Fortuito escrita por Tamires Vargas


Capítulo 7
Caminhar sozinho exige cuidado redobrado


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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 Hisoka se demorava a sair da cama. Tinha sua mente no ontem, mais precisamente nas reações de Naoko. Da apatia à fúria num estalar de dedos, da repulsa ao apego infantil. A distância esfacelada num segundo, a vulnerabilidade sem disfarces. Crua, intensa, descontrolada. Quem diria, dias atrás, que ele veria Naoko Peace ardendo puramente em emoções? Tantas expressões e tons e olhares!

Hisoka riu. O tempo que gastou começava a valer a pena. Sua percepção afiada mais uma vez lhe trouxe a diversão que desejava. Ainda uma pequena dose, mas logo se embriagaria. Nunca desistia até ficar completamente embriagado.

“Devo lutar... devo acompanhar Naoko lutar...” Soltou o travesseiro e rolou para o lado. “Os dois!”

Hisoka não teve sorte. Todos do seu andar estavam com lutas marcadas ou não queriam travar uma naquele dia. Sem alternativa, esperaria até Naoko entrar no ringue. Três horas. Infinitas e vazias. Puro ócio refinado. Tudo o que ele não precisava.

A Torre Celestial possuía muitos setores que Hisoka nunca pôs o pé por falta de interesse, um deles era o de apostas. Uma longa sala repleta de funcionários que registravam centenas de palpites todos os dias. Ali era possível conseguir o histórico dos lutadores e detalhes sobre as lutas. Obviamente, as informações disponibilizadas eram diretamente influenciadas pelas contas bancárias dos investidores.

Um homem de terno simples se aproximou devagar de Hisoka. Seu cabelo, preto e curto, penteado para trás de forma impecável combinava com o bigode fino perfeitamente alinhado. Ele conhecia muito bem quais eram os melhores lutadores e investidores e não perdia a oportunidade de torná-los seus clientes.

— Alguém em especial, senhor Hisoka? — Ele manteve a expressão cordial apesar de ter recebido um olhar de desconfiança. — Posso lhe fornecer dados privilegiados.

Hisoka se virou com um sorriso debochado, mas decidido a levar a conversa para ver onde chegava.

— Naoko Peace — disse devagar observando a expressão do homem. — Não é um nome em alta, mas é o que eu quero.

— Pois não. — Abriu um pequeno laptop e iniciou a pesquisa. — Srta. Peace... Encontrei. O que deseja saber?

— Tudo que você tem.

— Se não se importa, poderia adiantar o pagamento? — Saito aguardou a confirmação da transferência e repassou as informações de todas as lutas de Naoko. O relatório continha também peso, altura, um esboço sobre a personalidade dentro e fora do ringue, golpes e uma série de pormenores que saciava até o maior dos detalhistas. — Ela está subindo rápido como o senhor pode ver. Reconheço que tem o seu mérito, mas...

— Mas?...

— Talvez não seja coincidência que venha lutando contra os adversários menos preparados de cada andar. — Saito segurou a fala de propósito por uns segundos. — Não é raro que um lutador conquiste o apreço de algum investidor e com isso receba certos “auxílios” — frisou a palavra.

— Manipulação das lutas.

— Essa palavra é um pouco forte. Digamos que seja uma ajuda para subir mais rápido. Você sabe, por trás das apostas há muitos motivos e dinheiro não é nada para alguns homens por aqui. Então eles investem em “ativos” diferentes.

— Seja claro.

— Há coisas que só uma mulher pode oferecer, senhor Hisoka. — Saito fitou a expressão de Hisoka como se dela coletasse detalhes. — Bem, é claro que há muitas outras razões. Eu apenas mencionei a mais frequente.   

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

Naoko deslizava os pés sobre o chão branco e áspero. Passos delicados, firmes, vitoriosos. Começou a deixar o ringue assim que o apresentador declarou sua vitória. Sem lançar um olhar para o adversário que suportava a dor dos braços quebrados ou para o público que chiava por causa da luta rápida e livre de sangue.  

No corredor que levava para fora da arena, vislumbrou a silhueta que de costume lhe atravessava a visão brincando com a meia luz. Encostado na parede, parte iluminado, parte mergulhado na penumbra, Hisoka acompanhava os movimentos de Naoko. Fitou os pés descalços, os shorts no meio das coxas, a túnica sem mangas, pretos como os cabelos dela presos para trás numa trança grossa e longa.  

Os lábios dele se repuxaram num sorriso.

— Você parece bem à vontade lutando.

— O que você quer?

— Cobrar a dívida, talvez? — Inclinou a cabeça imprimindo uma expressão inocente. — Não hoje, benzinho.

— Fale de uma vez.

— O que Safina quer?

— O que todos querem... me usar.

Hisoka arqueou a sobrancelha.

— Como?

— Você é mesmo um desocupado... — Naoko abaixou para pegar seus sapatos que estavam junto à parede, mas estes num segundo passaram a dançar suspensos no ar. — In-su-por-tá-vel. — O tom seco se misturou a uma raiva contida.

— A resposta.

— De que outra forma seria, senão usar minha habilidade?

— Há coisas que só uma mulher pode oferecer a um homem. — O comentário fez Naoko revirar os olhos. — E ao que parece Safina está muito interessado em te favorecer... — Silenciou meio minuto. — Não é raro as lutas serem manipuladas.

— E se ele estiver me favorecendo? Querendo além da minha habilidade?

Hisoka deixou Naoko tomar os sapatos e, em silêncio, observou-a partir. A trança balançando, os ombros, pescoço, a postura que havia mudado. Lembrou-se do dia no beco em que ela insistia em andar na ponta de um dos pés para não perder a postura. Agora, Hisoka sabia, Naoko poderia trajar qualquer trapo e ainda assim manter o queixo erguido como uma rainha. Porque a morte não mais a amedrontava.

Ele sorriu.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

Satoshi Safina se aproximou devagar prevendo ser mal recebido. Deixou-se analisar pelo olhar cauteloso enquanto observava a expressão impassível de Naoko. Gesticulou pedindo permissão para sentar. Agiu na ausência da negativa. Esperar pelo sim era um erro que não cometeria.

— Desculpe agir desse modo. Não gosto de ser insistente, mas você não parece disposta a me ouvir.

— Você tenta contato comigo todos os dias — falou devagar para suprimir a irritação.

— É urgente.

— Eu não me importo.

Satoshi fitou Naoko por um minuto inteiro. Costumava lidar com pessoas difíceis, era hábil em negociações e cortês até com os mais estúpidos. Tinha o olhar afiado e uma capacidade ímpar de perfilar. Descobria pontos fracos como ninguém.

— Talvez não se lembre que tenho um filho. — Puxou o celular e mostrou a foto. — Completou nove anos recentemente. — Fez silêncio enquanto Naoko observava a imagem do menino de cabelos pretos e sorriso brilhante. — É por causa dele que venho te importunando.

Satoshi usou o silêncio outra vez. Observou a face impassível de Naoko pouco a pouco adquirir traços de incômodo até que uma leve perturbação a cruzou, obrigando a mulher a desviar o olhar.

— Lembra-se que curou minha esposa de uma doença grave?

— Não.

— Yahiko desenvolveu a mesma doença, porém de forma mais agressiva. Os médicos não conseguem conter o avanço... Ele pode chegar a vegetar em pouco tempo.

— É uma pena. Acabou?

— Te dou o dobro do que paguei pela minha mulher.

— Não me interessa.

— Posso te dar proteção.

— Não preciso.

— Naoko... — Satoshi deixou o tom cordial para assumir o de aviso. — Há pessoas que simplesmente tomam aquilo que querem. A sua habilidade é interessante para muitos e eu conheço pelo menos dez que não se sentariam para ter essa conversa. — Ele retomou a cordialidade ao sentir a tensão dela. — Não sou do tipo que consegue o que quer na força, prefiro alianças a correntes. Acho que você também.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

Naoko recordou todos os detalhes da conversa com Satoshi após o encontro com Hisoka. Não se importava com o dinheiro, menos ainda com a proteção oferecida. Aquilo que pulsava em sua mente era a foto do menino. Yahiko tinha quase a mesma idade que seu irmão quando faleceu. Uma infinidade de vida pela frente. E o coração idiota de Naoko se apertava ao lembrar disso e acelerava ao sentir que salvar aquela criança seria sua redenção.

Naoko nunca havia curado crianças. Saemi jamais aceitou qualquer quantia pela cura de uma. Se Naoko não foi capaz de salvar seu filho, não salvaria criança alguma. Que morressem como Makoto morreu. Ela não choraria sozinha, outras mães chorariam a mesma dor.

— Talvez só mais essa vez — murmurou para si mesma. — Só mais essa e posso me entregar ao fim. Só mais essa... e enfrento Hisoka até que eu não possa mais respirar.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

— Pensei que não iria. — Illumi disse observando Hisoka. — Quebrou seu brinquedinho?

— Não... — Girou a rainha de copas na mão. — Estou me decidindo.

Illumi arqueou a sobrancelha de leve.

— Digamos que encontrei outra forma de brincar e agora não sei qual eu quero. — Ele girou a carta outra vez. — Não gosto de escolher... Quero as duas.

Illumi deixou escapar um suspiro.

— Você é infantil.

— Sou? — Hisoka fez cara de bobo e riu ao ver Illumi revirar os olhos. — Eu apenas quero tudo que me dê prazer.

— Não sei como eu ainda te suporto. Mas, enfim, é seu problema.

Hisoka levantou o dedo com ar infantil.

— Sabia que ela me chama de insuportável?

— Eu concordo. — Illumi disse deixando-o para trás.

O rosto de Hisoka retomou a seriedade. A mão ergueu a carta. Os olhos fitos nela. “Rainha de copas...” Um riso curto e suave deixou seus lábios. “É só uma carta como outra qualquer com um significado inventado por algum idiota.” Ele se lembrou de quantas vezes seu baralho lhe surpreendeu entregando a carta que se encaixava perfeitamente à realidade. “Bobagem! Porém... seria divertido brincar com isso.”

— Será que você falou a verdade?...

Focou o desenho da mulher de coroa, tomou-a entre os dedos indicador e médio e guardou-a no bolso.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

O tédio lhe beijava com paixão.

Hisoka mantinha um sorriso falso que causava arrepios a quem o recebia. Tudo era muito demorado, parado, enfadonho, irritante... Por que viera, afinal? Tinha um motivo, claro, que foi engolido no mar de emoções borbulhantes. O tédio conseguia lhe tirar do sério. Como se por dentro o arranhasse com longas garras, rasgando-o devagar, centímetro por centímetro se abrindo sob um som que ele não conseguia discernir. Agora. E agora. E agora. Um estalo abafado dentro da mente. De novo. E de novo. E...

Hisoka mal sentiu o homem encostar nele, mas não precisava. Agarrou a distração, estendeu-a um pouco. Fez brilhar no salão os naipes, espalhando-os como confetes, feitos dos braços daquele pobre infeliz.

Exagero? Talvez. Talvez? Óbvio! Porém ele só se deu conta depois. Era mágico, não médico. Nada poderia fazer. E se pudesse? Não faria. Fatos passados não contam novas histórias. E Hisoka não habitava no pretérito. Sua terra era o presente, vez ou outra passeava pelo futuro, mas somente para trazer de lá, mais depressa, algo pelo qual salivava.

O tédio continuava lhe tocando, convidando-o a algo mais profundo, intensificando o incômodo. Hisoka corria os olhos pelos participantes a procura de uma brecha. Precisava se livrar daquela sensação. Não importava o risco de ser eliminado do exame Hunter.

Logo encontrou distração. Nada que lhe trouxesse satisfação, apenas uma brincadeira de criança. Provocar os outros fazia parte de seu DNA, nunca perdia a oportunidade, não seria diferente porque se tratava do examinador. Em seguida, cruzou com um idiota iludido que achou que poderia matá-lo. Não durou um minuto.

Um grupo de pirralhos conseguiu despertar seu interesse, em especial um, destemidamente burro. Hisoka adorava petulância e aquele garoto misturava isso à incapacidade de medir perigo. Seria um ótimo adversário no futuro. Garantiria a luta.

Hisoka observou de perto a evolução do menino de cabelos esverdeados. Gon. Era um nome sem graça, mas fácil de gravar. Tinha se tornado seu próximo alvo, o brinquedinho que pegaria para si. Quando, enfim, lutou contra ele, vislumbrou um pouco do lutador que ele poderia se tornar. Esperaria.

Embora líquido, Hisoka dominava a arte de esperar. Por isso cultivava seu pomar com uma paciência singular, colhendo a fruta somente quando esta se encontrava no ponto perfeito de maturação. E por apreciar diferentes espécies de fruta, cultivava na mesma proporção.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

O nome lhe atravessou a mente como se uma mão violentamente tivesse puxado a memória para fora do esquecimento.

Naoko.

A mulher sem expressão... “Não! Não mais!” Ela tinha traços tão lindos quando fervia de raiva. Um olhar de quem poderia rasgar um pescoço com os dentes. A voz trêmula que falhava em se manter no mesmo tom. A respiração chiada. A maneira que seu corpo ficava paralisado antes de ser tomado pela fúria.

— Naoko. — O nome saiu da boca de Hisoka ao mesmo tempo em que Safina o pronunciou.

Safina abriu ligeiramente os braços enquanto se desculpava pelo atraso. Sorriu cordialidade. Esperou um pouco. Logo a irritação se dissolveu do semblante de Naoko e ele sorriu satisfação. Pôs a mão direita, suave, nas costas dela, guiando-a pelo amplo corredor do ducentésimo andar.

Naoko deslizava. Os olhos fitos no caminho, desviando-se apenas para encontrar os de Safina. O relógio dourado no pulso do tipo que não se comprava todo dia. O vestido com ares de peça única. A mão que continuava em suas costas vez ou outra corrigia uma mecha de seu cabelo que se desalinhava.

O tempo não desacelerou quando Naoko passou por Hisoka. Porque ela não o viu. Porque ele não moveu um músculo.

Parado, com sua cesta vazia, Hisoka observou Naoko desfilar ao lado de Safina. Ele tinha cultivado, outro havia colhido. Um sorriso estranho alargou seus lábios, mas durou poucos segundos. Não era como se tivesse perdido uma coisa para outra pessoa. A sensação parecia a de ser preterido.

Puxou o celular e ligou para Saito. Nada. Ligou mais uma vez. Nada.

Riu.

“Que idiotice... O que importa?” Deu de ombros.

Hisoka havia jogado os pensamentos sobre Naoko no lixo antes da água alcançar metade da banheira. Mergulhado nela, sua mente experimentava o vazio ofertado pelo silêncio. Sem lutas, sem presas, sem ele mesmo.

A irritação o tirou da água no primeiro toque. Um momento como aquele talvez nunca voltasse a acontecer em sua vida. Olhou com desprezo o aparelho celular e atendeu sem se dar ao trabalho de ver quem ligava.

— Peço desculpas por não poder atendê-lo antes, senhor Hisoka. Como posso ser útil?

Hisoka entregou o nome sem delongas.

— Sinto muito, mas as informações sobre a senhorita Peace são confidenciais.

— Meses atrás não eram.

— Disse bem, senhor Hisoka, não eram.

— Quanto você quer por elas?

— Nenhum dinheiro me faria desafiar a ordem do senhor Safina.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

— Não tem mais assuntos a tratar com Hisoka?

Naoko desviou a atenção da paisagem e focou em Safina.

— Por que está falando dele?

— Porque ele não tirou os olhos de você quando passamos pelo saguão.

— Eu não o percebi. — Naoko voltou a fitar a vista através da parede de vidro. Um sopro de desconfortou tocou seu rosto. — Tenho apenas uma dívida que logo pagarei.

— Não é prudente dever algo a um homem como Hisoka.

— Como Hisoka?

— Sim. Imprevisível, escorregadio, desequilibrado.

— Não tenho porque temê-lo. Pagarei a dívida e fim. — Naoko cruzou os braços e se virou para Safina. — Não foi para falar do Hisoka que você me chamou aqui.

— Só estou zelando pela sua segurança... — Safina respondeu suavemente. — Faz parte do nosso acordo.

— Eu sei. Vamos ao que interessa.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

Poucos andares abaixo. Outra parede de vidro. Outro olhar que buscava a paisagem. Talvez no mesmo tempo, talvez um pouco antes. O dedo fazendo círculos no botão do celular. Uma mão apoiada sobre o vidro. Um lábio preso pelo canino. A respiração no lento ritmo da irritação contida.

“Não vou perder o que é meu”

Um, dois e três troques. Uma, duas e três ligações. Um, dois e três dias sem sucesso. Procurando falar, procurando encontrar, procurando esbarrar. Quis apenas ver, porém nem isto conseguiu. Ela era uma joia guardada dentro de um cofre com sistema anti-furto.

Hisoka descobriu que Safina não só era uma pedra em seu sapato, mas também o sócio majoritário da empresa por trás da Torre Celestial e como tal mandava e desmandava naquele lugar como ninguém. Ninguém o enfrentava, contrariava, queria se tornar desafeto dele. Porque ele era um inimigo difícil de derrubar, porém, mais ainda, porque Safina era um aliado valiosíssimo para se ter ao lado.

Naoko continuou a ignorar as ligações. Hisoka desistiu na segunda chamada do quarto dia. Muito tempo perdido numa tática falha. Furaria o bloqueio. Mas o convite chegou antes...

Uma noite de gala para os lutadores que mais geravam apostas. Uma forma de aproximar apostadores de seus “cavalos”. A simpatia entre um homem e o animal no qual apostava criava um vínculo capaz de multiplicar os valores das apostas. Juntar uma porção de milionários a seus bichinhos da sorte num momento de descontração era a chave para alavancar o volume de dinheiro.

Vinte e duas horas. Mansão Coeur de Lune. Quinze cavalos e trinta e cinco indivíduos com mais de 7 dígitos na conta bancária. A ideia de Safina se desenrolava em êxito. O ambiente cheio de risos, bebidas e conversas de “amigos de infância” era exatamente como ele havia previsto. Com certeza o dia seguinte apresentaria o resultado esperado.

Naoko sabia bem que aquele tipo de reunião tinha potencial para se tornar desagradável em estalar de dedos. Uma porção de ricos arrogantes bebendo era como pavio esperando ser lambido pelo fogo de um fósforo.

Havia visto isso muitas vezes em sua casa. Não participava das reuniões por proibição de sua mãe, mas sempre ouvia dos empregados sobre as indiscrições e as palavras venenosas que escorriam da boca dos convidados.

— Você é a acompanhante do Safina!

Loiro, alto, branco do colarinho ao sapato, pinta no canto esquerdo da boca, castanho nos olhos. E um tom de voz que endureceu o olhar de Naoko.

— É você, não é? A lutadora.

Um minuto morreu em silêncio.

— Naoko! — Ele estalou os dedos. — Naoko Peace! — Estendeu a mão direita. — Isao Oshiro. — Ele esperou numa insistência muda. Sorriu com deboche e apanhou uma taça na bandeja do garçom que passou ao lado. — Então é verdade que você é propriedade dele.

— Do que está falando?

Ele tomou um gole de vinho.

— Que você é amante do Safina... Tudo bem! — Isao prosseguiu ao perceber a intenção de Naoko responder. — Eu não tenha nada a ver com isso. Fui um idiota. Podemos começar de novo? — Empertigou-se e deu um passo em direção a ela. — Sou Isao Oshiro, — diminuiu a voz. — e eu quero sair dessa festa com você.

Naoko o impediu de beijá-la, empurrando o peito dele. O gesto, medido para ser discreto e eficaz, abriu pouco espaço entre eles. Logo sentiu Isao apertar sua mão contra o próprio peito e se aproximar novamente.

— Filho da puta. —  Naoko sussurrou.

— Você ganha mais tendo dois homens ricos.

— E você não perde a vida se sair da minha frente agora.

Isao sorriu como que diante de um desafio.

— Hoje é seu dia de sorte. Pode escolher nas mãos de quem quer morrer. — Hisoka mantinha os lábios apertados em uma linha fina que brincava entre o sorriso de ironia e o de ameaça. — Então?

— Não se meta, Hisoka!

— Estou entediado, Naoko. Mandar alguém para o inferno seria ótimo para matar o tempo. — Puxou uma carta e afundou na mão de Isao que ainda segurava a de Naoko. — Suma!

O barulho da taça se estilhaçando no chão não foi ouvido. Tampouco o gemido de dor que saiu da boca de Isao. Para quem estava ao redor, o sangue era fruto do corte feito pelo vidro.

 

♥ ♠ ♣ ♦

 

Naoko caminhou ao lado de Hisoka. Ignorá-lo resultaria em tê-lo em seu encalço o resto da noite e isso era tudo o que ela não precisava.

A varanda lateral da mansão ficava em frente a um jardim. No meio dele havia uma fonte com dois anjos, cada um carregando um cântaro do qual jorrava a água que tremulava sob o luar do outono.  

Naoko varreu o lugar com o olhar, pouco à vontade com o silêncio e a distância do salão principal. Era ali que lutariam com Hisoka até a morte?

Ele a fitou longamente.

Sua mente tomou nota dos detalhes: do vestido azul safira que cobria de forma completa os seios e subia para abraçar o pescoço, mas em contrapartida deixava as costas completamente nuas, exceto pelo cristal que pendia, solitário e brilhante, sobre aquele vale de pele clara. O cabelo, preso num coque, permitia apenas uma mecha de franja ter liberdade.

— Vamos começar de uma vez.

— Aqui ainda dá pra escutar um pouco da música.

— Sim. O Réquiem da Morte — Naoko disse alcançando a sandália para desamarrá-la.

Hisoka a impediu, tomando sua mão. Contornou a cintura de Naoko com o braço, repousando a mão esquerda pouco acima do quadril sobre a pele nua.

— O que está fazendo?

— Você me deve uma dança por fugir de mim.

E ele a conduziu.


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Notas finais do capítulo

Até a próxima!



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