Felina percebeu que haveria uma longa conversa pela frente.

Decidiu então que Adão reconhecesse seus futuros pais, que fecundariam em breve. Deixou claro para Adão que não podia conversar com os amigos além de 8 meses. Mostrou-lhe uma casa maravilhosa, pois seus futuros progenitores eram milionários. Adão viu o rosto de seu futuro pai, um ator de teatro muito bem apessoado, em gira internacional. Em seguida olhou para sua mãe, uma atriz maravilhosa, que o esperava em casa. Feliz pelo futuro, ele convidou os amigos para sentar nos jardins dessa casa, que mais parecia um palacete medieval. Abraçou Felina, e entrou na roda de amigos a falar de tudo que havia se passado nos últimos anos. Um espírito, que possuía muitas luzes, falou orgulhoso:

— Mestre, eu fui Lenin, o guia revolucionário da Rússia, e deixei o povo no poder... O que acha?

E outro amigo entrou na conversa sem pedir licença:

— Mestre, eu planejei a invasão da Normandia... Foi um sucesso... Mas morri assim que desci do barco...

Um coro de risadas envolveu os falantes.

Adão ficou impressionado.

Estavam na sua frente guerrilheiros valentes e cientistas brilhantes, homens que fizeram de tudo para levar ao povo saúde e justiça social. Eram seus garotos de muitos anos atrás, que seguiram o seu exemplo. Dar a vida pela humanidade.

Adão falou emocionado:

— Estou sem palavras... Mas e meus filhos? Cadê eles?

— Jesus morreu... A sua nora ficou doente e partiram para detonar no espaço... Seu outro filho, Paulo, está num campo de concentração nazista... A Alemanha ainda não caiu... Aliás, o Führer ainda não morreu...

— Não? Estou louco para saber quem ele é... De que mundo ele veio, nossa, necessito ver a cara do inimigo...

— Tem tantos outros nazistas pior do que ele, mestre... Além do Führer estão Goebbels, Hhyssen e toda a Gestapo, que são verdadeiros demônios encarnados. E seu filho deve estar sendo torturado por eles...

Como Adão ficou preocupado, todo o grupo voou para a Alemanha para um Campo de concentração, onde os homens morriam calcinados em fornos crematórios.

Fazia três anos que Paulo fazia túneis durante a noite, e tirava do cativeiro, dos campos de concentração, quem conseguia salvar, num trabalho de formiga.  Sua namorada Paulina era sua melhor colaboradora nessa empreitada e ficava esperando-o com o caminhão pronto para atravessar as planícies, rumo a um esconderijo secreto. Uma caverna gigante, onde os homens se recuperavam da fraqueza, colocavam roupas decentes, ganhavam identidade falsa, e um dia saíam com destino às fronteiras.

Mas Paulo acabou sendo descoberto e preso dentro desse campo mortal. Adão e os amigos chegaram na hora das torturas. Paulo encontrava-se pendurado num pau de arara, pois a humanidade continuava com os mesmos martírios dos tempos em que Paulo foi o João Batista. Só que desta vez foi-lhe assentada eletricidade no corpo, para dizer onde ficava o lugar onde os fugitivos se escondiam. Em seguida, colocaram mangueiras no nariz, para ele se afogar. Paulo devolveu a água com a boca bem aberta, e como estava nu, disparou urina direto na cara de seu carrasco.

As almas em redor de Adão principiaram a gargalhar.

Naquele momento, em outro lugar da Europa, tropas soviéticas entravam em Varsóvia e se preparavam para continuar a marcha triunfal com destino à Alemanha.

Adão e seus amigos sentiram uma sirene de alarme que inundou o campo de concentração, e observaram  muitos soldados alemães saírem na corrida para engrossar as tropas nas fronteiras, contra o exército soviético. Caminhões chegaram a evacuar o contingente armado, e despontaram às pressas, deixando esse campo semiabandonado. Enquanto isso, um avião aliado atravessou os céus, carregado de bombas, deixando cair sua artilharia mortal sobre a fileira de soldados alemães, estremecendo o lugar.

Paulo aproveitou a confusão, desintegrou as correntes de um olhar,  e saiu correndo direto ao túnel da fuga. Paulina, assustada, o ajudou a se vestir, e correu abraçada nele pelas ruas, enquanto bombas e mais bombas causavam pânico geral.

Uma vez no esconderijo, Paulo começou a gemer.  

Curvava-se de dor de estômago, dor na cintura, nas costelas, com uns hematomas enormes. Paulina colocou-lhe panos molhados, e deitou-o numa cama limpa. Depois, ele começou a delirar com febre. Ela, assustadíssima, ficou ao seu lado, durante toda a noite. Acariciava seus cabelos encaracolados, beijava sua frente, limpava-lhe o suor, e sem saber como, Paulo já a estava beijando. Em seguida a apertou firme, colocou sua língua na boca, falando que esse era o melhor remédio para sua dor.

Adão e as almas começaram a rir, mais uma vez.

— Acho que ele gosta mesmo dela, mestre... Belo truque para conquistar uma mulher... Fazer-se de coitadinho...

— E como gosta! Ele queria se suicidar por ela, há dois mil anos... Mas não se reconheceram ainda...

— Conta mais mestre, mas conta com detalhes... Foi na época da Salomé? Ou depois dela?

Enquanto as almas dialogavam, sem ver o tempo passar, os soviéticos pouco a pouco cercavam Berlim, e as bombas americanas deixavam essa cidade em escombros. O Führer, no maior desespero, dava ordens descabidas escondido num subterrâneo.  Mas no dia em que viu a derrota iminente, terminou se suicidando. Ele morreu no dia 30 de abril de 1945, deixando a Alemanha destruída e entregue aos aliados.

Foi a vez de Adão e seus amigos pararem de falar, pois a alma de Hitler estava abandonando seu corpo. Só que esse espírito não possuía forma de homem. Era um macaco grosseiro, peludo, cabeça pequena, um Homo sapiens que jamais evoluíra.

Adão o reconheceu imediatamente.

Uns 2 milhões de anos atrás, em plena pré-história da humanidade, esse macaco tinha-o enfrentado numa guerra entre tribos primitivas, e Eva havia sido torturada, estuprada, e assassinada na sua frente. Adão morrera depois, pelas mãos desse mesmo indivíduo.

Adão não se conteve. Caiu por cima do macaco, vestido de soldado alemão, e deu-lhe a maior surra que um espírito pode receber depois da morte.

Como estavam rodeados de milhares de vítimas dessa guerra, a torcida para Adão era vibrante. As frases de - Mata ele, ou - Surra o infeliz! misturavam-se em meio de uma euforia delirante. Uma baderna que se difundiu através das alturas da espiritualidade.

Adão só parou de bater no seu inimigo, quando sua filha Marta chegou correndo e se abraçou nele chorando aos berros:

— Para pai, você enlouqueceu?

— Mas, filha, ele matou sua mãe, a mim, e você e seus irmãos foram roubados de nós e sofreram muito...

— Pai! Acorda! Você perdeu sua vez! Seu pai regressou de sua gira e engravidou sua mãe! E seu corpo foi ocupado por um gay! Minha mãe vai se apaixonar por um homossexual! Já percebeu a cagada que você fez?

— Que vocabulário, filha! Meu! O que é que eu faço agora? Alguém tem uma ideia?

Lênin foi o primeiro a abraçá-lo. Depois lhe disse:

— Acalme-se, mestre... Vamos para a União Soviética! O povo me adora como um Deus!  Você escolhe um corpo, e um russo vai ceder o seu lugar com honras. Eu vou pedir por você...

— Mas Lênin, a União Soviética fica muito longe... Como vou achar minha mulher?

Marta falou mais uma vez:

— Vai para a União Soviética, pai... Eu cuido da mãe... Mas já vou avisando, para eu nascer ela vai ter um amante, pois o gay não vai funcionar... Você vai ser corno duas vezes... E o culpado é você...

— PARE DE ME TORTURAR, FILHA! E estude numa escola elegante para que melhore essa maneira chula de falar...

Depois Marta se abraçou nele, ainda chorando. Sabia que sua mãe ia ser uma morta em vida sem Adão, e que seu pai ia sofrer que nem cão sarnento longe dela. Depois o viu partir, rodeado de amigos, que não sabiam o que fazer para consolá-lo. Ela ficou por ali mesmo. Abraçando amigos, reconhecendo pessoas, esperando seu tempo para nascer mais uma vez de sua mãe.