Gentleness escrita por U can call me A


Capítulo 1
Difícil dizer quem é (o verdadeiro) egoísta




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Pessoas gentis são estranhas. Ou pelo menos era isso o que ele acreditava, e não tinha quem lhe tirasse tal ideia da cabeça. Sua vida toda, o que relativamente não era muita coisa, ele havia visto pessoas gentis se dando mal, e não conseguia entender tal comportamento. Por que alguém iria querer ajudar outra pessoa, sem tirar algo disso? Quando lhe diziam que era pelo sentimento de felicidade e satisfação em ajudar o próximo, ele retrucava: 

"- Sendo assim, gentileza é um tipo de egoísmo." 

Não importava quem tentasse colocar um pouco de senso comum em sua cabeça, não havia espaço, com tantas ideias próprias que ele carregava ali. Seus pensamentos eram seus, e era impossível tirá-los ou trocar por novos sem uma boa pessimista reflexão. Muitos o achavam insuportável por sua língua afiada e que parecia ter resposta pra tudo, por mais irritante que fosse, mas de vez em quando ele se deparava com alguém com "mau gosto" o suficiente para gostar dele. Quando isso acontecia e ele gostava da pessoa também, então se tornava parte de sua vida. 

Mas naquele momento ele não tinha uma única pessoa assim por perto. Estava sentado numa escadaria da escola de artes, observando as estrelas que as luzes da cidade permitiam ver, enquanto esperava a mãe sair da aula de dança. Tinha prova de matemática no dia seguinte, e não podia se sentir mais desesperado com o tempo passando sem ele revisar. Como raios ele iria lembrar todas aquelas formulas?! Se pelo menos não tivesse deixado os livros no carro... Naquele dia em especial, sua mãe o buscou no colégio, assim ele poderia acompanhá-la pra dar uma olhada em lojas e promoções. Ela o convenceu de deixar a bolsa com livros no carro, pra não carregar peso desnecessário, ainda mais se eles acabassem comprando coisa demais pra duas pessoas levarem sem esforço. 

Ele deveria ter perguntado que horas iriam voltar. Teria lhe poupado de sua angústia atual, e ele nem se importaria com o peso. Afinal, estava longe de ser algo desnecessário. 

Enquanto o adolescente se deixava abater por sua frustração ali na escada, uma pessoa passou por ele, mas reparou sua amargura e se virou. 

— Por que você está fazendo essa cara? Não está gostando daqui? - O garoto levantou a cabeça, dando de cara com um homem de cabelo castanho escuro e encaracolado, alto, ou tão alto quanto alguém pode parecer de pé no topo da escada enquanto seu obervador estava sentado consideráveis degrais abaixo, e estiloso, apesar de simplesmente estar de calça, camisa, e tênis. Não era uma aparência de causar inveja, mas era agradável de admirar. 

Não que o adolescente tenha passado muito tempo encarando, mas ele deu uma boa checada pra decidir se deveria correr ou não. Sabe, precaução é sempre uma ótima escolha, e todo mundo já ouviu o aviso de não falar com estranhos, não é mesmo? 

"Se ele me oferecer doces eu corro."  Ele concluiu mentalmente, paranóico como era. "Na verdade, qualquer movimento suspeito e eu corro. Ou melhor, eu posso correr agora mesmo, exercício físico é sempre bom, e não falar com gente que claramente viu que você está emburrado também... Ah, espere aí, eu. Ele só peguntou porquê você tá com cara de vaca indo pro abate, e você não quer levantar, então seja prático, por favor." 

— Huh, eu tenho prova de matemática amanhã e queria revisar, mas meu livros ficaram no carro... Ugh. Então eu só estou aqui, mofando enquanto espero minha mãe sair da aula. - Ele resmungou, fazendo careta como se as palavras fossem azedas como limão e ele tivesse que sentir o gosto delas enquanto saiam de sua boca. - Mas adorei essa escada. Ela e eu vamos nos tornar muito íntimos daqui em diante se isso virar rotina. Não é mesmo, escada? 

A escada não respondeu. 

— Pffft. - O desconhecido segurou o riso, e cobriu a boca com a mão. Aparentemente a outra estava ocupada segurando uma pasta. Quando pareceu ter se recuperado, ele disse sorrindo: - Bem, talvez eu possa te ajudar um pouco. 

E obviamente, isso fez o outro recuar um pouco. Sorriso sinistro ou sorriso supostamente gentil? Ele não fazia ideia da diferença. Gentileza era sinistra e suspeita, de qualquer forma. 

— A biblioteca está fechada agora, mas se você estiver com telefone eu posso lhe dar a senha do wi-fi e você pode estudar pela internet. - Ele disse antes que o jovem pudesse começar a se retirar. - Qual é o seu nome? 

— Meu nome... - A pausa foi tão longa e o olhar que ele recebeu tão desconfiado que o adulto começou a se apresentar. 

— Eu me chamo Célio, prazer. - De novo, ele sorriu. Um sorriso morno: não era sem humor, mas também não parecia tão espontâneo, como se ele já estivesse acostumado e cansado de sorrir a qualquer momento. Ou talvez ele simplesmente estivesse sorrindo por educação, era difícil concluir com certeza. 

"Paranóico, exagerado, observador demais..." O garoto murmurou pra si mesmo mentalmente. Mas também retrucou: "Ingênuo, descuidado, relaxado demais..." 

— Eu ia dizer... Meu nome é um pouco esquisito, minha mãe escolheu de um livro... E se você rir eu vou ficar chateado. Mas prazer também, eu sou, hum, Ephir. - Ele queria desviar o olhar, mas também queria ver a reação de Célio, então seus olhos ficaram indo do corrimão da escada pra o rosto rodeado de ondulações e cachos do homem, do corrimão pra... E assim continuou, até o outro dar um pequeno sorriso com um leve riso nasal. Não era o sorriso morno, e isso de certa forma era um alívio. 

— Eu não acho que é estranho. Incomum e peculiar, de fato, mas é bonito e soa bem, então não é num sentido ruim. 

Ephir murmurou um "obrigado", estranhando seu nome ser elogiado, e a sensação que isso causava. Célio falou sobre como a mãe do garoto devia gostar de ler, e como ele mesmo gostava muito de ler desde pequeno. Quando ele chegou a falar como a internet tornava tudo mais prático, naquele contexto por causa dos livros digitais, finalmente se lembrou do ponto principal da conversa, se desculpou por desviar do assunto e pediu o celular de Ephir. 

Claro que ele se perguntou porquê o garoto que estava tão preocupado em estudar não o interrompeu, mas imaginou que esse também se deixou levar pela conversa. Depois de digitar a senha e conectar o aparelho à internet, ele devolveu o celular para o dono, que ficou olhando pensativamente para ele. 

— Algum problema? 

— ...Eu não consigo me lembrar dos assuntos pra pesquisar... Só de um monte de fórmulas... Huh... - Ephir baixou a cabeça, parecendo mais frustrado do que antes. 

— Em que ano você está? Talvez dê pra pesquisar os assuntos da sua série e tentar encontrar os que você se lembra. 

— Eu estou no segundo ano, e isso não é má ideia, mas queria lembrar os assuntos que eu deixei lembretes mentais de estudar quando senti dificuldade... Acho que trigonometria? Umas coisas complicadas com triângulos que dá dor de cabeça só de ver alguém resolvendo... - O jovem murmurou a última parte, com desgosto. 

Célio se sentou ao lado dele na escada, e deixou a pasta de lado. Seus olhos brilhavam refletindo as luzes da escola e as de cores incomuns vindo do jardim. "Por que iluminar uma árvore com luz verde?" Se tornou uma das várias perguntas da noite dentro da cabeça de Ephir. Ele estava numa pose defensiva pronto para correr, mas aqueles olhos pareciam muito atentos o observando, e o dono facilmente poderia impedi-lo, estando consciente de seus movimentos. 

Ele havia ficado menos defensivo por causa da gentileza do homem, mas ele não acreditava em gentileza afinal. De fato, alguém sendo bonzinho demais só aumentava sua desconfiança. Não querer algo em troca? Num mundo desses? Bobagem. 

— Trigonometria, então? Acho que posso ajudar, eu me lembro desse assunto. - Ephir considerou a ideia cuidadosamente, e como ele não respondeu logo, Célio acrescentou: - Se eu achar uma caneta e uma folha usável na minha pasta, podemos até resolver alguns exercícios. 

— Você tem tempo e paciência pra estudar comigo? Você não é, tipo, um adulto ocupado? Porque, sabe, olha pra essa pasta! Parece muito de um... Um... Um adulto sério e ocupado! - O garoto estava franzindo as sobrancelhas, levemente incrédulo. Ele não estava rejeitando o fato de estudar matemática, afinal ele precisava, mas era esquisito. Canetas numa pasta, isso não dá ideia de gente que tem assinar coisas? E gente que assinar coisas não tem um monte de compromissos? Sendo assim, por que raios parar pra ensinar matemática a um guri que ele conhece há menos de meia hora? Além disso, pessoas que vendem órgãos dos outros no mercado negro meio que encaixam nas questões acima...? 

Célio riu, o que deixou Ephir ainda mais incomodado, por mais que estivesse longe de soar como uma risada malígna. O homem parecia estar se divertindo muito, porque não havia sinais que ele iria parar de rir tão cedo, mesmo depois de cobrir a própria boca. 

— Dá pra parar? 

— PffHaha...pfft... Desculpe. É que sua sinceridade é encantadora. Ou eu deveria considerar sarcasmo? Heh. - Antes que Ephir respondesse, ele acrescentou, enquanto procurava em sua pasta o que precisavam: - Eu estava indo pra casa, então eu que decido se tenho tempo livre ou não. Se sou sério e ocupado... Eu me pergunto sobre isso. Mas tenho certeza de que sou paciente. Oh, olhe, achei! 

— ...Você é estranho. - Ephir deixou um de seus pensamentos escapar antes de começarem os exercícios. 

Célio estava certo, ele era paciente. Talvez paciente demais. Eles passavam muito tempo em cada questão, porque o homem queria ter certeza de que Ephir entendesse totalmente cada questão, cada etapa para chegar a resposta, e o garoto queria entender o maior número de questões possíveis, para assim ter menos chance de ter dúvida na prova, então ficava agoniado com o outro que explicava algo várias vezes se encontrasse algum sinal de dúvida. 

No entanto, a sensação de angústia por não poder fazer nada enquanto o tempo passava foi embora aos poucos. Ele não estava estudando como queria, tentando manter na memória as fórmulas e como usá-las, mas estava estudando e estava menos nervoso, então não iria reclamar. 

Quando começou a entender melhor, tentou resolver questões sem que Célio o ajudasse. Estava indo bem, e seu professor temporário parecia orgulhoso, mas o que uma hora ou outra iria acontecer os imterrompeu: Dava pra ouvor sua mãe o chamando, procurando por ele. Aquele parte da escada à noite não era muito visível, afinal. Mas como sua mãe não se incomodava em chamar aquele nome? 

— É minha mãe, tenho que ir. - Ele devolveu a caneta, gardando o celular e as folhas com cálculos dobradas no bolso. Célio não precisaria delas mais do que ele. 

— Até mais, e tenham cuidado no caminho. Está tarde. - O adulto guardou a caneta e se levantou, pretendendo ir embora também.  

— Hum, muito obrigado, Célio. Espero, huh... - Ele quase disse "Ver você de novo", mas parou ao questionar a própria sanidade, por tentar dizer algo assim. - ...Que você tenha cuidado também. 

Seu coração bateu um pouco mais rápido pela vergonha do que por pouco não escapou de sua boca, e ele foi até sua mãe em mais rápido do que alguém poderia dizer "Não contavam com minha astúcia". Ainda se atrapalhou um pouco por não estar preparado para correr como estava antes. 

— Wuah! Ah, Ephir, você me assustou. Pra quê correr desse jeito? Viu um ladrão? 

— ...O que um ladrão iria levar de mim, quando meu celular é tão pequeno? - Ele falou numa voz ofegante, mesmo depois de ter parado para respirar. 

— Você está tentando pedir um telefone novo? Um tijolão seria grande o suficiente pra te deixar sem palavras, mas não acho que seja fácil de encontrar. - Sua mãe disse, num tom ingênuo, enquanto ia ao banheiro trocar de roupa. 

Ephir suspirou. Aquilo era pra ser engraçado? Ele lançou um olhar na direção de onde estava sentado há pouco tempo, e se sentiu um pouco desapontado que Célio já não estivesse mais lá, o que foi estranho, porque não havia nenhum motivo para ele se sentir assim. 

Até que visse o outro novamente, ficaria se remoendo questionando a gentileza do outro. Havia sido por satisfação pessoal? Pra não ficar com a consciência pesando? Poder colocar a cabeça no travesseiro e não pensar "Eu poderia ter ajudado aquele garoto sentado na escada que parecia no fundo do poço"? Todas as hipóteses que ele pensava pareciam relacionadas, e no entanto, diferentes. Mas todas tinham um toque de egoísmo. 

Não era assim que gentileza funcionava? Uma pessoa ajuda outra pra se sentir bem consigo mesma. A outra pessoa consegue algo, geralmente, de seu interesse. A tão apreciada gentileza não passava de dar e receber. 

Havia algo curioso no meio disso tudo. Se ele se aproveitasse mais e mais da gentileza dos outros, o que teria que dar em troca? Eles ficariam satisfeitos apenas com a "felicidade de ajudar o próximo"? Parecia algo interessante para testar com Célio da próxima vez que o visse. 

Afinal, ele disse "Até mais". Talvez Célio estivesse tão certo quanto ele de que sua mãe não tinha planos de interferir em seu relacionamento com a escada tão cedo. 

Era muito mais fácil dizer que ele queria ver a escada de novo.


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Notas finais do capítulo

História baseada em fatos reais.
Fatos reais: Trigonometria dá dor de cabeça.
Ah, não acho isso só por causa de um certo triângulo chamado Bill Cipher.
Eu decidi não fazer uma oneshot, mas como é só algo que escrevo passando o tempo e tenho outros projetos (e uma tonelada de coisas pra fazer), a frequência das atualizações vai depender muito de que tipo de reação a história vai receber.
Dito isso, talvez Ephir dê algum apelido pra escada se e quando ficarem mais íntimos, então estou aceitando sugestões. Se tiver alguma, o espaço pra comentar é todo seu.



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