Angústias de um soldado escrita por Ellaria M Lamora


Capítulo 1
Oneshot




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ANGÚSTIAS

DE UM SOLDADO

 

MARIO, DE PIJAMA, COMEÇAVA a esboçar os primeiros rascunhos de um maçante e longo relatório, quando foi subitamente interrompido por uma figura trêmula e pálida que  no meio da noite  empurrou a porta de seu escritório, projetando seu pequeno e frágil corpo para dentro do escritório.

O homem não precisou levantar a cabeça para saber quem era. Não depois do que havia acontecido. Ele sabia que aquele momento, cedo ou tarde, iria chegar e, portanto, seria necessário enfrentar seus demônios e as consequências pelo que havia feito. No entanto, o pesar em seu coração não tornava as coisas mais fáceis.

Mas ele acreditou que estava pronto para lidar com quaisquer que fossem as consequências, afinal havia se preparado para aquela situação. Entretanto todas as suas certezas foram por água à baixo quando sua audição captou os sons de passos rastejando tristemente pelo aposento, mesclado a um choro reprimido. O coração falhou uma batida e ele cerrou a mão com força ao redor da caneta. A solução que encontrou naquele momento foi ignorar sua visitante, ocupando-se em observar como a luz pálida da lua iluminava o ambiente, tendo como único suporte um pequeno castiçal de velas.

Ele analisou rapidamente suas sombras projetando-se profunda e impiedosamente pelo aposento, notando a distorção que as chamas das velas causavam nos objetos, transformando o lugar em algo macabro e mórbido, enquanto devoravam — um a um — os incontáveis retratos nas paredes, lembrando a Mario de que um dia a sua foto também estaria ali. De que, em breve — se as coisas continuassem daquele jeito — ele seria somente mais um daqueles quadros.

No entanto, não eram as comparações sinistras que lhe aterrorizavam. Não mesmo. A voz daquela menina, sussurrando em uma voz fraca e dolorosa, o apavorava mais do que seus pensamentos sombrios.

Eu soube.

Se Mario pudesse enxergar a si mesmo naquele momento, ficaria surpreso em como parecia tão velho e cansado. O choque provavelmente tomaria conta de seu corpo quando constasse o quão magro e desprezível se apresentava naquele farrapo, tão desgastado pelo tempo. Os olhos fundos e sem vida o teriam amedrontado, com certeza.

— Eu sinto muito, Sofia. — Respondeu, deixando que seus olhos, enfim, pudessem se encontrar com os da adolescente de cabelos claros e opacos — Eu sinto muito. — Tornou a dizer ao topar com a expressão dela lavada por um luto cruel e devastador.

— Você prometeu. — A jovem sussurrou e sua voz quebradiça e fraca destruiu o coração de Mario. — Você prometeu que todos voltariam bem! — Agora, o ódio tomava conta de sua face, distorcendo e transformando a expressão sofrida em algo quase animalesco — Mas você o matou!

Em resposta à declaração, Mario abaixou a cabeça. O silêncio velou seu arrependimento visível, ao passo de que a menina andava de um lado para o outro: as mãos segurando os cabelos no topo da cabeça, enquanto arfava e tentava conter as lágrimas que escorriam por sua face.

— Ele era minha única família. — Sofia desabafou, encarando o homem a sua frente intensamente — Agora não resta mais nada.

O soluço que se seguiu despedaçou o coração de Mario e ele precisou lutar contra si para não a envolver em seus braços e proteger a inocente criança de todo o sofrimento que o mundo cruel em que eles viviam trazia. Ele desejou confortá-la, sussurrando palavras doces e amáveis, cuidando daquela menina como se fosse sua própria filha e amparando-a na tristeza que a envolvia.

 

No entanto, ele não se moveu.

Como poderia, depois de ter tirado a vida do irmão dela?

Depois de assistir a vida se apagar nos olhos de um menino tão bom?

Mario simplesmente não podia.

Não quando havia sido ele a causar aquela situação.

 

O que ele podia fazer?

 

— Eu sinto muito. — Armando-se com palavras tão comuns, o homem de pijama apenas repetia-as incessantemente, desejando que a minúscula frase bastasse para explicar a morte do rapaz, que a deplorável sentença resolvesse a merda que havia feito e trouxesse a paz que o espírito de Sofia necessitava.

Afinal ele não poderia explicar à uma garota tão nova e inocente sobre a complexidade e o lado obscuro, sanguinário e hediondo de uma guerra daquelas. Mario não queria ser o responsável pelos pesadelos que a assombrariam quando ele narrasse as crueldades que os inimigos haviam feito com o amado irmão da adolescente, em como ele respirava com dificuldade quando o acharam, implorando para que alguém o matasse. O homem de pijama não poderia salvá-lo em tais circunstâncias. Ele não podia sacrificar um batalhão inteiro por causa de um rapaz. Era uma realidade cruel, mas era a verdade que eles precisavam lidar.

Contudo, mesmo com a adrenalina por estar em território inimigo correndo em seu sangue, Mario ainda hesitou em fazer seu trabalho, procurando por meios de ajudar o irmão de Sofia. Seus homens exigiam por ordens e os soldados da outra nação começavam a se dar da existência de seu batalhão.

Respirando fundo, o líder precisou se desfazer de suas emoções e sentimentos para tomar a melhor decisão para o grupo. O arrependimento pesou em cada célula de seu corpo quando ele se curvou na direção do adolescente, o envolvendo em seus braços e o abraçando com ternura. O menino, naquela situação, ainda conseguiu forças para esboçar um sorriso de alívio, murmurando um agradecimento inaudível.

O brilho fosco da arma de Mario foi a última coisa que ele viu, antes do som oco cortar o ar e o projétil alojar-se em seu crânio, sujando os poucos fios dourados que restavam em sua cabeça com um vermelho vivido de seu sangue.

A escolha do homem de pijama escolha tomou da garota a única família que ainda lhe restava naquele mundo, arrancando impiedosamente de suas mãos todos os sonhos e esperanças de que dias melhores chegariam. Logo quando eles necessitavam de toda a fé possível para continuar seguindo em frente.

— Eu odeio você! — A voz colérica de Sofia ergueu-se no quarto. A luz de uma vela iluminou seu rosto pequeno e Mario que lágrimas escorriam ali, deixando seus olhos vermelhos e tremulando seus lábios — Eu odeio esse país! — Urrou ao empurrar um vaso de girassóis ao chão. As flores se espalharam pelo carpete e a terra sujou seus pés, mas a menina não se importou.

Eu também. — O homem concordou em seus pensamentos, não a censurando pelo vaso quebrado. A dor queimava nos olhos dela.

— Você que devia estar morto! — Declarou, apontando um dedo na direção dele. Mario desviou os olhos para o chão, tomado pela sensação de que se a menina o esbofeteasse, iria doer menos do que aquelas palavras acusadoras — Você que devia estar morto, não ele!

Aquelas eram palavras cruéis, proferidas em um tom quase colérico. No entanto, o homem não discordou da menina de cabelos opacos e manteve-se em silêncio. Ele não tinha nenhum direito de falar qualquer coisa, quando aquela criança se debulhava em seu luto dilacerante. O próprio militar daria qualquer coisa para que os dois irmãos pudessem estar junto novamente e sobrevivessem até o fim daqueles tempos cruéis, descobrindo enfim o significado de paz.

Restou a ele desviar o olhar mais uma vez, afundando o rosto em suas próprias mãos. A menina arquejou e continuou a despejar sua fúria no homem de pijama. A Mario foi difícil medir a passagem do tempo, mas quando ele percebeu, Sofia havia se calado e chorava silenciosamente.

Ele a fitou e com o coração pesado, murmurou:

— Eu sinto muito, Sofia.

As palavras pareciam escapar na ponta de sua língua, o limitando a repetir sem parar a mesma sentença. A arrependimento por sua decisão e por ter destruído a vida daqueles irmãos o impedia de falar o que havia em seu interior. Ele sentia-se culpado e ansiava ardentemente voltar ao passado, mesmo sabendo que nada poderia fazer pelo pobre garoto. O rapaz não sobreviveria, não importava o que fizessem.

Cabisbaixo, Mario sabia que não podia dizer isso para Sofia. Ele preferia carregar a culpar pela morte do irmão da adolescente a contá-la sobre as crueldades que ele havia vivenciado antes de falecer. Pelo menos ele poderia lhe fornecer essa paz.

Por isso apenas ficou ali, parado e cabisbaixo, permitindo que a garota despejasse sua fúria, deixando que ela despejasse o ódio em seus ombros, ouvindo sua voz trêmula e falha, compreendendo sua tristeza e assumindo a posição de um assassino desgraçado.

E por deus, ele merecia tudo aquilo.

Quando Sofia se foi, Mario deixou que sua cabeça desabasse sobre a mesa em sua frente, permitindo que o remorso, a culpa e o luto cravassem suas unhas em seu corpo, abrindo suas entranhas e serpenteando sua garganta, enquanto faziam seu coração de banquete.

Nas paredes os retratos de incontáveis almas o observavam em silêncio.

Ele, o pijama e o esboço do relatório.

Os sorrisos congelados velavam o sofrimento do homem.

 

Não havia nada que se pudesse fazer.

No fim, aquela era a essência de uma guerra.

 

Ele havia tomado uma decisão e era justo que lidasse com as consequências. Por mais amargas que fossem.

 

No fim, a vida continuava.

 

E Mario precisava terminar o relatório sobre o êxito de sua missão.

A qual custou a vida de um pobre garoto.


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