma ligação do ex-marido pouco antes dele deixá-la no aeroporto. Aquele comentário gerou uma tristeza imensa na filha, mas ela procurou contornar o sentimento para se manter inteira e contar tudo o que houve com o pai para sua mãe. Inclusive sobre o funeral improvisado. Foi uma conversa difícil, mas Tami não fugiria mais como fez esse tempo todo. Seria impossível não lembrar do pai ou de todas aquelas pessoas, contudo, ela teria que ser forte, se quisesse continuar firme.

Tami voltara a se estabilizar na escola e recebeu um carinho enorme de sua turma. Encantou-se com as flores deixadas em sua sala, todos foram extremamente receptivos, ela tinha a presença de seus queridos alunos novamente.

— Quem é esse tal de Abraham Wippler? Ele esteve envolvido naquela farsa do governo?

A voz macia de Candace despertou a latina dos pensamentos mais doces e trouxe-a de volta.

Tami olhou por cima dos ombros, encarando a namorada apoiada na mesa, somente de calcinha e uma camiseta preta. A garota estava mais pálida do que nunca, com os cabelos soltos e tingidos de diversas cores diferentes, um arco-íris esvoaçante sobre a cabeça. Disse que cada cor representava um tipo de sentimento bom que sentia pela parceira, e seus piercings ganhavam um destaque especial durante. Tami ficou extremamente feliz e empolgada, quando soube que Candace queria vir junto para o Brasil. Ficaria perto de quem ama e ainda por cima, conheceria mais da cultura local.

Tami foi até ela e sentou no banco, de frente para a bancada, apoiando a cabeça no ombro da namorada.

— Não diretamente, tem muito mais coisa sobre o passado daquele aeroporto que não te contei… Mas não seria justo te envolver nisso. Você merece muito mais do que saber o que há escondido na parede. É cruel e desumano. Mas foi a partir do diário desse Abraham, que eu descobri tudo isso. — Respondeu.

— Esse diário? — Candace balançou o caderno velho entre os dedos.

Tami franziu o cenho.

— Você não leu, certo?

— Hum… Não. Achei que fosse algo pessoal demais, não costumo vasculhar diários. — E riu.

— Isso foi uma indireta? — Tami semicerrou os cílios.

— Digamos que foi.

Tami tomou o diário em mãos, arrancando um gritinho divertido de Candace, e pôs sobre o colo. A jovem beijou sua testa e se afastou, deixando a professora sozinha. Tami rolou os olhos pela página aberta no navegador. Havia reunido várias notícias e artigos sobre Abraham, e passou a ler todos em busca de respostas sobre seu paradeiro. Estava fazendo aquilo por Lucky, pelo que o jornalista fizera em prol do grupo. Se estou aqui hoje, é graças a ele. Lucky me salvou mais uma vez e preciso retribuir de alguma forma.

O que encontrou em meio às notícias e artigos deixou seu coração acelerado. Abraham Wippler havia morrido há seis anos atrás, de causas misteriosas. Nenhum dos arquivos dizia especificamente como a morte ocorrera, mas aquela incógnita martelou no fundo de sua mente. Ela teve a impressão de que o mistério martelaria por toda a eternidade.

Despertou com um arrepio, ao ouvir a campainha tocar. Candace rebolou até lá, olhando pelo olho mágico.

— Seu amigo chegou.

Tami apressou-se para guardar o diário e deu um sobressalto do banco. Jogou um shorts, repousado na cabeceira de uma cadeira, no rosto de Candace.

— Se veste, por favor! — Desatou um riso.

— Ah, seria mais divertido se…

— Candace!

A garota abriu um sorriso largo e se vestiu. Posicionada na frente da porta, Tami abriu-a e seus olhos brilharam ao baterem em Cisco parado no corredor, portando uma grande mochila.

— Bem-vindo ao Brasil, gringo! — A professora recepcionou-o.

I know all too well it don’t come easy

The chains of the world they seem to movin’ tight

I try to walk around, if I’m stumbling so familial

Tryin’ to get up but the doubt is so strong

There’s gotta be a winning in my bones

XXXXX

Jane entrou no recinto como um cordeiro no meio de uma alcateia de lobos famintos. Porém, era um cordeiro disfarçado na pele do inimigo.

A oriental usava um vestido preto, que ia até a altura dos joelhos, que fora doado para ela dias antes. Seus cabelos negros ainda permaneciam extremamente curtos e repicados, não cresceram o suficiente. Usava um óculos e a sandália de salto baixo, tudo parte da caridade feita por uma instituição de freiras da cidade. Todas as pessoas presentes naquela celebração estavam vestidas conforme a ocasião, roupas escuras e em clima fúnebre. A celebração estava sendo feita na praça de frente para a prefeitura de Springfield, onde uma estátua de bronze havia sido erguida em memória das vítimas do atentado no aeroporto Amelia Earhart. Uma águia levantando voo ficaria marcada como mártir do acontecido.

Jane achava que as vítimas mereciam mais do que uma simples estátua. Mais do que aquelas palavras rasas que o prefeito dizia.

Ela conseguia ver diversos nomes entalhados no bronze, dezenas deles, e pensou se os nomes de seus amigos também estavam gravados ali. É claro que não, aqueles malditos devem ter encoberto o que aconteceu. Assim como fizeram depois do Protocolo Argo e daquela fachada de quarentena! Porta-retratos com fotos das vítimas, flores, ursinhos, objetos de quem teve o infortúnio de ficar para trás e outras homenagens enfeitavam o local. A jovem se sentiu muito mal por não ter conseguido ajudar ninguém, mas agora eles estavam num lugar que ela julgou melhor do que aquele. Jane também ficara para trás desde a noite do acidente, porém, ciente de que não ficaria ali por muito tempo.

Encarou o prefeito sair de cima do palanque e dar lugar ao senador. O homem oriental de terno caro e cheio de si ergueu o queixo e bateu no microfone, pronto para espalhar suas mentiras. Jane sentiu um ódio imenso dentro de seu corpo, enquanto sentia as cócegas na boca do estômago. Teve vontade de ir até lá e acabar com o homem, queria um rifle em suas mãos pela segunda vez, mas não valia mais a pena sujar suas mãos. Três meses depois dos fatos assombrosos no aeroporto, as pessoas começaram a esquecer sobre as informações vazadas do governo, mas Jane não. Ela sabia da verdade, e principalmente, a sua própria verdade, a que lhe fazia acreditar. Ninguém daria a mínima para uma moradora de rua, como sempre fizeram. Um dia vocês vão pagar por tudo, seus filhos da puta!

A mulher andou calmamente entre a multidão, alguns aplaudiam o discurso e Jane sentiu nojo. Quanto mais próxima do palco, mais seu coração batia acelerado. A única pessoa na mira do seu olhar estava retraída atrás do palanque, sentada em uma cadeira, parecia rezar. Jane passou por todos e se pôs no jardim lateral da praça, encarando a figura silenciosa, franzina e delicada. Sua mãe estava na posse de um vestido branco solto e de um chapéu em tom pastel. Ela nunca vira alguém tão linda como Jun Kobayashi, e ali tão perto, começou a sentir que o chão desapareceria e ela cairia num buraco sem fim. Respirou fundo e, longe da visão de todos, se aproximou.

A oriental sentada notou a presença da mulher de preto e de óculos escuros, e mesmo com todos os acessórios camuflando-a, Jun reconheceu seu próprio reflexo. Jane abriu um sorriso amarelo e retirou os óculos. O momento pareceu passar em câmera lenta ao seu redor e uma música soou dentro da sua cabeça. Era estranho, as cócegas na boca do estômago se intensificaram. Jane ainda estava retraída, como um bicho desconfiado, mas cedeu ao abraço repentino dado pela mãe. Era tudo que ela queria naquele momento, estar nos braços de uma pessoa que esteve escondida tanto tempo no meio dos seus pedaços de memória.

A moradora de rua enterrou o rosto no ombro da mulher mais velha, mas ao contrário do que esperava, nenhuma lágrima caiu. Para Jane, não havia mais pelo que chorar. Ela já tinha tudo tão perto.

— Você precisa vir comigo. — Murmurou a jovem, os olhos inquietos.

— O quê?

— Vem comigo, vamos embora pra longe… Longe daquele tirano!

— Eu não posso deixar seu pai, querida. Me desculpa.

Jane arregalou os olhos e se afastou, incrédula. Franziu o cenho, completamente confusa.

— Mãe, eu finalmente lembrei! Eu estou aqui, eu vim por você! Do que tá falando, como não pode vir comigo? Não tô entendendo… — A jovem tremeu.

— Sei disso, querida, ter você comigo era o que eu mais queria. — Jun respondeu, entre uma face centrada e nervosa, segurando os braços de sua menina. — Eu te procurei por tanto tempo, sabe? Foram tantos meses de lágrimas e dor. Você fugiu de casa e eu não sabia o motivo… Jane, não foi fácil! Quando seu pai veio até mim com a notícia de que não tinham te encontrado, foi como se eu perdesse meu coração.

Jun começou a caminhar para longe do palanque, indo em direção aos fundos do jardim, seu vestido branco se espalhando com o vento. Jane veio seguindo-a passo a passo, ouvindo seu soluçar.

— Mãe, você sabe por que eu fugi. Meu pai sempre me maltratou, me torturou e eu tentei te falar, mas você parecia não querer ouvir! — Jane sentia o nó na garganta se desfazer à medida que as palavras iam saindo. — Eu demorei pra lembrar, não sei como perdi a memória no dia em que fugi, mas pessoas boas me acolheram e cuidaram de mim. E de repente eu passei a me virar e cuidar de mim mesma. Senti muito sua falta, mas quando consegui lembrar, já era tarde demais. Aquele homem asqueroso que está, neste momento, fazendo a porra de um discurso furado pra aquelas pessoas machucadas, tentou me matar! Assim como todas as outras vezes!

Jun sentiu-se bombardeada por informações e viu quando Jane desatou um choro copioso na sua frente.

— Você lembra da banheira? Porque eu lembrei, e depois de perder a memória, sabe como me dói dizer que eu finalmente lembrei?!

A presença da Jane Doe infantil invadiu o ambiente e ela foi até a jovem de vestido preto, abraçando-a, desta vez mais forte.

— Eu prometo que vamos resolver isso, meu bebê, mas esse não é o momento adequado, filha. — Jun esclareceu. — Eu sei demais, de muitas coisas sobre aquele aeroporto e estou ciente de que sabe o suficiente também. O senador não é confiável, ele se livrou de todos os meus quadros, foi ele quem tratou da minha demissão. Filha, você é a pessoa mais corajosa por ter fugido dele, porém, sua velha mãe aqui não é. Se eu ousar fazer o mesmo, ele vai mandar seus homens atrás de mim, atrás de nós, e vai nos matar na primeira oportunidade.

Jane ficou chocada, seus lábios tremiam. Mas já tinha vivenciado horrores vindos do homem, aquilo não lhe atingia mais. Muito menos a morte.

— Por que não procurou a polícia ainda? Isso é grave!

— Jane, ele é o senador! — Jun alterou-se, como se cegamente dissesse que o tirano estava acima de todos.

— Pois me deixe cuidar disso com as minhas próprias mãos, mãe! Faz tempo que quero estraçalhar aquela cara cínica! — Os olhos de Jane ardiam.

— Oh, filha, não é tão simples assim, mas me orgulho de ter se tornado uma mulher tão forte. Por isso, quero que fique longe. — Jun disse, os olhos enchendo-se de lágrimas de novo.

A expressão da moradora de rua congelou e as pernas ficaram bambas.

— É a única coisa que te peço. Fique longe de mim e seu pai não poderá te alcançar. Jane, você é tudo o que eu tenho agora e precisa ficar em segurança. Dessa vez, vou te procurar onde quer que esteja, mas tem mais chances de viver, se continuar longe. — Começou a empurrar seus ombros. — Vá, Jane, vá embora!

Jane ficou sem reação, até ouvir passos apressados vindo em sua direção. Olhou para trás, a tempo de ver os capachos do senador se aproximando do jardim. Viu a arma discreta em punho de um deles. Voltou o olhar rapidamente para sua mãe.

— Eu te amo!

— Eu também te amo. — Ela sussurrou. — Não se preocupe, vou te procurar.

E Jane correu. Pulou os obstáculos do jardim e desapareceu entre as árvores.

I’m looking for freedom, looking for freedom

And to find it, cost me everything I have

Well I’m looking for freedom, I’m looking for freedom

And to find it, may take everything I have

XXXXX

Jane não fazia a mínima ideia de por quanto tempo aguentaria fugir de seu pai. Gostaria de poder enfrentar seus problemas frente à frente, como sempre fez. Contudo, dessa vez, havia um terceiro elemento. Sua mãe. E Jane faria o que ela pediu, esperaria sua vinda, animada por um final feliz.

Atravessou a cidade durante a tarde inteira e chegou até uma rua vazia e escura, a noite engolindo o céu sobre sua cabeça. A lua era fatiada pelo topo dos prédios e deixava o ambiente mais ameaçador. A umidade do local mudou a temperatura e Jane se viu com frio. A mulher ainda trajava o vestido preto, de modo que vez ou outra se arrepiava. Não mais corria, desta vez mantinha passos calculados e descompromissados.

No fundo, não estava dando a mínima, não sentia medo. Jane estava no próprio território, ela saberia como se virar em qualquer tipo de situação. Mas não esperava que fosse testada novamente.

Viu as chamas em tons alaranjados se desfazerem no ar a alguns metros, enquanto outros focos do fogo se iniciavam logo depois. Num canto afastado da viela, Jane observou três vultos, indivíduos camuflados na escuridão, parcialmente iluminados pelas labaredas dançantes. Tomada pelo instinto, escondeu-se atrás de um latão de lixo. A oriental fitou o movimento e procurou um objeto que pudesse defendê-la, apoderando-se de um pedaço de cano metálico, encontrando no meio dos dejetos de lixo.

Respirou fundo e se aproximou como um gato.

O trio estava diante de um barril velho, se aquecendo com o fogo. Pareciam ser três mendigos, mas quando se aproximou melhor para enxergá-los bem, Jane comprovou que não se tratavam de andarilhos. Ao menos, dois deles se vestiam muito bem para simples moradores de rua. Jane conhecia aquelas bandas, ela saberia reconhecê-los.

O brilho laranja iluminou completamente o rosto de um deles, e a oriental franziu o cenho, identificando-o.

Antônio usava um moletom preto surrado, assim como sua calça jeans com a lavagem amarelada, suja de terra nos joelhos. Embaixo do moletom, uma camiseta branca. Havia um gorro cobrindo sua cabeça, mas aquele rosto latino foi familiar à primeira vista. Ele estava acompanhado de uma mulher negra bastante atlética e baixa, e um homem com o dobro do seu tamanho, alto e loiro. Todos com feições abatidas e olhos inquietos, paranoicos, que pairavam pelo ambiente carregados de medo. As olheiras sob os olhos evidenciavam noites em claro.

De repente um gato pulou sobre o latão de lixo e Jane moveu o cano instintivamente, dando uma pancada na lateral do lixeiro.

— Gato idiota! — Ela resmungou e se colocou no meio da viela.

O trio observou o movimento brusco e ao perceberem a presença de uma quarta pessoa, começaram a correr na sua direção. Estava acontecendo tudo rápido demais, Jane ergueu o cano e esperou que ficassem próximos o suficiente, até perceber o cano da pistola apontado para ela. A mulher negra empunhava a arma e a olhava como se fosse uma intrusa. Parecia disposta a apertar o gatilho facilmente.

— Quem é você e por que estava escondida? — Ela disparou de maneira firme.

— Eu vivo aqui, então, sou eu quem pergunto… Quem são vocês e o que querem na minha casa? — Jane respondeu, erguendo o queixo. Ainda segurava o cano com firmeza, pronta para acertar a cara daquela atrevida.

A mulher riu, analisando-a de cima para baixo. Vestido bonito, porte elegante. Só poderia estar de brincadeira. Olhou por cima dos ombros, dizendo por fim:

— É pessoal… Só mais uma louca.

Aquilo fez o sangue da oriental ferver. Ela viu os rapazes se aproximarem e o grandão loiro semicerrou os cílios, querendo desvendá-la.

— Eu me lembro de você. — Enfatizou. — Essa é Jane Doe Kobayashi, a filha do senador.

A moradora de rua deu um passo para trás, desconfiada. Até ver a tag militar balançando no peito do homem. Com a arma ainda apontada para ela, deu uma olhadela para a expressão de Antônio.

— Você ainda está viva… — Ele murmurou, imergindo nos próprios pensamentos, quase que hipnotizado. — Mas… Como?

— Do que tá falando?

— Você estava na lista da morte! Suzzy, Rob… Ela estava na lista da morte três meses atrás! — E virou-se novamente para a oriental. — Que merda você fez? Como ainda está viva?

Suzzy e Rob entreolharam-se perplexos e confusos ao mesmo tempo.

— Se conseguiu vencê-la, precisa nos dizer agora! — Rob berrou, a paranoia nos olhos azuis aumentou drasticamente e ele passou a suar.

A verdade era que Jane não queria mais saber da lista, ela queria distância da maldita Morte. E sentia muito por eles estarem enfrentando o que ela enfrentou. Mas aquele não era um problema seu. Antônio e as outras vítimas precisavam se livrar sozinhos, assim como seu grupo também fez. E a oriental estava confusa demais para reagir, de repente sua pernas estavam tremendo. Jane pôde sentir quando uma corrente elétrica desceu sua espinha. A última vez que sentira aquilo, foi em cima daquela passarela de vidro, quando foi salva por Lucky.

Atrás deles, imperceptível, um senhor idoso usando um avental, terminou de tragar seu cigarro e jogou a bituca no lixo. Entrou de volta em alguma porta que dava para o beco e sumiu. O rastro de brasa rastejou pelo chão, enquanto dentro do latão, plásticos e papéis começaram a queimar.

Uma ventania entrou pelo beco rapidamente, sendo desviada através do topo dos prédios e balançando os cabelos cacheados, reunidos no topo da cabeça de Suzzy. A mulher olhou para trás e seus olhos percorreram toda a viela. Ela também tinha tags militares penduradas no pescoços.

— É ela! Ela chegou, que droga! — O latino berrou e segurou os braços de Jane apavorado. Os olhos vermelho estavam marejados. — Por favor, só você pode nos ajudar, nos diga como!

— Eu não sei como ajudar, eu não sei como deti a morte! — E Jane recuou assustada, desatando a correr pela viela.

Suzzy deu passos ligeiros, apontando a arma na direção nas costas da jovem e apertou o gatilho duas vezes. A primeira bala rasgou o ar próximo ao ombro da oriental, mas sequer zuniu. Jane tinha certeza que não seria atingida, de modo que apenas engoliu em seco e não olhou para trás. Me desculpem!

O segundo tiro ecoou próximo do latão de lixo. A bala ricocheteou no metal e atingiu um dispositivo de gás, preso à canos de alumínio na parede dos fundos de um estabelecimento que possuía uma placa discreta, “LeMiro”, a filial de um restaurante. Jane desapareceu novamente na escuridão, enquanto o gás se espalhou com grande rapidez. Suzzy sentiu o cheiro característico e olhou para os companheiros, arregalando os olhos.

Oh, not giving up there’s always been hard, so hard

But if I do the thanks lase the way I won’t get far.

XXXXX

Antônio viu muitas pessoas morrerem ao longo do seu caminho, muitos corpos sangrando, muita dor e muitos gritos sôfregos. Mortes bizarras, que não faziam sentido nenhum, mas sabia que era o contato direto com a própria Morte que provocava aquela reação. E ele tinha ciência de que tudo começou com sua premonição no caminhão dos militares, há poucos meses. Salvando um comboio composto por dez deles, ele desencadeou a lista, a mesma lista que aquelas pessoas que encontrou no aeroporto fizeram parte. E agora, ele estaria indo embora porque uma delas negou ajudá-lo. Antônio só não tinha aceitado, mas morreu naquele dia, ao não deixar que as ferramentas médicas atingissem o caminhão e causassem o acidente.

Suzzy e Rob foram os únicos militares a sobreviverem com ele até então.

E os perderia, assim como perdeu sua filha no trágico acidente de trem que quase tirou sua vida anos antes. Antônio não tinha mais nada, a única coisa que ainda o permanecia de pé era sua esperança de que as coisas melhorassem, mas a morte não deixa brechas e ela fecha todas as pontas soltas.

O gás chegou até o pequeno incêndio no latão de lixo com rapidez. A bola de fogo se formou em questão de segundos, engolindo o material junto do corpo de Suzzy, que tentou correr na direção dos companheiros. Foi arremessada sem dó para frente e seu corpo foi destruído antes mesmo de chegar ao chão enlameado do beco. Sua pele queimou como papel, enquanto as pontas de seus dedos desintegravam no ar. Seus globos oculares enegreceram junto com cada pedaço de músculo e pele que as chamas encontraram pela frente.

A arma inflou e foi lançada na direção de mais ligações de canos abrigando gás. Rob puxou Antônio e os dois começaram a correr na direção contrária da explosão. Os canos arrebentaram e outras rajadas de gás lamberam os vestígios do fogo que estava concentrado dentro do barril, onde o trio se aquecia anteriormente. O barril explodiu e seus pedaços voaram em direções diferentes. Uma delas, foi direto no dorso de Rob. O grandão loiro sentiu a pressão feita pelo material em sua coluna e foi empurrado contra uma grade repleta de pontas afiadas. Seu pescoço, peito e coxas encaixaram, enquanto partes das hastes pontiagudas chegaram do outro lado, rompendo músculos, cartilagem e o tecido de sua calça. Ele cuspiu sangue e deu um último espasmo.

Atrás de si, a labareda de uma terceira explosão arrastou tudo pela frente no beco e Antônio estava bem próximo de chegar no final. Ele conseguia ouvir a voz da filha e uma luz forte. Ele estava indo reencontrá-la finalmente.

Ele deu um impulso e saltou, evitando que o fogo lhe atingisse. Caiu no asfalto, ralando os antebraços. Ele rolou pela pista e se viu salvo. Mas não por muito tempo. A luz no fim do túnel provinha de imensos faróis de um caminhão que transportava bebidas. O motorista foi pego de surpresa pelo homem jogado na estrada e tentou frear, mas freios não adiantarem. Então, moveu o volante antes de atingi-lo.

Antônio ouviu os pneus rasparem o asfalto, antes do caminhão tombar e as portas traseiras do veículo se abrirem. Toda a carga começou a ser jogada para fora, grandes gradeados de cerveja, na direção de Antônio. Ele gritou, antes das garrafas de vidro arrebentarem em seu corpo e a bebida se permutar ao sangue grosso no asfalto.

Mhm, life hasn’t been very kind to me lately (well)

But I suppose it’s a push from moving on (oh, yeah)

In time, the sun’s gonna shine on me nicely (on me, yeah)

Jane ouviu os barulhos ensurdecedores das explosões, mas não olharia para trás em hipótese alguma. Estava livre da morte e isso significava ficar longe dela. Agora, esperaria pela mãe, tinha certeza de que ainda viveria muitos momentos bons ao seu lado. Aquele era seu novo habitat, obscuro e arrebatador, mas era onde conseguia controlar seu próprio desígnio.

Somethin’ tells me good things are coming

And I ain’t gonna not believe

Pela primeira vez, depois de tudo que vivenciou, Randy pôde encarar a família unida e feliz. Ele pediu que Mary e os pequenos Brian e Andrea escolhessem o melhor lugar no sofá. Posicionou a câmera sobre a cômoda e correu até eles, procurando a melhor pose ao lado de quem amava.

Alguns segundos depois e o flash disparou.

I’m looking for freedom, looking for freedom

And to find it, cost me everything I have

Tami ergueu os drinks preparados. Cisco e Candace fizeram o mesmo e os três gargalharam. A professora e o engenheiro se entreolharam e acenaram positivamente com a cabeça. Em seguida, de soslaio, a professora encarou o diário.

Well I’m looking for freedom, I’m looking for freedom

And to find it, may take everything I have


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Queria primeiramente agradecer por terem acompanhando a história até aqui! Sem vocês o projeto não seria possível. Espero que tenham gostado deste final, não esqueçam de comentar! As reviews são importantes para o futuro do projeto.

PS: A música tocada durante o capítulo é "Freedom", de Antony Hamilton e Elayne Boynton



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Superstition" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.