Lucille - A Pedra Nihil escrita por Karolamd


Capítulo 2
Lucille


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Lucille estava sentada sobre a cama, as pernas cruzadas e o olhar atento em direção a única janela do quarto. Ela pensou em vasculhar o futuro para saber o que aconteceria, mas eram tantas variáveis, e tantos pequenos acontecimentos que poderiam mudar tudo, que Lucille acabou desistindo. O pequeno relógio digital no criado-mudo, onde as horas brilhavam em um LED esverdeado, marcava duas horas da madrugada. A menina estava na mesma posição há quase uma hora e meia.

As visões de Lucille sempre eram rápidas, desfocadas, e a chegada delas era imprevisível, como sonhos. Nos futuros que ela olhou, o homem dos olhos gélidos nunca tinha boas intenções. A arte de observar os acontecimentos vindouros era limitada até mesmo para pessoas como Lucille, cujo pode extraordinário. Havia um ponto no futuro onde ele simplesmente não existia de fato, um vazio onde não se podia olhar. Até onde a bruxa conseguia ver, ou ela seria capturada, ou escaparia, mas os acontecimentos que levariam para sua sorte ou desgraça eram tão intrincados e impossíveis de controlar, que não havia outra opção além de contar com os acasos.

Lucille soltou o ar. A cidade lá fora estava adormecida e em completo silêncio. Era fácil acreditar que, por ter os poderes que tinha, a garota não se assustava ou sentia medo, mas a bruxa sempre fora ensinada a ser confiante, não descuidada. Se era possível jogar dentro da segurança, ela o faria, não só por si mesma, mas pelos humanos ao redor.

Quando ela finalmente se mexeu, foi em direção ao banheiro, onde usou magia para remover sua maquiagem, e entrou em um pijama de flanela confortável. Pegou um dos livros na pilha ao lado do relógio, se embrenhou sob as cobertas e o abriu. Pela consulta que fizera no futuro, nada aconteceria enquanto ela estivesse no hotel, pelo resto da madrugada estaria segura. Pensou que no outro dia, em vez de seguir para o Paraná, como pretendia fazê-lo, ela continuaria em Santa Catarina, seguindo em direção ao sul, para, quem sabe, atrasar um pouco seus perseguidores e ganhar algum tempo para pensar no que fazer.

Lucille começou a ler a "Mitologia Brasileira e suas Criaturas", enquanto uma fina chuva começava a cair lá fora.

...

— Senhor! - Disse a voz estridente e hesitante de uma criaturinha infeliz e feiosa – Nós a encontramos. - Seu nariz de tamanduá suava na ponta.

— Onde? - Perguntou o homem sentado em uma poltrona de veludo escuro, ele tinha seus olhos azuis claro em um ponto um pouco além do ser deformado a sua frente.

— Ela está perto, como nossa vidente indicou, numa cidade chamada Mafra. Devemos ir até ela? - Perguntou, sua postura denotava total submissão.

— Não, não hoje. - Disse o homem, finalmente pousando seus olhos na pequena criatura – Ela provavelmente já pressentiu o perigo, vamos esperar um pouco mais. Não a percam de vista. - Terminou fazendo um leve gesto de enxotar, ao que seu servente se foi. De seu colo ele puxou um colar com contas avermelhadas como rubis, que emitia um brilho fraco. Sorrindo com uma distorcida satisfação, o homem se levantou. - Aproveite a sua liberdade enquanto ela durar, bruxa. - Soltou para a sala vazia, sentindo uma versão maléfica de felicidade.

...

Quando o dia lá fora raiou, Lucille despertou em um salto, o livro que caíra em seu rosto quando ela apagou, escorregou e bateu no chão. Ela não pretendia ter adormecido, mas estava cansada, passara duas semanas sem dormir. Ela não tinha um ritmo de sono como o dos humanos, mas até mesmo para ela quatorze dias insones era muito.

A bruxa saiu da cama, foi até o banheiro de ladrilhos brancos e tão neutro quando era possível. Refez sua maquiagem, ato que, ajudado pela magia, não levava mais do que dois minutos. Lucille fez com que seus livros desaparecessem, assim como seu computador. Mal tivera ânimo para olhar qualquer notícia na noite anterior.

Enquanto ela descia as escadas de madeira, reparava em seus arredores, os pequenos corredores em cada andar que ela chegava, nos tapetes borrachudos nas portas, um típico hotel de cidadezinha. Seguiu até a recepção. A mulher atrás do balcão tinha uma aparência quase maternal, mas, apesar disso, Lucille reparou que o computador que ela vinha usando estava aberto em uma página do youtube, e o clipe de "du hast", do Rammstein estava pausado. A bruxa sorriu e entregou a chave, procurando pelo cartão de crédito em sua mochila.

O dia continuava chuvoso, e poças se formaram ao redor da calçada do hotel, criando uma espécie de fosso circundando a construção. Lucille cogitou usar sua magia para simplesmente aparecer em outro lugar, mas essa era uma atitude que sua mãe provavelmente desaprovaria. "Vai chamar a atenção, Lu", diria ela "Você acha que ninguém vai reparar, mas hoje em dia existem câmeras em todos os lugares.". A garota não poderia discordar.

Sentindo os pingos gelados da chuva em seu rosto ela pescou o guarda-chuvas da mochila, e começou a caminhar pela mesma rua que pela qual viera. Alcançou os fones e procurou pelo álbum Live Through This. Caminhou com rapidez. Assim que chagasse a próxima cidade ela sentaria em alguma padaria e usaria seu notebook para procurar por uma direção a seguir, um lugar que precisasse dela.

A garota sempre encontrava algum lugar onde crianças desapareciam misteriosamente, animais eram encontrados mortos, pessoas enlouqueciam sem qualquer motivo aparente. Esses casos geralmente acabavam com Lucille frente a frente com demônios, feiticeiros, criaturas do submundo que desejavam provar da carne humana ou apenas de seu profundo pavor. A cultura brasileira tornara seus monstros em contos para crianças, e hoje, quando tinham que lidar com criaturas como uma mula sem cabeça, ou saci, não sabiam o que fazer, ou achavam que não precisavam fazer nada. Monstros são monstros, não importa sua nacionalidade, e não era incomum que ela se deparasse com algum ser saído da cultura oriental ou europeia perdidos no Brasil.

Lucille andou durante toda a tarde. Ela nunca pegava ônibus, ou aviões, gostava de ver os lugares por onde passava, e se valia de sua estamina sobrenatural. Foi assim, andando pelas cidades que ela encontrou a maioria das pessoas em apuros. Em geral o que saía em jornais ou sites da internet, eram as coisas grandiosas, mas os incidentes isolados, como teria sido o caso de Carla, ganhavam apenas notas de pêsames no diário local.

O lugar por onde ele passava agora era um cenário interiorano. Ruas de um asfalto mal cuidado competiam com as florestas que cresciam ao redor. Algumas casas surgiam e em geral eram parecidas. Feitas de alvenaria, com um só andar, e jardim na frente. Volta e meia Lucille encontrava um cachorro adormecido perto da grade dos portões de entrada da casa. Ela gostaria de ter um cachorro, mas sua vida nômade não era a melhor situação para um animal de estimação.

Por toda a extensão do dia, até a noite, a bruxa caminhou, ela não sabia, mas estivera sendo observada todo aquele tempo, não pelos olhos perversos daqueles que a queriam mal, mas por aqueles dos quais ela nunca ouvira falar, mas que a conheciam muito bem.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo...



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