Você já Amou Alguém na Vida? escrita por slytherina


Capítulo 3
Capítulo 3




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Sofrimento



— Sente-se!

O homem distinto, em seu paletó de gabardine cinza, ofereceu uma poltrona confortável para Celso.

 

— Obrigado! — Celso limitou-se a agradecer e resolveu calar-se. Seu chefe logo o informaria do motivo daquele encontro.

 

— Como sabe Celso, nossas filiais estão atravessando um período de muita bonança. As perspectivas de lucro são as melhores possíveis. Estamos nos esforçando para suprir a demanda, e há claros indícios de que nossas filiais não podem atender prontamente nossa clientela. — O chefe fêz uma pausa para saborear aquele momento. Ele mal cabia em si de contentamento.

Celso não se impressionou com a felicidade do outro homem. Ele sabia que as palavras "lucro" e "suprir a demanda" vinham sempre acompanhadas das palavras "mais trabalho", e essa parte tocava a ele.

 

— Por isso estamos pensando em expansão. A sua missão, Celso, será visitar nossa filial, e comprovar in loco, o que os relatórios apontam. Traga-me suas impressões e conclusões. Tenho grandes planos para "Areia Branca", e você está incluído neles. — O chefe calou-se esperando a reação do funcionário.

Celso gelou. Ficou pálido. Franziu ainda mais os lábios finos. Seus olhos se arregalaram.

— O que foi Celso? Está passando bem? — O chefe perguntou preocupado e um pouco decepcionado. Esta não era a reação que ele esperara.

— Não che-chefe... É que... Acho que o café da manhã não me fêz bem... — Celso achou que deveria dar uma justificativa para seu mal estar repentino.

O chefe recomendou-lhe uma boa cafeteria para o bem de seu estômago, e despachou-o para o "Recursos Humanos", onde autorizariam as diárias para sua viagem à cidade de "Areia Branca".

Celso passou pelos trâmites exigidos e foi para sua kitchenete. Procurou sua velha mala que sempre levava nessas viagens relâmpago. Passou a retirar suas roupas da cômoda estreita e colocá-las na mala. Procurou seus produtos de higiene e acondicionou-os em uma pequena necessaire. Seus pensamentos divagavam em outro local, outros tempos, lembranças há muito esquecidas. Diálogos, rostos, palavras ásperas, choro, coração pesado, sofrimento.

Celso parou o que estava fazendo. Olhou para as mãos. Havia uma bola de meia em uma das mãos. Na outra havia um cinto de couro enrodilhado. Fitou aqueles objetos sem saber o que fazer com eles. Sentou-se em sua cama de solteiro. Sentia-se como Salomão, tendo que se decidir entre uma bola de meia ou um cinto, mas não sabia que decisão ou escolha fazer.

Abaixou a cabeça e fechou os olhos.

Francisca surgiu na sua frente. Ela era belíssima, pelo menos aos olhos dele. Tinha cabelos acobreados, grossos lábios vermelhos, e olhos mortiços de Capitu. Seus cabelos dançavam ao vento como as cobras da cabeça da medusa. Eles tinham vida. O sol os fazia brilhar como ouro, dando a ela uma aréola dourada, tal qual uma santa. Seus lábios suculentos como uma fruta madura, o convidavam a um beijo. Os olhos dela brincavam, descansados, sorridentes, vivazes. Ela toda era um convite ao prazer, mas diante daquela jovem, ele sentia-se comovido. Tinha necessidade de prostrar-se de joelhos e juntar as mãos em uma prece, adorando a sua Santa Francisca.

A lembrança apagou-se de sua mente. Ele voltou a atenção para a mala pequena, e as roupas que deveria levar na viagem. Olhou para os objetos em suas mãos. Colocou-os na mala.



No dia seguinte bem cedo, celso iniciou sua jornada de volta a Areia Branca.

 

O ônibus intermunicipal era sujo e desconfortável. Ele raciocinou que certas coisas nunca mudavam. Durante muitos meses ele fizera aquela viagem. Naquela época ele andava com um discman movido à pilha. Ficava mudando os vários CDs de sua coleção particular, até as pilhas alcalinas perderem a energia.

Alguém ligou um rádio a sua esquerda. O ruído súbito, sintonizado em uma barulhenta emissora AM, fêz com que ele se sobressaltasse.

O locutor popular, com sua voz grave, anunciou uma cantora regional em seu único sucesso musical, uma canção feia porém grudenta, que teimava em contagiar todos os neurônios com aquela melodia. Quando você menos esperava, estava cantando junto com ela.

 

Celso colocou fones de ouvido e conectou-os em seu MP3. Escolheu uma música antiga, aquela que Francisca mais gostava: "Dona" do Roupa Nova.

A figura de Francisca sorriu para ele. A seguir aproximou-se e o esbofeteou. Ele ainda sentia o rosto arder. Francisca o olhava indignada. Despejava todo o desprezo do mundo naqueles lindos olhos.

"Carla contou-me tudo. Você a seduziu e engravidou. Você não passa de um canalha." As palavras de Francisca ainda perfuravam seu coração como setas.

"Eu não fiz isso. Poderia ter feito, mas não fiz." Celso ouvia as próprias palavras, há muito proferidas. O timbre de um homem desesperado, que via seu amor escapulir por entre seus dedos. O tom de um homem ultrajado, vítima de uma calúnia, que não tinha como se defender, a não ser encarar seus acusadores com altivez.

"Você já fêz isso antes, Celso. Dona Cristiana contou-me sobre Élem. Ela era empregada na casa de seus pais. Você a seduziu, engravidou, e depois a abandonou na rua da amargura. Eu tenho nojo de você, Celso. Eu nunca mais quero ver a sua cara na minha frente". Francisca o fitava com olhos dardejantes, mordendo os desejosos lábios rubis.

Celso ficara sem palavras. Baixara os olhos e admitira intimamente sua culpa no caso de Élem. Ambos, ele e Élem, eram adolescentes. As coisas simplesmente aconteceram, sem que eles pudessem perceber a encrenca em que estavam se metendo. Depois os pais deles se envolveram, e tornaram uma situação melindrosa em tragédia. Élem morrera de complicações de um aborto clandestino. Seus pais fizeram questão de lhe contar para que lhe servisse de lição, e dessa forma, nunca mais se atrever a namorar as empregadas de sua casa. Ele fora o culpado da morte de Élem e de seu filho.

Celso deixara-se arriar em uma cadeira e fitara o chão por muito tempo. Quando finalmente erguera os olhos, percebera que Francisca estivera o tempo todo ali, observando sua muda admissão de culpa.

Ela chorava silenciosamente. Mordia os lábios e apertava a pequena bolsa de mão, que sempre levava consigo. Francisca virou o rosto para não mais olhá-lo, e saiu a passos lentos do recinto onde estavam. Ela foi embora de sua vida.

Os fones de ouvido incomodavam, causando dor e coceira. Ao longe a música regional ameaçava tomar conta de sua cabeça. Roupa Nova não cantava mais. Agora havia um suave jazz de uma cantora obscura.

Celso sentiu os olhos pesados e a boca amarga. Seus lábios tremiam. As lágrimas começaram a descer uma a uma. A princípio envergonhadas, furtivas, mas depois tornaram-se um fluxo franco e profuso.  O Jazz era triste e sussurrado como um lamento. Celso tentou seguir-lhe os acordes fazendo sons com a boca. Estes sons transformaram-se em soluços. Ele não mais se envergonhou de chorar como uma criança, em pleno ônibus intermunicipal. Já havia chorado outras vezes por causa de Francisca, mas o orgulho ferido sempre secara suas lágrimas. Pela primeira vez chorava porquê percebera que ela fora seu único e irrecuperável amor.




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