O corvo era italiano escrita por Aiori Von Satts


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ^^



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“Você está em dieta, Matilda!”, dizia o anjinho, sentado no ombro esquerdo da mulher.

“O dia de hoje foi horrível! Aquele seu chefe infeliz te fez refazer o mesmo relatório quatro vezes porque não estava satisfeito com o tamanho da fonte, seu rímel acabou, a conta de energia venceu e você está com olheiras enormes! É uma pizza merecida”, rebateu o diabinho, confortavelmente deitado do lado oposto.

— É uma pizza merecida. — Repetiu, pagando o garoto entediado no caixa. Seu olhar franzido indicava que, sim, a loira parecia uma louca ali parada imaginando miniaturas de si ponderando cada ação.

Querendo um longo banho quente antes de consumir aquela bela — e calórica, acrescentou o anjo — refeição, ela escolheu a embalagem para viagem e se dirigiu à estação metroviária.

Dez minutos depois, o metrô que pegava em todos os sete dias da semana parou, fazendo-a suspirar aliviada. Seus dedos batiam contra o papelão em antecipação.  Matilda mal podia esperar para se sentar em frente a televisão e, na companhia de sua pizza, descontar sua raiva assistindo luta livre.

— Um pouco de sorte, finalmente. — Comemorou ao encontrar um lugar vazio, sem aparentes velhos tarados ou bêbados inconvenientes por perto.

Colocando os fones de ouvido e inclinando levemente a cabeça contra o assento, ela tentou se desligar dos aborrecimentos cotidianos. E funcionou.

Logo suas pálpebras se fecharam e a última imagem que Matilda registrou antes de adormecer foi a de um pássaro preto a fitando ameaçadoramente.



— Um corvo? — Amélia ecoou, arregalando os olhos na direção do professor.

— Sim, querida.

— Mas… corvo?! Por que um corvo?

— Olhe para si mesma, Ame. Ninguém mais indicado para filmar um corvo do que você. — O tom de Marcos era mole, carregado de chacota, fazendo a pele clara da jovem cineasta se avermelhar.

As mãos tremiam quando ela alcançou a ave que, por um milagre, era amansada. Saiu sem nem mais uma palavra para o homem e, quando estava a alguns passos da entrada da faculdade, levantou a mão livre e direcionou o dedo médio para onde pensava ficar o departamento de artes.

“Quem ele pensa que é pra me julgar assim?”, “não é só porque eu uso roupas escuras que gosto de sair por aí carregando corvos e dançando sobre túmulos” e, principalmente, “desgraçado” rondou sua mente durante todo a caminho até o ponto de ônibus.

Amélia sabia que estava atrasada, mas o resto de otimismo restante em si dizia que, com certeza, se corresse, ela chegaria a tempo.

Ninguém pensou que o corvo odiasse corridas. Nem que fosse sair voando e bicar um senhor inocente no passeio. E muito menos pousar no topo da cabeça da jovem e aconchegar-se ali para dormir.

Quando, equilibrando o pássaro no braço e a mochila verde nas costas, ela finalmente chegou no local desejado, o ônibus dobrava a esquina, deixando-a para trás. Aquela partida doera mais no coração de Amélia que o recente término de seu relacionamento de três anos.

— Corvo 1, otimismo 0.

Alcançando seu celular para checar o horário, ela sorriu um pouco, quase renovada. Conseguiria pegar o metrô, pelo menos. “Vai demorar mais e parar mais longe, mas antes isso do que nada”, pensou, rumando para o novo destino.

A caminhada ocorreu sem imprevistos. Ou sem “corvices”, como ela apelidou. No momento certo Amélia estava lá, entrando e se acomodando perto de uma das portas automáticas.

O clima de paz com a ave, no entanto, parecia inalcançável. De dois em dois minutos os outros passageiros podiam ouvir sussurros furiosos vindos da gótica e, segundo a maioria, assustadora.

Ao ver buracos recém-feitos em sua jaqueta de veludo favorita, entretanto, sua voz subiu algumas oitavas:

— Passarinho estúpido!

O grito ganhou para Amélia alguns pares adicionais de olhos a encarando. Não que ela se importasse. Estava acostumada ao julgamento causado por seu estilo inconvencional. Mas ali, naquela enorme e rápida estrutura de metal fedendo a falta crônica de desodorante, um chamou sua atenção.

A loira, diferente de todos, não olhava para ela. Ao invés disso, tinha um alvo mais importante que qualquer reclamação, feita por qualquer pessoa.

Ali, aos pés daquela mulher desconhecida, jazia uma pizza perdida.



No sonho, a pizza era de quatro queijos. Na realidade, de micróbios vindos do chão do metrô.

Matilda não queria, mas sentiu pequenas lágrimas embaçando sua visão. Aquela foi uma refeição muito desejada.

Passaram-se alguns minutos de luto pela bela massa que teve uma morte prematura, então, seguindo o exemplo de quase todos os outros passageiros, a loira focou na garota do outro lado do vagão.

Primeiro ela a acordou com um grito do qual o cardíaco coração de Matilda ainda não se recuperara. A consequência? Um óbvio susto. E agora, agindo como a vítima da situação, a gótica ostentava uma articulada carranca, espelhada pelo corvo em sua perna esquerda. Exceto que a ave profanava o cadáver de seu delicioso quase jantar ao olhar para ele calculando a distância entre as rodelas de calabresa e seu bico escuro.

— Quer parar de encarar? — Matilda falava para o animal. As palavras, no entanto, atingiram os ouvidos da jovem que o segurava.

— Eu não ‘tô te encarando.

— Seu pequeno monstrinho está.

— Ele não… — a gótica parecia frustrada ao desistir da fala e bagunçar a própria franja, borrando a sombra forte que usava no processo. — Olha, desculpa, tá?

— Certo.

A conversa acabou e isso pareceu apropriado para Matilda. Não haviam razões para tentar começar outro assunto. Era tudo estranho demais para isso.

Mais tempo se passou e os outros perderam o interesse. Superando a perda e com medo do ininterrupto interesse do corvo pela pizza, a loira chutou-a em sua direção. Mesmo o mais leigo em ornitologia podia dizer que aquela ave ficou feliz ao pousar sobre o molho vermelho e fazer sua festa particular.

O fim da viagem chegou e ambas as mulheres se levantaram, prontas para ir embora.

Era o que Matilda pensava, pelo menos.



— Ei! — a gótica chamou, subindo os degraus da saída da estação de dois em dois, tentando acompanhar a loira. — Moça! ‘Pera aí!

Amélia não costumava fazer esforço para conversar com estranhos. Especialmente os do metrô. Mas ela também não tinha a menor experiência em carregar um corvo inconveniente que a fazia se sentir culpada.

— Para! — pediu outra vez, agarrando a alça clara de sua bolsa.

Para o desespero de Amélia, ela obedeceu.

— Eu quero ir pra casa, garota.

— Eu sei, eu sei. É só que… — alguns são bons com palavras. Ame desenhava.

— Que...?

Silêncio. Timidez, a sina dos calados.

— Não mereço, viu... — com um aceno de dispensa e uma negação desacreditada, a mais velha se virou e recomeçou a andar.

— Ok, ok, ok! Volta aqui.

Ela voltou.

— Fala.

— Qual é o seu nome?

— Não interessa.

— Qual é o seu nome… por favor? — repetiu.

— Matilda. O que você quer?

— Amélia. Agora vem.

A curiosidade sempre fora o ponto fraco de Matilda. Franzindo as sobrancelhas, seguiu-a, fingindo não ouvir os resmungos da outra sobre um possível ensopado de corvo.

— Se não gosta dele, porque tem um animal de estimação tão peculiar, para começo de conversa? — novamente, a curiosidade.

— Ele não é meu.

A loira acenou em concordância e, pela careta de raiva permanente de Amélia, pensou que talvez não fosse a única a ter o dia ruim.

Assim que pararam, o estômago de Matilda acordou, podendo ser ouvido até pela gótica, fazendo-a rir baixinho.

— Você não precisa pagar outra pizza pra mim, garota. Quer dizer, se o bicho realmente não é seu…

— Seu estômago discorda.

— É. — Não haveriam discussões quanto a isso.

Lendo os sonhos da mais velha, Amélia escolheu quatro queijos. Quinze minutos depois — terças aparentemente não são os melhores dias para pizzarias — as duas saíam, lado a lado, comendo fatias grandes e carregando uma caixa maior ainda. Sentaram-se num banco de praça para continuar a refeição. Já cheia e relaxada, Matilda espantou a quietude da noite fria de maio:

— É de quem?

— Quê? — a jovem parecia concentrada nos furos de seu casaco, enquanto a ave fazia alguns novos em sua calça.

— O corvo. É de quem?

— Do meu professor, acho.

— Acha?

Amélia deu de ombros e Matilda tornou-se um ponto de interrogação:

— Eu não estou entendendo nada.

A outra suspirou e, parecendo incomodada, explicou:

— Eu ‘tô cursando cinema e o trabalho do semestre é gravar sobre uma coisa específica. A minha “coisa” foi o passarinho.

A verdade é que Amélia se sentia mal por aquilo. O julgamento, as piadas. Podia estar acostumada, mas o tempo não tornava as reações sobre ela nem um pouco mais agradáveis.

— Os outros também ganharam animais?

— Aham. Cachorros, gatos…

— Por que o seu é um tão esquisito, se esses são comuns, então?

— Nas palavras dele “ninguém mais indicado para filmar um corvo do que eu”. — A imitação de voz masculina de Amélia era engraçada, ainda que nenhuma das duas tenha rido.

Entendendo a situação e a carranca da mais nova, Matilda se levantou, levando a ave consigo.

— Esse passarinho ainda é meu trabalho, Matilda. — Avisou a gótica, percebendo o que a outra tencionava fazer.

— Tenho certeza que você pode arrumar um animal mais legal. Ou até um professor novo. — A loira lançou uma piscadela para Amélia, que já estava de pé ao seu lado, e jogou a ave.

Ela voou, voou, voou…. então fez uma curva, passando por cima de suas cabeças em um mergulho calculado. Pelas garras dele, as duas novas amigas perdiam, pela segunda vez, uma pizza.

Gargalhando, Matilda declarou:

— Amélia, seu corvo era italiano.

 













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Notas finais do capítulo

Essa foi a primeira vez que escrevi comédia e algo com tantos diálogos, então espero não ter sido horrível XD
Espero que tenha gostado. Se quiser comentar, ficarei muito feliz ♥
O twitter da cartunista é @spacecoyotl e foi onde eu peguei a ilustração. Sigam ela, tem desenhos ótimos ;)
XOXO