Gentleness escrita por U can call me A


Capítulo 19
Primeiro amor (nunca dá certo)


Notas iniciais do capítulo

Trigger warning: Morte de alguém importante



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A primeira vez que Célio viu Isel foi numa pracinha, enquanto ia da escola para suas aulas de música. O garoto, com um sorriso tímido e um violão nos braços, estava cercado de outros garotos e garotas de mesma faixa de idade, alguns mais velhos.

“Estão faltando aula?”, ele pensou. Como um adolescente certinho, ele nunca tinha feito tal coisa, mas já tinha tido contato com jovens que faziam. Reconhecer não era difícil. Havia alguma coisa na forma de se vestir, nos gestos, nas expressões, que faziam esses grupos reconhecerem os seus. Mas aquele garoto, mesmo visivelmente tentando imitar tudo isso, parecia deslocado.

A imagem do grupo todo rindo e o garoto com um sorriso sem graça ficou em sua cabeça pelo restante do dia. Célio não conseguia entender porquê alguém iria se submeter a isso.

Ele estava pensando nisso na volta, também. Já fazia horas, mas ainda assim a primeira coisa que ele fez ao chegar perto da pracinha foi procurar com os olhos o grupo de delinquentes. Mas não viu mais nenhum. Só havia o garoto deslocado, com o violão, sem sorriso. A luz alaranjada do pôr do sol passava por entre as folhas da árvore em que ele estava debaixo, salpicando brilho em sua figura solitária.

E por alguma razão, Célio foi até ele. O garoto se assustou de começo, mas ele não tinha uma guarda muito alta, o que era até preocupante. Com alguns minutos de conversa, Célio descobriu que ele tinha conseguido um violão usado e alguns ditos amigos lhe pressionaram a faltar aula pra mostrar seu talento para amigos deles. Isel tinha dito que não tinha habilidade nem sabia muita coisa ainda, mas chantagearam com o típico “se você não fizer isso não é meu amigo”, e ele cedeu. Não foi surpresa nenhuma para Célio que no fim da história só quisessem rir dele, mas o garoto estava chocado e magoado mesmo assim.

— Eles não são seus amigos. Amigos de verdade não fazem você se sentir mal de propósito. – Célio confortou, dando tapinhas leves na cabeça do garoto. Este brechou por entre os fios de cabelo preto bagunçados em seu rosto.

— Mas eles... Eles não são sempre ruins. – Isel murmurou. – Eles são legais comigo, quando tem menos gente... E já são poucos que andam comigo, mesmo. Se eu não tiver eles, não vou ter mais ninguém.

Foi difícil para Célio segurar a careta que queria fazer. Um garoto parecendo ter treze anos desse deveria estar se preocupando com dever de casa, não com amizades tóxicas. E o pior é que a idade mental de Isel devia ser bem mais nova. As mãos do mais velho chega coçavam de vontade de puxar o outro pela orelha e colocar um pouco de juízo na cabeça dele. Mas ele se conteve e respirou fundo ouvindo os problemas do outro, pensando em como era normal da idade e poderia ter sido ele.

— Isel, é muito fácil ser uma pessoa diferente quando não se está com as mesmas pessoas. Você conhece uma pessoa de verdade quando vê como ela é quando está com gente mais próxima. – ele se esforçou para usar seu tom de voz mais paciente. – Se quando estão com um grupo que dão mais importância que você tem essa diferença, vale muito mais manter uma distância segura. E isso não significa que você nunca mais vai ter alguém. Por exemplo, se você se envolver na escola ou em alguma atividade, como música, que nem eu faço...

— Estudar música! – os olhos castanho mel de Isel brilharam, tanto de empolgação quanto de tristeza. Afinal, Célio tinha usado a brecha de que estudava música para puxar assunto com o jovem com um violão no colo. Mas para um garoto que tudo o que tinha era um violão usado, cada vez que ele ouvia era como lhe darem um doce numa embalagem que ele não conseguia abrir.

— Foi só nessa parte que você prestou atenção? – Célio suspirou, mas soou como se ele estivesse contendo um riso.

— Não, estou ouvindo... É só que, eu não tenho condições de estudar música, e não sei como me envolver ou o que for, na escola...

Célio coçou o pescoço, fazendo uma careta pensativa, e por fim suspirou.

— Eu posso te ajudar. – ele disse, e antes que o Isel que tinha baixado a cabeça de desânimo pudesse lhe interromper com seus olhos brilhantes, ele levantou a mão. – Mas! Como eu ia dizer, ver pessoas todo dia com os mesmo interesses que você pode lhe render muitos amigos melhores, e eu posso te ajudar, mas você vai ter que se esforçar. Se você mostrar ser um bom investimento, a escola que eu estudo pode abrir portas pra você. Só que pra isso você vai precisar de notas maravilhosas na sua escola, um bom conhecimento em música, e uma recomendação. Os últimos dois seriam da minha parte, claro, mas o resto, com você. Ou seja, nada de faltar, entende?

— Huh? – Isel piscou repetidas vezes, confuso. – Abrir portas? Mas e dinheiro? Como você vai me conseguir conhecimento em música e uma recomendação?

“Pai amado, dai-me forças.” Célio, que embora fosse para a igreja não era tão religioso, pensava que estava passando por uma provação.

— Não se preocupe com dinheiro. O que eu posso fazer é lhe ensinar algumas coisas, e quando você se tornar um aluno que a escola de música gostaria de ter, eu poderia mexer uns pauzinhos...

Célio não teve tempo de terminar de falar, Isel colocou o violão de lado na velocidade da luz e agarrou os ombros dele.

— Sério que você faria isso por mim? Não é mentira, né?! – Ele chacoalhou o garoto a ponto que Célio podia ver estrelas.

— Não... Não é... Mas me solta, por favor...

— Oops. – Isel soltou como se tivesse se queimado e se encolheu abraçando seu violão timidamente. – Mas... Hum... Por quê?

— “Por quê” o quê? – o mais velho murmurou, já sem paciência, tentando segurar a cabeça no lugar. Por mais que ele tentasse, isso não evitava que ele visse tudo sacudindo.

— Por que você faria isso? Eu não tenho nada para te dar em troca.

Os olhos de Isel eram livres de impurezas, tipo segundas intenções. Ele estava perguntando por pura confusão, isso Célio conseguia ver. E eles eram de uma cor que quando a luz do sol batia, parecia ainda mais com mel. A imagem de Isel carregava alguma coisa que indicava que ele era especial, mas Célio não conseguia apontar o dedo e dizer o quê.

— Eu não quero nada em troca. Eu só fico incomodado quando vejo crianças desperdiçando tempo quando podiam estar fazendo algo produtivo, tipo estudar. – ele desviou o olhar da cara ofendida do garoto.

— Quem você está chamando de criança?!

— Você.

— Seu... Seu... Seu poste!

— É o quê? – Célio, que estava colocando a mochila nas costas, congelou. Isel ficou envergonhado ao ser encarado, e ele visivelmente não queria continuar retrucando, mas o tom de desafio na voz do outro acabou funcionando ao contrário.

— Eu... Eu disse que você é um poste! Perna fina! – Ele foi ficando corado. – A... Aposto que se um vento bater, você parte ao meio! Al.. Alguém... assim... não pode chamar... de criança...

Célio se abaixou pra ficar com os olhos no nível dos de Isel, que estava sentado.

— ...Por que você está chorando? – perguntou.

Isel cobriu o rosto às pressas e soluçou.

— Eu não estou chorando! Eu.. Só não gosto de dizer coisas feias com alguém que é legal comigo... mas você, você foi malvado me chamando de criança!

Célio olhou para o horizonte por alguns segundos, cutucou a cera do ouvido, e suspirou.

— Tudo bem, minha culpa, eu me enganei. – Ele disse, e assim que ouviu isso, os olhos úmidos de Isel brilharam por entre os dedos. – Você é um bebezão.

Ele voltou pra casa mancando um pouco pelo chute que levou, mas rindo muito. No fim das contas, marcaram de se encontrar na praça durante o fim de semana para começarem as aulas. Isso depois que Isel se acalmou, claro.

Nas semanas seguintes, Isel foi conquistando um pouco mais de juízo. Só um pouquinho. Mas esse pouquinho bastou pra ele deixar de faltar aula por pressão dos outros, e Célio insistiu que ele deixasse de andar com seus amigos que só zombavam dele, enfatizando que valeria a pena quando ele entrasse na escola de música. Eles se encontravam sempre que tinham tempo livre, e Célio além de ensinar teoria musical e violão, também dava dicas para o garoto socializar melhor.

Claro, Isel não se transformou da noite pro dia. Vez ou outra Célio o ouvia matracar sobre algum problema que tinha se metido. Mas ele era teimoso. E amava música. Se não amasse, não se esforçaria tanto para abrir mão das pessoas e coisas que desperdiçavam seu tempo, como Célio temia. Sua empolgação era até engraçada. “Eu já sou um estudante nota 10 agora?” ele perguntava quando fazia algo simples, como fazer suas tarefas no mesmo dia, e Célio dizia algo como “Você deu mais um passo. Quase lá.”, tentando não rir. Isel poderia entender errado se ele risse, mesmo não fosse uma risada de zombaria, e sim de apreciação.

Os estudos também não ficaram limitados à praça. Isel era meio solto ao vento, parecia que ninguém se preocupava muito com ele, então ele podia ir pra casa de Célio sempre que dava na telha. As primeiras vezes foram tensas, com Isel tendo dificuldade de assimilar o piano numa das salas, e também o fato da casa ter mais de uma sala... Mas depois, Célio podia dizer até que o garoto vivia lá, de tão confortável que ficava.

E os resultados de Isel apareceram. Suas notas subiram, e ele se sentia confiante para tocar na frente de outras pessoas, coisa que passou a fazer sem ficar mais tão nervoso. O fato dele carregar seu o violão e seu caderno de música para cima e para baixo ajudou. Parecia que o instrumento era parte de seu corpo, com o jeito que ele estava sempre que possível estudando.

No entanto, não eram as únicas coisas com que ele andava para cima e para baixo. Ele deixou de estudar de tarde para estudar de manhã e poder seguir Célio para a escola de música. Os professores da escola até ficaram familiarizados com sua figura tocando baixinho ou estudando enquanto esperava por Célio. Apesar dos dois anos de diferença, a figura da dupla, um poste e o outro infantil, era harmoniosa.

No começo do ano seguinte, época de matrículas, Célio não precisou fazer muito esforço com sua recomendação. O mais chocante não foram as notas de Isel na escola ou no teste de nivelamento em música, mas que além de ter cativado os professores, numa dessas tardes ele tinha até tomado um cafezinho com o diretor e o coordenador sem saber quem eles eram, e de alguma forma feito amizade rolando a matraca, que ele chamava de boca, solta.

— Huh? Eu podia jurar que eu te contei. – Isel disse, quando questionado, depois de ter comemorado tudo o que tinha de comemorar, por ser aceito e de graça, pulando em cima de Célio.

Pra isso Célio não tinha argumento. Às vezes ele realmente distanciava a mente quando Isel se empolgava pra falar, e só ser chacoalhado trazia sua alma para o corpo de volta. Ele achou melhor disfarçar com um “Eu devo ter esquecido.”

— Tudo bem! O que importa é que, agora eu vou estudar música! De graça! Com meu melhor amigo! – Isel tinha subido em cima da borda da calçada e a cada exclamação ele dava um rodopio, com um sorriso radiante. Quem visse, não conseguiria imaginar que ele tinha sido sombrio como era antes de conhecer Célio.

— Melhor amigo? – O mais velho ecoou, parando de andar. Isel se virou para ele, seu cabelo preto escorrido sendo sacudido pelo vento. Graças ao corte novo, seus olhos não estavam sendo escondidos pelas mechas.

O choque de Célio não era injustificado. Até então, eles não tinham dito algo ousado como “somos amigos”. Isel tinha se tornado mais cuidadoso com quem ele chamava por essa palavra forte, depois de tantas lições insistentes de Célio sobre amizades tóxicas e amizades verdadeiras.

— É! – O garoto abriu um sorriso ainda mais feliz.

Célio não conseguiu conter o que estava se espalhando por seu rosto, também.

— Mas se me perguntassem, eu sinto que... – Célio deixou um suspense no ar, e os olhos do outro se arregalaram. - ...eu sinto mais que eu sou sua mãe, porque meu melhor amigo é um bebezão.

Mais uma vez ele voltou pra casa mancando. Isel não controlava a força quando batia nele, mas sua fúria não ficava menos engraçada por isso. Hilária era sua cara de arrependimento quando se acalmava. Ele até se ofereceu de apoio para Célio andar, quase chorando a cada “ai” monótono que o mais velho soltava aqui e ali.

Célio conseguia entender porquê tanta gente queria bullynar uma criatura dessas. Não que ele fosse fazer o mesmo ou deixar alguém mexer com ele enquanto estivesse de olho. Mas cada reação exagerada de Isel deixava um ar de curiosidade para o que ele iria fazer depois, ou o que ele iria responder se alguém dissesse certa coisa. Nem Célio conseguia resistir irritá-lo de vez em quando.

E indo para a mesma escola de música, ele passou a ter muito mais oportunidades. Sem perceber, eles se tornaram essenciais na vida um do outro. Isel batendo em Célio e ficando choroso depois, os dois voltando para casa juntos, Célio derrubando um Isel babando de sua cama... Momentos bobos como esses se tornaram rotina. Parecia que não tinha outra forma do mundo rodar se não fosse assim, um apoiando o outro.

 As estações passavam e se repetiam. Isel foi ficando mais sociável e descobrindo seu próprio charme aos poucos, de fato ficou popular como Célio havia prometido que ele seria, se seguisse na linha. Mas independente de quantos outonos, invernos, primaveras e verões se repetissem, não havia quem pudesse dizer que conhecia melhor Isel que Célio, ou alguém que dissesse que conhecia melhor Célio que Isel.

Por isso que foi um choque tão grande quando Célio ficou sabendo que Isel gostava dele. Ele nem ouviu da boca dele, mas de uma amiga que o garoto tinha feito na escola onde os dois estavam fazendo o ensino médio. Ela certamente não tinha boas intenções, enquanto aproveitava a falta de reação de Célio para contar como Isel tinha rejeitado uma garota, sem querer mencionar que a garota era ela, e que quando a garota insistiu em pedir um motivo, Isel acabou soltando que gostava de alguém. E quando a garota ficou com raiva e disse “A única pessoa que você fica grudado é o seu amigo! Vai dizer que você é viado?!” ele ficou nervoso e mentiu muito mal.

— Então, o rumor é de que ele é... Você sabe... Eu estou muito preocupada com ele, se você também está, deveria ir lá falar sobre isso, não acha?

Em circunstâncias normais, Célio teria tido uma boa conversa com essa péssima amiga de Isel que pior do que não conseguir guardar segredo, ia logo contar pra quem ele supostamente gostava. Mas dessa vez essa pessoa era ele. Ele não tinha tempo para isso, precisava saber da boca do outro.

Não foi difícil de encontrar Isel na escola. Ele tinha um canto especial, perto de onde guardavam cadeiras e mesas que não estavam sendo usadas, onde gostava de ficar tocando. Por mais que não fosse um lugar secreto que só Célio conhecia, Isel nem precisava levantar os olhos para saber que o amigo havia chegado.

— As minhas aulas acabaram mais cedo que as suas, então eu estava esperando aqui. Quer sentar um pouco antes de ir embora? – Ele sorriu, ainda concentrado no instrumento.

— Isel.

A música parou. Isel levantou seus olhos cor de mel, brilhantes e sem noção alguma de que ele tinha sido apunhalado nas costas. Era difícil para Célio acreditar que aqueles olhos alguma vez tinham olhado pra ele com algo além de amizade, e sua insegurança foi transmitida em sua voz.

— O que houve? – O mais novo perguntou, um pouco assustado.

— Me disseram hoje que... que você gostava de alguém. E poderia ser eu. – Célio se esforçou para encontrar as palavras.

Os olhos de Isel pareciam que iriam saltar pra fora quando ouviram isso. Ele deu um murro no chão e gritou:

— O quê?!

Célio ficou aliviado. Pra ele, a reação exagerada devia ser porque era tão ridículo que dava raiva, e com sorte, se Isel tinha aprendido algo todos esses anos, já devia estar pensando em como alguém não foi uma boa amiga o suficiente, espalhando rumores sobre ele.

— Eu sei, eu não acreditei também. Achei muito mais confiável falar com você. – O mais velho sorriu. – É impossível que você fosse gostar de mim, afinal.

— Por que impossível? – Isel se controlou para ficar com uma expressão vazia.

— Você ainda pergunta por quê? – Célio sentou do lado de Isel. – É impossível porque nunca iria acontecer, não é?

Isel assentiu e voltou a dedilhar o violão, com a mente cheia.

— O ruim é que mesmo sendo mentira, vai ser complicado se essa história se espalhar. – Célio franziu o cenho. – Fofoca vai mais rápido que fogo, e você sabe o que as pessoas dizem...

— O que as pessoas dizem?

Mas Isel não precisou de muito tempo para descobrir. Com o telefone sem fio, o que a “amiga” de Isel tinha contado foi piorando e ninguém sabia de onde tinha vindo. Mesmo com os dois negando, a malícia via outro significado pra tudo o que faziam juntos, e Isel conseguia sentir os olhares nele por toda a escola. Pior eram os sussurros. Ele foi chamado tantas coisas que nunca tinha ouvido antes, mas não iria querer repetir com ninguém...

— Acho que... Vou aceitar a oferta do meu tio. – Ele disse, depois de três semanas assim.

— Aquele que vive viajando? De estudar música no exterior?! – Célio quase derrubou a maçã que estava comendo.

Isel se encolheu.

— Vai ser melhor assim. Eu acho que tudo só vai piorar se eu continuar aqui... Bom, ele só falava que se eu quisesse eu poderia estudar fora, e os meus pais não ligam se puderem se livrar de mim. A parte da música quem insistiu fui eu, depois que ele me viu numa apresentação. Mas eu teria que me virar pra conseguir, como sempre...

Célio fez uma careta, processando a informação. Muitos segundos se passaram assim, com silêncio entre eles dois, até que ele respirou fundo e suspirou, se abaixando pra ficar com os olhos no mesmo nível que os de Isel, que estava encolhido no chão.

— Faça o que achar melhor. – Ele colocou a mão no ombro do outro – Eu te apoio.

— Você jura?

— Juro. Você prefere trocar cartas ou escrever e-mails? – Célio sorriu. Isel forçou um sorriso também.

Os dias seguintes foram uma correria de preparar tudo para a viagem, mas não foi difícil.  estava num aeroporto, com o tio e Célio, a única pessoa que foi vê-los partir. Seu tio não estava lhe dando muita atenção, mas com isso Isel estava acostumado.

— Tem certeza que está tudo ok? – Célio perguntou, e o rapaz assentiu, desviando o olhar.

— Se eu soubesse que iria acabar assim, teria prestado mais atenção nas aulas de língua estrangeira. – Riu, sem graça.

Um silêncio estranho ficou entre eles. Célio cutucou Isel com o ombro.

— Vou sentir sua falta. – Ele disse. Os olhos de Isel finalmente desgrudaram do chão para olhar para ele.

— Célio. – Ele respirou fundo, apertando a alça da mala com força. – Não era mentira quando disseram que eu gostava de você.

O que veio depois foi uma memória que assombrou Isel por todos os anos que se seguiram. Seu amigo de anos, que havia dado rumo a vida dele, e estendido a mão quando todos só apontavam e riam...

...Sorriu. Mas foi a expressão mais triste que Isel já tinha visto naquele rosto.

— Eu sei. – Dizer essas palavras pareceu doer ainda mais em Célio. – Desculpe.

Isel, se não estivesse agarrado à mala, teria caído por perder a força nas pernas. “Ele sabia? Desde quando? Por que ele disse o que disse? Por que não disse nada? Por que...” sua cabeça estava a mil. Não era nenhuma das respostas que ele estava esperando.

Horrorizado, ele encarou Célio, mas não disse mais nada. Só lhe deu um murro no ombro, deu a volta e foi embora, para bem longe. Por muito tempo.

A última expressão dele também assombrou Célio por anos. Mas nada doeu mais que quando se aproximou do caixão. Um incêndio, disseram. Talvez por isso a tampa estivesse fechada. Em que estado o corpo deveria estar? Quão doloroso deve ter sido, quão assustado Isel deve ter ficado? Era difícil de acreditar que ele tinha perdido ele, dessa vez para sempre. Quando fazia tão pouco tempo que tinham se reencontrado.

A primeira vez, após anos, foi numa cafeteria que ele gostava de ir. Quem diria que quando ele olhasse por cima dos documentos, encontraria com os olhos cor de mel brilhantes que ele conhecia tão bem? Isel havia crescido, ficado mais confiante, mudado tanto que Célio se perguntou se era ele mesmo. Mas a ação de encarar Célio e dar a volta o entregou. Isel estava pronto para sair correndo e nunca enfrentar seu passado, se não fosse por seu ponto fraco.

— Eu te pago um chocolate quente! – Célio gritou. Foi mais eficiente que correr atrás dele. A ideia de um chocolate quente de graça, mesmo que não faltasse dinheiro para Isel, o fez congelar. A tentação era grande demais, no fim ele sentou na mesma mesa que Célio.

— É o mínimo que você pode fazer. – Ele resmungou, como uma criança birrenta.

— O que você disse? – O mais velho abriu um sorriso cínico.

— Nada. – Isel retrucou, tomando um gole da bebida.

Pelo menos mais duas canecas foram necessários para amansá-lo. Célio começou perguntando como ele estava, o que tinha feito durante tanto tempo. Isel contou que não gostava do estilo do tio dele de nunca parar por muito tempo num mesmo lugar, mas graças a isso ele aprendeu um pouco de muitas línguas a força. Quando alcançou idade o suficiente, passou a poder viver sozinho, e passou por altos e baixos para continuar estudando música, mas conheceu muitos gêneros e artistas. Ele tinha pego o hábito do tio e começado carreira durante suas viagens, mas já tinha voltado para o país um ano antes, e agora que estava tendo reconhecimento, tinha recebido algumas propostas na cidade onde tinha crescido... Ele até disse que iam tocar músicas suas numa casa de show, e convidou Célio.

— Por que você está sorrindo tão esquisito? – Isel recuou, afundando na poltrona da cafeteria como se o homem do outro lado da mesa tivesse um novo tipo de vírus altamente contagioso. Célio riu.

— Eu só estava pensando, como eu tenho orgulho do garoto que um dia encontrei numa praça.

— Eu não sou mais um garoto. – O mais novo fechou a cara.

— Oh, se dá pra perceber. Você ficou com esses braços definidos de tanto tocar?

Isel virou a cara para o outro lado. Célio decidiu parar de brincadeiras e se desculpar seriamente pelo passado. Ele contou como tinha esperado na cidade todo esse tempo e se tornado diretor de uma escola de artes, tudo com esperança de encontrar Isel mais uma vez. Seu antigo melhor amigo lhe ouviu contar seus conflitos em silêncio.

Porém, como esperado, ele não podia ser perdoado tão fácil. Isel ficou com raiza, disse muitas coisas com ele, depois se arrependeu e disse que era informação demais para um dia só, se virando para ir embora depois de rabiscar um número de telefone na nota fiscal que Célio pagou. Célio tinha prometido que manteria contato.

Talvez se ele não tivesse ficado nervoso para ligar, as coisas tivessem sido diferentes. Mas quando viu, Ephir tinha levado o número junto com o casaco e Isel estava furioso atrás dele. Ele explodiu. Disse o quão cruel e egoísta Célio era, por ter deixado ele ir embora quando ele sabia que ele gostava dele, e por não ter mandado nem cartas nem e-mails, e agora parecia que estava fazendo de novo, que se Isel deixasse ele não iria atrás dele nunca.

Não importava quantas vezes Célio explicasse que ele tinha medo dos próprios sentimentos na época, que ele não sabia o endereço para mandar cartas e Isel nunca respondia os e-mails, e tinha ficado nervoso demais para ligar de imediato, o homem em sua frente tinha ressentimento demais guardado.

Ele beijou Isel e levou um tapa na cara.

A última vez que ele viu Isel, ele também tinha uma expressão horrorizada como quando ele disse que sabia que Isel gostava dele.

E agora ele não ia ver mais expressão alguma. Célio nunca iria ter se amargurado por seus arrependimentos o suficiente, porque iria ter que colocar a cabeça no travesseiro sabendo que se tivesse ido para a casa de show como Isel tinha lhe convidado, talvez pudesse ter protegido ele. Evitado que ele morresse no incêndio. Nem que ele morresse no lugar dele.

Ele queria acreditar que pelo menos a única coisa que ele tinha feito certo foi beijar Isel, mas o tapa lhe lembrava que isso só tinha causado mais rancor. Ele não sabia nem se podia dizer que tinha sido conhecer Isel, vendo onde isso tinha levado, no fim.

Durante os dez anos, ele ainda podia ter esperança. Ele ainda podia fantasiar que Isel voltaria e eles se resolveriam, podendo andar juntos no caminho de volta pra casa novamente. Agora, isso não era possível. Cercado de pessoas de preto, a cor que ele mesmo vestia lhe lembrava que o que ele tinha agora era uma certeza. Isel não iria mais voltar, não iria mais ouvir suas desculpas, não iria mais lhe bater, nem lhe chacoalhar, ou matracar ao seu lado, nem iria mais lhe olhar com aqueles olhos cor de mel já não tão ingênuos.

Com as lágrimas que caiam sem parar de seu rosto, quem era o bebezão agora?


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Notas finais do capítulo

A história entre Célio e Isel acabou ficando como extra. Ah, que seja, tem mais uma história em que eles aparecem mesmo. Quem sabe eu poste no futuro. Preciso saber a opinião nesse extra antes, tho.
Eu escrevi isso sem parar, então... Sem revisão. Quando acabar a história eu garanto que paro para editar ela. E estamos perto do final, até. ~joga serpentina no ar~



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