Open wounds, closed heart escrita por Nekoclair


Capítulo 32
Dia 32


Notas iniciais do capítulo

Olá!! Prontos pro último capítulo especial? Pois é, nem eu.



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24/11/2017

 

Hoje foi o fatídico dia em que cumpri uma promessa antiga.

Fui para a casa de Victor com as borboletas agitadas em meu estômago, a perspectiva do que estava prestes a acontecer ainda soando inacreditável aos meus ouvidos. Durante o caminho, eu repeti “Indo. Casa. Victor.” várias vezes, em diversas ordens que não deixaram de forma alguma aquelas palavras aleatórias mais compreensíveis.

Elas não representavam uma ideia racional, ou um expressão verbal que tinha por regra que carregar consigo um sentido.

Aquelas palavras não carregavam razão. Carregavam emoção.

Levando em meu peito minhas confusões, meus medos e minha ansiedade, além de uma amarga esperança que eu era incapaz de conter, apertei a campainha. Ao meu lado, Vicchan rodava meus pés, cheirando todo e qualquer canto que conseguisse alcançar. Olhei em sua direção por alguns segundos, apreensivo quando lembrei da proposta de Victor de tentarmos aproximar nossos cachorros. Sinceramente, eu não via como aquilo podia dar certo, mas valia a pena a tentativa; ou, ao menos, foi disso que Victor me convenceu depois de vinte minutos de argumentação, que foi quando apontei a ele todas as coisas que podiam dar errado. Ainda assim, sua teimosia venceu a minha.

Mas já que teimosia não é sinônimo de resultados, é claro que a primeira coisa que Victor teve que fazer ao que abriu a porta foi segurar Makkachin, que veio correndo em nossa direção, agitado e com cara de poucos amigos, seu pelo eriçado enquanto ele latia.

Passado o susto inicial e alguns pedidos de desculpas, Victor trancou Makkachin em seu quarto, apesar de eu ter insistido em ligar para minha mãe, para que ela viesse buscar o Vicchan. A ideia de Makka ficar preso me parecia errada, pois ele estava em sua casa e era um direito seu ser um pouco territorialista. Victor, porém, disse que já estava mais do que na hora do seu cachorro perceber que aquele tipo de comportamento não seria mais tolerado.

— E eu odiaria perder a chance de conhecer melhor o Vicchan por causa da malcriação do Makka — ele complementou.

Ainda ao som de latidos, segui atrás de Victor casa adentro mesmo que ainda incerto se aquilo tudo estava certo. Eu não conseguia imaginar que razões eram responsáveis por aquela atitude do Victor em relação ao seu cachorro, mas eu fiz uma anotação mental de perguntar na primeira oportunidade. Pois, se tinha uma coisa que eu tinha certeza, é que algo tinha acontecido.

Andando atrás de Victor, segurando firmemente a correia da coleira de Vicchan para que ele não se afastasse, observei em silêncio a pouca mobília que havia na pequena casa que dava a sensação de inabitável. Não que Victor não estivesse tentando dar vida ao ambiente, espalhando alguns itens aqui e acolá, mas ainda assim não havia sido suficiente.

Aquele não era exatamente o tipo de moradia que eu esperava dele, ainda mais para alguém que passava tanto tempo em casa.

Com um gesto, Victor pediu para que eu me sentasse no sofá.

— Pode soltá-lo. O coitadinho deve estar com sede. Eu vou buscar um pouco de água para ele. — Victor anunciou assim que me acomodei entre as almofadas. — E você, o que vai querer?

Eu terminava de soltar Vicchan, que fugiu para longe assim que teve a chance, quando a pergunta alcançou meus ouvidos. Olhei para cima, encontrando seus olhos em mim, ele ainda a espera de uma resposta.

— Não precisa — eu recusei, educadamente, negando também com um movimento sutil da cabeça.

— Refrigerante?

— Não…

— Uma xícara de café, então? Ou você prefere chá? Ou quem sabe suco?

Victor estava junto da cozinha, arrumando uma vasilha com água. Vicchan veio rapidamente até ele, sedento, e Victor observou-o com um sorriso.

— Não precisa, Victor. Sério. — Falei, atraindo para mim novamente a sua atenção.

— Eu tenho limonada…

Percebendo que ele não desistiria tão fácil, rendi-me à sua teimosia e aceitei um copo da tal limonada. Victor sorriu, claramente satisfeito, e foi até a cozinha, retornando logo depois com dois copos.

Assim que se sentou ao meu lado, deixando uma distância considerável entre nós, ele se virou para mim e agradeceu.

— Estou muito feliz que você vai me ensinar a cozinhar! Estava ansioso por isso!

— Apenas coisas simples. E vou dar mais dicas do que realmente ensinar… Mas, antes, não se esqueça do que prometeu! Você disse que teríamos finalmente a nossa conversa sobre a sua oferta de emprego!

— Sim, sim. — Victor anuiu, reforçando a ideia de que não tinha se esquecido. Não que houvesse como, visto que eu fazia questão de o lembrar em toda oportunidade que surgia.

Mas iniciar esse tipo de conversa era sempre difícil, ainda mais quando Victor não parecia muito animado para começar a falar sobre fosse o que fosse.

Ficamos por alguns segundos em um silêncio desconfortável, no qual a sensação era de que ambos estávamos esperando que o outro rompesse a quietude. Vicchan voltou para o nosso lado, os pelos de sua boca molhados, seu pequeno rabo agitando de um lado para o outro, e imediatamente Victor começou a brincar com ele.

— Tão macio… — Ele afagou as orelhas do animal, que virou a cabeça ao sentir a carícia. Vicchan, porém, era um cachorro agitado, e logo saiu correndo a fim de explorar a sala de estar.

Percebendo que a tensão no ambiente havia se dissipado um pouco, aproveitei para dar início ao assunto.

— Então… Foi um amigo seu que te ofereceu o emprego?

Os olhos azuis de Victor viraram imediatamente em minha direção. Apesar de eu ter achado que ele não fosse ficar feliz por eu ter forçado a conversa, ele sorriu. Talvez ele tivesse mais dificuldade em trazer o assunto à tona do que falar dele em si.

— Chris. Nós nos conhecemos há bastante tempo. Ele era patinador, assim como eu, mas encerrou sua carreira pouco antes de entrar para a categoria sênior.

— Ele também se machucou? — Perguntei, começando a me questionar quão perigoso era aquele esporte. Eu não conhecia muito a respeito, mas nunca pensei que patinação artística fosse um esporte de risco.

Porém, meu palpite não podia estar mais errado.

— Ele descobriu que o coração dele não pertencia ao gelo. Ele gostava do esporte, mas não o suficiente para abandonar uma vida inteira para continuar com a carreira.

— E vocês continuaram a se falar?

— Claro! Ele é o meu melhor amigo. Inclusive, ele sabe de toda a minha situação, e vem me apoiando desde sempre.

Não vou mentir. Saber que havia alguém que era tão próximo de Victor mexeu comigo. Um gosto amargo tomou-me a boca mesmo que eu soubesse que sentir ciúmes era errado.

Eu não tinha, entretanto, tempo para aqueles sentimentos negativos e improdutivos, pois Victor continuou com sua história.

— Depois que eu me acidentei, o Chris veio até a Rússia me ver, e quando viu o estado em que eu estava por causa do ferimento e da pressão toda da mídia, ele me arrastou para os Estados Unidos. Então, nós começamos a morar juntos.

— Espera. — Pedi, as palavras por ele proferidas lentamente se organizando em sentenças compreensíveis ao meu cérebro lento. — Vocês moram juntos? Aqui? Pensei que morava sozinho!

— Eu moro. Bem, eu e Makkachin… — Victor disse aquilo como se fosse óbvio, o que claramente não era. Ele então se explicou. — Eu morava, até uns dez meses atrás. Mas o Chris começou a namorar e eu senti que estava atrapalhando, se me entende.

— Oh. — Foi a coisa mais inteligente que eu consegui dizer. Uma parte de mim comemorava, e outra tentava colocar ordem em meus sentimentos.

— Ele até disse que eu não precisava, mas eu sabia que tinha que parar de depender tanto dele. E, já que Yakov também havia começado a me dar um pouco mais de espaço, achei que era uma boa oportunidade.

— E os seus pais não se importaram de você ir para tão longe? — Percebi então que estava fazendo muitas perguntas, que nada tinham a ver com o assunto do emprego. — Ah, desculpe.

Victor pareceu compreender na hora a razão por detrás de meu pedido de desculpas.

— Tudo bem. É minha vez de te contar uma história. — Victor sorriu, e eu sorri de volta, um calor surgindo em meu peito da forma que sempre surgia quando Victor olhava para mim com aqueles olhos tão gentis.

— Por causa da minha profissão, eu não passava mais muito tempo em casa. Eu estava sempre treinando ou participando de alguma competição, e os constantes telefonemas nunca eram suficientes. Afinal, não é a mesma coisa que conversar pessoalmente. Quando contei para minha mãe que estava me mudando ela ficou bem decepcionada, porque achou que eu ia finalmente voltar para casa.

Ele então falou sobre como eles brigaram, pois ela não aceitava que ele a deixasse sozinha. Ele não contou dos detalhes, mas com certeza a cena não foi bonita.

— Um segundo abandono, — ele abaixou a cabeça e olhou para as mãos que, fechadas em um punho, mostravam-se tensas — primeiro o marido e depois o filho…

Fiquei em silêncio, observando preocupado a maneira como seus ombros balançavam levemente. Ele não parecia estar chorando, mas parecia estar fazendo um enorme esforço para segurar os soluços. Deixei que ele se acalmasse enquanto, internamente, eu me culpava pela má escolha de assunto.

Ao que senti uma mão se apoiar em minha perna, olhei para Victor, que sorria apesar dos olhos levemente vermelhos.

— Está tudo bem. — Ele falou, numa voz firme. — Isso ficou no passado.

Era, porém, difícil para mim aceitar aquela situação.

— Você não gostaria de falar com ela novamente?

Ele coçou a cabeça, seus dedos enrolando nos fios prateados. Ele puxou o cabelo para trás, para longe do rosto, e então suspirou, suas sobrancelhas curvando-se imediatamente para baixo.

— Tenho medo de como ela reagiria.

— Mas você gostaria...? — Perguntei, envolvendo sua mão com a minha, que ainda descansavam em minha perna.

Ficamos em uma silenciosa troca de olhares por mais tempo do que era provavelmente necessário. Fiz questão de manter meus olhos firmes nos seus, deixando claro meu desejo por uma resposta.

— Sim… — Ele murmurou por fim, fugindo sua mão do meu toque assim como seu olhar, que ele jogou às paredes. — Mas não sei como.

Vendo que o ambiente havia ficado desconfortável por causa da minha insistência, sugeri que nós déssemos uma olhada na receita que estaríamos fazendo hoje para levar, amanhã, no lanche comunitário. Victor rapidamente se levantou e buscou o computador, seus olhos novamente brilhantes e serenos.

— Aqui. — Victor virou o notebook em minha direção para eu pudesse ver também o que estava em sua tela.

— Uma torta de frango e palmito, hmm… Parece boa. Não conhecia esse site.

— O Chris que me passou. Ele disse que têm receitas fáceis e deliciosas.

Passei os olhos rapidamente pelas instruções, que estavam escritas de maneira clara e prática. Olhei então em direção ao Victor, que me aguardava com olhos cheios de expectativa.

Com um sorriso, perguntei:

— Vamos?

 

—--

 

Quando Victor disse que não sabia se virar na cozinha, imaginei que ele botaria fogo no fogão, sujaria o teto de comida ou alguma dessas coisas que Leo normalmente faria. Porém, não havia nem nível de comparação. Claro, ele tinha suas dificuldades; mas seu problema parecia ser mais inexperiência e falta de confiança do que qualquer outra coisa.

Enquanto eu batia a massa, olhei por cima do ombro e vi Victor observando uma colher atentamente. Ele jogou um pouco de sal no frango e então mexeu o conteúdo na panela até que os farelos brancos desaparecessem. Então, ele encheu mais uma colher, esvaziando-a pela metade antes de jogar mais um pouco na mistura. Assim que provou, seus olhos, sérios, foram se estreitando, deixando óbvio que ele não tinha muita certeza do que estava fazendo.

— Algum problema aí?

— Eu não sei. Talvez? — Ele disse, em tom de interrogativa.

Aproximei-me e dei a ele a massa, para que ele misturasse em meu lugar, e peguei uma colher limpa para provar como estava o sabor do frango. Victor observou atentamente, evidentemente ansioso. Quando limpei a colher, ele imediatamente perguntou:

— E então?

— Você chegou a provar, certo?

— Sim.

— O que achou?

— Que falta alguma coisa. Por isso, joguei um pouco mais de sal, mas não resolveu o problema.

— Sal não é o único tempero que existe. Por que não tenta alguma coisa diferente?

— Porque eu não sabia e só tenho sal — ele disse, embaraçado.

Suspirei e estreitei os olhos. Então, suspirei uma segunda vez, ciente de que era em parte minha culpa. Eu devia tê-lo acompanhando ao mercado…

Fui até a geladeira e olhei o que tínhamos ao nosso dispor. Como esperado, não havia quase nada; porém, havia o suficiente. Apanhei um vidro de ketchup e joguei um pouco, misturando-o ao molho de tomate que até então era o único responsável pelo sabor do frango desfiado. Victor observava tudo muito compenetrado.

— Apenas não jogue muito. Ketchup tem um gosto forte, além de adoçar a comida.

Ofereci então um pouco da mistura para Victor, levando a colher ao seu rosto. Ele abriu a boca e colocou tudo para dentro, olhando diretamente em meus olhos por todo o tempo mesmo depois de se afastar. A cena foi no mínimo embaraçante, e eu começava a achar que Victor fazia aquele tipo de coisa de propósito, para ver como eu reagiria. Sinceramente, não sei o que pensar, e nem sei se quero pensar alguma coisa.

Quando terminamos de cozinhar o frango, despejei a massa na assadeira untada e Victor espalhou o frango na travessa, que foi coberto por mais um pouco de massa. Jogamos um pouco de queijo por cima e levamos ao forno.

— Pronto! Agora é só esperar. — Anunciei, virando-me na direção do Victor.

— Que bom. — Ele sorriu largamente. — E então, professor? O que achou? Fui bem?

— Hm, professor é um pouco demais… — murmurei, embaraçado.  — Você foi bem. Com prática, vai pegar a manha rapidamente. Apenas não tenha medo de errar.

Victor agradeceu e fomos para o sofá, já que tínhamos que esperar a torta assar. Encontramos Vicchan deitado sob as almofadas em um dos cantos do sofá. Sentamo-nos com ele, próximos um do outro para que o cachorro não tivesse seu sono perturbado. O ambiente estava agradável, sereno, e o silêncio que se instaurou era reconfortante.

Percebi então que aquele era um bom momento para retomar o assunto do emprego.

— Então… O que vai fazer quanto à proposta do Chris?

Em resposta, ele imediatamente franziu o cenho, seu olhar desconfortável.

— Não sei.

— O que você quer fazer?

— Eu realmente não sei.

Victor olhava para os lados, sem dúvida por não desejar ir de encontro aos meus olhos. Seus dedos apertavam o tecido de sua calça, tensos, amarrotando o tecido. As expressões em seu rosto eram-me familiares, e eu já havia as visto várias vezes nos últimos meses, mais especificamente sempre que ele se via encurralado por seu medo de fracassar.

Um suspiro fugiu por entre meus lábios e Victor imediatamente se desculpou, dizendo que eu já devia estar cansado de sua indecisão.

— Não é isso. — Eu balancei a cabeça de um lado ao outro. — É só que eu acredito que você consegue. Eu entendo que você tem medo de falhar, mas eu realmente acredito no seu potencial.

Seu corpo gradualmente relaxou. Quando ele finalmente se viu disposto, ele se virou em minha direção e piscou algumas vezes, seu rosto levemente corado. Ele levou uma mecha de cabelo para trás da orelha e desviou os olhos dos meus. Desta vez, porém, seus olhos possuíam um brilho distinto.

— Mesmo? — Ele perguntou, timidamente.

— Claro!

Abri um sorriso confiante, a fim de mostrar que sim, eu acreditava nele. Victor virou novamente em minha direção, com os mesmos olhos brilhantes.

— Então… Você acha que eu deveria tentar?

Ele parecia um tanto incerto, e eu não o culpava por desejar uma opinião alheia. Entretanto, eu também sabia que minha resposta influenciaria demais sua decisão, e isso não era algo que eu podia deixar acontecer.

— A minha opinião não importa. — esclareci, rapidamente.

Victor franziu as sobrancelhas, claramente insatisfeito.

— Se sua opinião não importasse, eu não teria perguntado.

— Sim, mas eu não posso te dizer o que fazer. Até porque só você sabe realmente quais são os seus limites. De nada importa em acreditar no seu potencial, se você não tem confiança em si mesmo.

Victor caiu em silêncio, suas expressões surpresas, seus lábios entreabertos. Eu tampouco disse qualquer outra coisa, até porque não havia mais nada que eu desejasse falar.

Nesse meio tempo, Vicchan acordara e pediu colo, dando a Victor uma desculpa para se manter quieto por mais algum tempo. Porém, o cachorro logo se cansou e pulou para o chão, a fim de mais um pouco de água, o que tornou a deixar o ambiente desconfortável.

Eu olhava de esguelha na direção do homem ao meu lado, porém, suas expressões continuavam as mesma. Ele parecia indeciso, mas ao mesmo tempo pensativo. Mais que tudo, ele parecia pronto para adiar aquele assunto o máximo que conseguisse.

O silêncio só foi interrompido quando um alto estrondo alcançou nossos ouvidos: o bater de uma porta. Victor olhou para mim imediatamente, e eu para ele, ambos perguntando o que teria sido aquilo. Então, Victor subitamente se levantou em um pulo, seus olhos bem abertos e suas sobrancelhas erguidas.

— Makka!

A realidade bateu com força em ambas as nossas caras, acordando-nos para a vida.

Ele saiu correndo em direção à porta do quarto, comigo logo atrás. Encontramos a porta aberta e um Makkachin indo sorrateiramente na direção de Vicchan, seu rabo levantado e os dentes à mostra. Ele rosnava baixinho enquanto caminhava lentamente para frente, pronto para dar o bote.

O que nem eu ou Victor esperávamos era que Vicchan fosse confrontá-lo.

Quando Makkachin chegou ameaçadoramente perto de si, Vicchan latiu firmemente, impondo-se. No mesmo instante, Makkachin estagnou, desconfiado da pequena bola de pelos que tinha metade do seu tamanho e que, ainda assim, ousava enfrentá-lo.

Vicchan latiu mais algumas vezes, os pequenos dentes afiados a mostra. Eles ficaram em uma tensa troca de olhares, sem que nenhum deles desse um passo adiante. Enquanto isso, nem Victor, nem eu sabíamos o que fazer. Não sabíamos intervíamos ou observávamos apenas.

Depois do que pareceram horas, Makkachin abaixou a cabeça e se aproximou do outro cachorro. De repente, eles começaram a se cheirar, rodando em círculos em torno um do outro, ambos ainda muito desconfiados um do outro. Quando Makkachin enfim sossegou, ele seguiu na direção da vasilha da água enquanto Vicchan voltou a se deitar, pronto para mais uma soneca, desta vez junto à parede.

Nós, enquanto isso, apenas olhávamos abobados o desenrolar daquela trama, aparentemente nenhum de nós crendo que tudo havia realmente se resolvido tão bem.

— O que foi isso? — Perguntei, confuso.

— Acho que agora eles são amigos. — Victor sorria e parecia realmente feliz.

 

—--

 

O tempo passava lentamente. No fundo, o ruído da televisão confortava-nos com sua presença, seu chiado acolhedor. Vez ou outra, eu olhava para a tela e fazia algum comentário sobre o programa culinário que havíamos decidido ver, apesar de agora não darmos a ele muita atenção. Em um canto, junto à parece, Vicchan e Makkachin dormiam sossegados, enrolados e formando uma grande bola de pelos.

Ao meu lado, Victor olhava atentamente as fotos que havia acabado de tirar dos dois cachorros adormecidos, um sorriso em seus lábios. Se não fosse eu para impedi-lo, ele provavelmente ainda estaria de joelhos diante deles, fotografando-os como se não houvesse amanhã. Enquanto Victor se distraia com seu celular, eu folheava um livro que eu havia encontrado sobre a mesa de centro.

Não me entenda mal. Eu normalmente não tenho o hábito de mexer nas coisas dos outros, afinal isso é invasivo e desrespeitoso. Entretanto, ao ver a capa de tonalidades escuras de preto e verde, minha mão se moveu sozinha. Isso porque aquele era o meu livro, o mesmo que eu o havia emprestado há alguns dias.

Um marca-páginas mostrava que ele já alcançava a metade da trama, e isso me fez sentir vontade de perguntar o que ele estava achando da história. Eu, porém, contive-me, e o soar de um alarme foi suficiente para que eu esquecesse o assunto.

Nós rapidamente nos levantamos e nos direcionamos a cozinha, cientes de que a torta havia acabado de cozinhar. Antes de tirá-la do forno, conferi se estava realmente pronta e então a coloquei sobre a bancada para que esfriasse, pois não podíamos desformá-la antes disso. Até lá, nós nos ocupamos arrumando a cozinha e trocando conversa fiada.

Quando finalmente desformamos a torta, o resultado foi de encher os olhos. Sem nenhuma rachadura na massa, senti-me orgulhoso pelo trabalho bem feito. Assim que virei na direção de Victor, pronto para fazer algum comentário cujo conteúdo nem mais me recordo, fui pego de surpresa ao que o vi fotografar a torta.

— Não vai me dizer que você também posta comida no Instagram. — Falei, recordando-me imediatamente de um certo amigo meu que tinha esse hábito.

— O quê? Não! Estou mandando para o Chris. Ele pediu para ver quando ficasse pronto.

— Oh… — Falei, enquanto me apoiava na bancada. Olhei para a torta e de repente me vi com uma ideia. Okay, não era um boa ideia. Na verdade, ela era tudo menos boa. Eu estava cometendo um erro? Talvez, bem provavelmente. Mas isso não me impediu ainda assim. — Por que não manda também para a sua mãe?

A reação que recebi era no mínimo esperada.

Victor desviou os olhos do celular e os direcionou para mim, suas expressões confusas como as de alguém que cogitava ter escutado errado as palavras que chegaram até os seus ouvidos.

— Para a minha mãe? — Ele perguntou, talvez desejando se certificar de que não fora um mal-entendido.

— Sim. Comida é um ótimo quebra-gelo.

— Verdade, mas… Não sei. — Ele olhou para os lados, suas sobrancelhas franzindo simultaneamente. — E se ela não responder?

— Você não vai saber se ela vai responder se não tentar.

Para ser sincero, eu compreendia perfeitamente a sua insegurança. A perspectiva de tentar uma reconciliação apenas para ser ignorado pela outra parte com certeza não é um sentimento, um medo, fácil de se lidar.

Durante algum tempo, Victor pareceu pensativo. Entre seus dedos, o celular se encontrava firme. De repente, ele tornou a se virar em minha direção e suas dúvidas haviam desaparecido (ou se escondido muito bem).

— Okay.

E ele então voltou a digitar, guardando o celular no bolso rapidamente assim que pressionou o botão “enviar”. As expressões em seu rosto mostravam-se agitadas, e seu nervosismo era aparente. Os dedos de sua mão tamborilavam em sua perna, mas aquilo pareceu irritá-lo, pois ele fez questão de se controlar.

Quando se deu conta de que eu o observava, ele se viu na obrigação de oferecer uma explicação.

— Se eu ficar com ele na mão, vou ficar ainda mais ansioso pela resposta dela.

— Não, sim. Eu entendo. — Pisquei algumas vezes, percebendo que eu havia passado uma impressão errada ao ficar o encarando. — É só que eu também faço isso. Guardo o celular no bolso e finjo que ele não existe.

Victor sorriu, e eu sorri de volta. Juntos, rimos.

 

—--

 

Quando foi hora do adeus, Victor perguntou se eu queria que ele me levasse em casa.

— Ainda é cedo. O Sol nem se pôs ainda, e eu não moro tão longe assim. Uma caminhada me fará bem. Além de que, Vicchan adora andar.  

Instintivamente, olhei de relance para o pequeno poodle que estava junto aos meus pés, de volta à coleira. Vicchan latiu e balançou o seu rabicho, como que dizendo que mal podia esperar pelo passeio até em casa. Tanto Victor, quanto eu sorrimos ao observar o pequeno animal.

— Tudo bem, então.

De repente, caímos em silêncio. E, estranhamente, este estava me incomodando.

Durante toda a tarde que passamos juntos, em momento algum pensei na nossa despedida. Okay, nós nos veríamos bem em breve; no dia seguinte, para ser mais exato. Por isso, talvez pareça bobagem que, enquanto eu olhava para ele, eu já sentisse falta de sua companhia, mas era exatamente o que estava acontecendo.

Compartilhamos tantos momentos agradáveis naquele dia, e foram tantas as conversas descontraídas… O tempo passou rápido demais. Eu não queria dizer adeus. Sem saber bem o que falar, eu começava a me sentir embaraçada enquanto o encarava.

— Yuri, obrigado — Victor foi quem rompeu o silêncio. Ele sorria gentilmente, seus olhos entreabertos e as expressões em sua face serenas. — Eu não sei o que eu teria feito sem você.

— Sem problemas. Apenas não vá esquecer a torta amanhã. E, ahm… Eu queria ter te ajudado mais com, bem, os outros assuntos também.

— E ajudou! — Ele afirmou, rapidamente. — Eu mandei mensagem para a minha mãe e, okay, ela ainda não respondeu, mas poxa isso já foi um grande passo! Além disso… — Ele olhou para o lado, para o teto, para todos os lugares menos para mim. — Hm, bem… Eu acho que vou tentar trabalhar pro Chris...

Ao ouvir aquelas palavras, um sorriso largo brotou em meus lábios. A euforia em meu peito cresceu e se multiplicou até saturar minhas emoções.

— Sério?! — Exclamei, sentindo que minha voz havia subido um oitavo, mas não me importei ainda assim.

Victor anuiu, com um sorriso sem graça.

— Isso é muito bom!

— Graças a você — ele gesticulou em minha direção, timidamente.

Minha reação foi fazer ruídos que carregam em si nenhuma razão, mas cujo sentido era universal: “Lá vamos nós de novo.”

— Eu já disse... É tudo você! Você é incrível! Vai dar tudo certo. Não tem como não dar. — Minha voz provavelmente soava mais animada do que necessário. Porém, eu não conseguia me importar.   

Diante de um Víctor corado, vi meu sorriso alargar-se ainda mais. Eu gostava daquela expressão em seu rosto. Era adorável.

Ficamos mais um tempo em silêncio, apenas trocando olhares de vez em quando, ambos nitidamente embaraçados diante do outro. Makkachin surgiu por detrás do Victor e empurrou seu focinho contra o do Vicchan. Eles pareciam ter realmente se tornado bons amigos, e eu já via que teria que marcar um encontro pra eles se verem algum dia.

Quando retornei minha atenção ao Victor, percebi que ele olhava para o chão, os seus olhos entreabertos, suas expressões sérias, cheias de expectativa. Ele então olhou em meus olhos, e senti meu coração gelar de nervoso.

Ele então se aproximou e me deu um beijo no rosto.

Perante o gesto inesperado, fui incapaz de conter meu embaraço. Mesmo depois dele se afastar, eu ainda podia sentir o calor e a maciez dos seus lábios contra a pele de minha bochecha. Cobri com uma mão o local assombrado pela lembrança daquelas sensações, desejando impedir que elas sumissem. Meu coração batia acelerado e eu tinha certeza de que meu rosto estava completamente ruborizado; meu único alívio era saber que eu não era o único. Victor olhava do chão para mim, aparentemente incerto de onde fixar os olhos.

Pensei em dizer algo. Algo inteligente. Algo não comprometedor. Algo que desviasse nossas atenções do que havia acabado de acontecer. Algo que tornasse o ambiente menos embaraçoso.

— Tchau, — foi tudo que consegui dizer, porém.

Victor sorriu timidamente, aparentemente tão incerto quanto eu de como proceder. Ele acenou e fechou a porta.


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Notas finais do capítulo

Olá, pessoas lindas. O que acharam? Eu sei, eles quase não cozinharam. É que... sabe... Eu não sou uma cozinheira muito boa......... Okay, na verdade estou criando desculpas. Eu só achei que ia ficar muito cansativo e desnecessariamente grande, mas espero que tenha dado para matar a vontade, pelo menos. ^^' (Mas não menti sobre não saber cozinhar. Favor, não seguir qualquer dica "culinária" desta fic. Não quero ser responsabilizada por nenhuma dor de barriga.)
Bem, é isso. Amanhã tem mais! ♡



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