Mentes Quebradas escrita por Nando


Capítulo 15
Telmo


Notas iniciais do capítulo

E eu voltei! Desta vez no papel de Telmo, o pai do nosso protagonista. A sua família encontra-se à beira da rutura, será capaz de a consertar?



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            Estou numa pilha de nervos. Voltei a olhar para o relógio, na esperança que os ponteiros se movessem mais depressa. Dentro de uma hora vai começar a contagem de votos. Quem sairia vencedor? Quem seria o próximo presidente? As sondagens ora apontavam para mim ou para Albert. O futuro estava muito incerto. Tenho de ganhar. Pela minha filha, a filha que eu perdi… Tenho de ganhar…

Ana entrou pela porta da sala e bastou-me olhar na sua direção para começar a sentir uma dor aguda no peito. Cada vez que olhava para ela só me lembrava de Matilde. Á medida que o tempo passava tornava-se mais angustiante ficar no mesmo espaço que ela e, por isso, eu tinha começado a abrir uma fenda entre nós que se abria cada vez mais. Como se estava a sair na escola? Teria algum problema? E as notas? Não sabia responder a estas perguntas. Também percebi que não fazia a mínima ideia das respostas para essas perguntas no caso do meu filho. Que raio de pai me estava a tornar? Se não sabia ser um bom pai, o que iria eu a fazer para presidente? Não. Era exatamente por isso que queria ser presidente. Para vingar a minha filha e poupar a dor que eu senti a outros pais. O que eu estava a fazer era certo! Tinha que acabar com o oceano daquele pescador sem sentimentos. Pelo bem do meu país, e, na esperança que o mundo concordasse, tinha de acabar com o mundo virtual!

Senti uma mão tocar gentilmente na minha. Virei-me e deparei-me com Ana a olhar-me, preocupada, com os seus olhos azuis vivos, tal como os meus e tal como os de Matilde… Tentei permanecer calmo enquanto ela dizia:

—Vai tudo correr bem, pai! Quer percas, quer ganhes, vamos permanecer uma família unida!

A voz dela tremeu um pouco no final. Eu olhei para ela, num meio sorriso, tocado pela sua inocência. A nossa família tinha-se quebrado em bocados e não havia maneira de os colar de volta, essa era a realidade. A discussão com a minha mulher continuava presente na minha cabeça, mesmo depois de nos termos desculpado um ao outro. Nunca tínhamos levantado a voz um ao outro daquela maneira. O meu filho também não parava em casa e, embora a Luísa discordasse totalmente comigo, eu achava que ele andava metido nalguma coisa, e a sua súbita viagem há duas semanas só me deixava com mais dúvidas…

—Vais continuar com a tua ideia de acabar com a Internet? – Prosseguiu Ana.

—Mas obviamente! A Internet traz mais desvantagens do que vantagens.

—E então todas as coisas e conhecimentos que podemos tirar de lá?

            -Se ganhar, vou mandar criar diversos programas de computador que vão funcionar como uma espécie de biblioteca, com conhecimentos gerais, mas também específicos de cada área.

            -E quando se quiser ver filmes e séries online?

            -A televisão continua a existir e vou propor o aumento na criação de locais legais para assistir qualquer filme e série a qualquer hora. Assim também é uma boa maneira para acabar com a pirataria online.

            -E todas aquelas pessoas que sobrevivem por causa da Internet?

            -Dar-lhes-ei trabalho em áreas parecidas com as suas.

            -E quando quisermos falar com outras pessoas para lá deste país?

            Ela só depois entendeu o significado escondido nas palavras que tinha dito. O objetivo disto tudo tinha originado devido a uma conversa online que acabou mal. Decidi dar a entender que nada disto me tinha passado pela cabeça:

            -Vou tornar as redes telefónicas mais baratas para as pessoas poderem falar livremente para o estrangeiro.

            -Mas isso não vai gastar muito dinheiro?

            -Não te preocupes, filha, com calma conseguirei arranjar uma solução para todos os problemas.

            Ela encostou-se no sofá, um tanto quanto contrariada. Não importava, mais cedo ou mais tarde ela habituar-se-ia á ideia, assim como o resto das pessoas. O silêncio instalou-se entre nós há medida que, na televisão, dois comentadores estavam a debater a minha ideia:

Comentador 1: Eu concordo inteiramente com Telmo. Temos de nos debater com a realidade. A Internet simplesmente está fora do nosso controle e tornou-se um monstro que não conseguimos controlar, quanto mais depressa acabarmos com ela melhor.

Comentador 2: Eu discordo totalmente. Quer queiramos quer não, a Internet tornou-se algo essencial nas nossas vidas e tira-la assim não vai ajudar em nada. Os problemas que ele aponta vão continuar a existir, embora sendo por outros meios.

Comentador 1: O que está em causa aqui não é isso! Temos de admitir que a Internet dá uma enorme liberdade aos criminosos virtuais.

Comentador 2: Pois, mas ao mesmo tempo torna a nossa vida muito mais fácil, com mais vantagens do que desvantagens.

 Comentador 1: Mas também causa uma enorme adição! A cada dia o número de dependentes desta “droga” só aumenta!

Comentador 2: Mas isso já está a ser resolvido. Tem havido um aumento de aulas educativas sobre esse aspeto nas escolas e também há cada vez mais apresentações públicas a debater esse problema.

Comentador 1: E servirá de alguma coisa? Também fizeram, e continuam a fazer, a mesma coisa contra o tabaco e a droga, e estes continuam a ser consumidos desde a adolescência, e os seus números só tendem a aumentar!

Comentador 2: E isso também pode ser usado contra Telmo! Existem várias pessoas com conhecimentos tecnológicos muito elevados e, eventualmente, irão conseguir criar uma réplica da Internet que pode ser utilizada para determinados fins não tão amigáveis…

Comentador 1: Mas isso seria considerado infringir a lei e daria pena de prisão!

Comentador 2: Mas então não estava a afirmar que as medidas contra as drogas, sendo estas também ilegais, não serviam para nada?

Comentador 1: Nesse caso estava-me a referir a apresentações públicas e a aulas educativas!

Comentador 2: Vai tudo dar ao mesmo. Admita, a razão para você e outras pessoas estarem a defendê-lo é porque se sentem sensibilizados por ele ter perdido a filha para um criminoso qualquer! Se tivesse sido outra pessoa qualquer ele nem se importaria!

Comentador 1: Você entende o que está a dizer?! Entendo que a morte da filha fosse o despontar da sua revolta contra a Internet, mas ele entende que isto não a vai trazer de volta! Ele apenas está a poupar a dor que sentiu a outras pessoas! Vamos ver o seu rival, Albert. Acha que ele sequer se importaria?! Às vezes custa-me a acreditar que ele tem sentimentos! Se esse homem virar presidente só vai levar o nosso país á desgraça!

Comentador 2: Isso não passa de uma hipérbole! Eu acho precisamente o contrário! Vai ser ele que vai levar o nosso país na direção certa! Precisamos de alguém como Albert para governar o nosso país e não de um homem enfraquecido e choroso!

Comentador 1: Como é que tem coragem de dizer isso?! Você não sabe o que diz!

            Os dois comentadores entraram numa guerra verbal, com insultos escondidos nos meios das palavras. Aumentaram o tom de voz de tal maneira que se tornou quase impossível distinguir o que cada um dizia. Após uns segundos a imagem mudou e apareceu o apresentador pedindo desculpa e voltando às sondagens. Olhei para Ana e reparei que ela estava tensa, tentei acalmá-la:

            -Não te preocupes filha, eles não dizem coisa com coisa!

            Ela não respondeu, deixando o discurso do jornalista sendo o único som a flutuar pela sala. Ficámos assim por uns minutos até que o meu filho entrou na sala:

            -Então, ainda não foi nada anunciado?

            -Só revelam quando tiveram o resultado total. – Respondi.

            -Não vais ter á tua sede?

            -Prefiro saber o resultado ao pé de vós. Depois, quer ganhe ou perca, faço uma visita á sede.

            -E tu não devias estar já na cama? – Disse, virando a sua atenção para Ana.

            -Achas mesmo que eu conseguiria dormir?

            -Depois não te venhas queixar amanhã...

            Sentou-se perto da irmã e começaram a meter-se um com o outro. Não consegui evitar um sorriso. Mesmo após a morte da irmã, eles sorriam um para o outro, mantendo a sua ligação intacta. Porque é que eu não consegui fazer o mesmo? Porque é que não consegui tapar as fendas que se abriram entre nós? Não adiantava estar a pensar nisso agora. Tinha de me focar nas eleições!

            Faltavam á volta de 20 minutos para o resultado, quando a porta da sala voltou a abrir e Luísa entrou:

            -Boa noite, meus lindos!

            -Boa noite!

            -Queres que te vá aquecer o jantar?

            -Deixa estar, filho, eu comi antes de vir. Ainda não há notícias?

            Acenamos negativamente. Ela sentou-se na poltrona, perto de nós, e começou uma conversa amigável sobre uns pacientes que tinha tido, relatando certos acontecimentos engraçados. Estava apenas a melhorar o clima, a tentar por as peças quebradas juntas de novo. Agora que olhava para a mulher que eu tinha escolhido como esposa conseguia claramente ver os motivos que me tinham levado a tomar essa decisão. Para além da sua beleza, ela tinha um controlo tão supremo sobre as palavras e sobre a mente humana, que me fazia sentir como uma marionete nas suas mãos. Cada vez que colocava os seus olhos na minha direção sentia-me como se estivesse a ser lido, como se fosse um livro. No entanto, eu não tinha medo, nem me afastava, pelo contrário, fazia-me sentir cada vez mais atraído por ela…

            Deve ter sido um dos poucos momentos em que não pensei no resultado das eleições, mas isso foi quebrado por a voz fina e baixa de Ana:

            -Quando é que vocês irão parar com isto?

            Esta pergunta deixou-me confuso. O que quereria dizer ela com isto? Luísa foi a primeira a perguntar:

            -Que se passa, Ana?

            Ana aumentou o tom de voz:

            -O que se passa? Não se passa nada! É isso que quereis ouvir?!

            Eu percebia cada vez menos do que se estava a passar. Ela levantou a cabeça e fitou cada um de nós, com lágrimas a quererem sair dos seus olhos:

            -Como é que vós podeis estar com esses sorrisos falsos?! Estou farta, farta! Cada dia que passa vocês continuam com esse sorriso como se o tivessem colado na cara, mas eu sei que não é assim!

            Luísa interpôs-se:

            -Filha, acalma-te e tenta contar-nos o que se está a passar contigo. Estamos aqui para o que precisares!

            As lágrimas começaram a escorrer da cara de Ana enquanto eu continuava aflito, sem saber o que fazer.

            -Desde que a mana morreu, esta família nunca mais foi a mesma! O mano começou a estar menos tempo em casa, o pai veio com a ideia de acabar com a Internet, e para piorar tudo discutiu com a mãe porque ela disse-lhe que não ia voltar nele!

            Como é que ela sabia sobre isso? Teria ouvido a nossa conversa? O que se estava ali a passar?!

            -Filha, essa discussão de que falas… - Luísa foi interrompida por Ana antes de começar a falar.

            -Eu ouvi tudo muito bem, não precisas de mentir! Estou farta de mentiras! Estou farta de que me tratem como uma criança!

            Pela primeira vez, vi Luísa num estado de choque, sem saber o que fazer. Eu estava da mesma maneira. Sentia-me inútil, e as palavras não saíam da minha boca. Que raio de pai, era eu?!

            Quem tomou a iniciativa foi o meu filho, estendo-lhe a mão, com o intuito de a acalmar, mas ela afastou-lhe a mão para longe e fitou-o seriamente:

            -Não penses que tu também estás livre! Eu sei que tu fazes parte do grupo dos Unknowns!

            A mão dele recuou e também ele ficou paralisado pelas palavras da irmã. Lembrei-me, então, de um artigo que tinha lido que comentava o facto de os Unknowns estarem numa posição firme contra mim. Não consegui evitar mostrar um sorriso triste. Desde o início, nenhum membro da minha família tinha apoiado a minha ideia…

            As lágrimas de Ana escorriam-lhe pela face, fazendo-me lembrar um rio, desaguando no tapete, o mesmo tapete que tínhamos comprado pouco tempo depois de a nossa última filha ter nascido, um tapete que continha apenas uma palavra em letras grandes: “Family”.

            -Agora já não há palavras, pois não? A vossa máscara foi tirada! – Ela fez mais uma pausa, para deixar as lágrimas correr – Tenho vergonha de ter achado que a nossa família era unida…

            Aquelas palavras causaram-me um aperto no coração. Ela saiu a correr, deixando-nos a todos sem reação, batendo a porta do quarto dela com toda a sua força. O meu filho levantou-se a seguir e, sem nos direcionar o olhar foi também ele para o seu quarto, num passo lento, ficando apenas eu e Luísa na sala. Nenhum de nós disse nada. Ela sentou-se ao pé de mim, no sofá, mas as palavras não saíram, ficando presas na garganta, e deixando o jornalista a anunciar que o tempo estava a acabar. Naquele momento, eu já não tinha a noção de nada. Porque não tinha reagido aos apelos da minha própria filha? Era um inútil e não passava disso…

            O jornalista começou a contagem. Eu olhei para o televisor, enquanto milhares de pensamentos me passavam pela cabeça, nenhum deles fazendo o menor sentido… Quando chegou ao fim da contagem os resultados apareceram e eu tive mais uma pontada no coração. Albert tinha tido 63% dos votos e eu tinha tido 37%. Mais uma derrota…

            Olhei várias vezes para os resultados, mas estes não mudavam e o aperto continuava a aumentar. Lágrimas apareceram nos meus olhos e eu chorei. Chorei como uma criança, chorei por tudo e por nada. Luísa tocou-me gentilmente na cabeça e eu pousei-a no seu ombro, enquanto as minhas lágrimas não encontravam lugar confortável para desaguar…


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Notas finais do capítulo

E então, gostaram? Se sim não esqueçam de dar o vosso apoio, isso ajudaria muito para continuar a escrever! É tudo, por hoje! Até à próxima!



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